A jornada musical de Milton Nascimento e seu legado transcendental
Milton sempre manteve uma postura ética e engajada, utilizando sua arte como instrumento de conscientização e transformação social
Quando o silêncio toma conta da sala e os primeiros acordes de Travessia começam a soar no documentário Milton Bituca Nascimento, não estamos apenas diante do registro de uma turnê de despedida – testemunhamos a celebração de uma das vozes mais singulares que o Brasil já produziu. Dirigido com sensibilidade por Flávia Moraes, o filme nos convida a uma jornada através do tempo e do espaço, onde cada nota cantada por Milton revela não apenas a trajetória de um artista extraordinário, mas também fragmentos da própria alma brasileira em suas múltiplas dimensões. O documentário transpõe as fronteiras do registro biográfico convencional para se tornar uma experiência quase mística, assim como a própria música do homem que muitos descrevem como possuidor de uma voz que parece não pertencer a este mundo.
O Brasil dos anos 1960 vivia um período de intensa efervescência cultural, apesar do contexto opressivo da ditadura militar instaurada em 1964. Foi nesse cenário contraditório que Milton Nascimento emergiu como uma voz dissonante e inovadora. O documentário contextualiza com precisão esse momento histórico, demonstrando como a música de Milton representou simultaneamente um refúgio criativo e um instrumento de resistência velada contra o autoritarismo vigente, utilizando metáforas e harmonias complexas para expressar anseios de liberdade que não podiam ser verbalizados diretamente.

Crédito: Rogério Rezende/Divulgação
A obra cinematográfica destaca com propriedade a formação do movimento Clube da Esquina, coletivo musical que revolucionou a MPB no início dos anos 1970. Através de materiais de arquivo e entrevistas com participantes como Lô Borges e Beto Guedes, o filme recria o ambiente criativo de Belo Horizonte que gerou dois álbuns fundamentais para a música brasileira: Clube da Esquina (1972) e Clube da Esquina 2 (1978). Essas produções estabeleceram uma nova linguagem na música popular brasileira, mesclando elementos regionais mineiros com influências do jazz, rock progressivo e música clássica.
O documentário evidencia a dimensão inovadora da voz de Milton, tratada não apenas como instrumento de interpretação, mas como elemento composicional em si. Depoimentos técnicos de músicos explicam a peculiaridade de seu timbre e sua extensão vocal, que transita do grave profundo ao falsete com naturalidade impressionante. A diretora consegue traduzir esse aspecto técnico para o espectador leigo através de analogias visuais e sonoras que demonstram por que a vocalização de Milton é frequentemente comparada a um instrumento extraterreno, como ele próprio ironiza ao se reconhecer “um pouquinho alienígena”.
As composições seminais dos anos 1970, como Travessia, Canção do Sal, Morro Velho e Sentinela, são analisadas no filme não apenas como obras musicais, mas como documentos históricos que registram a sensibilidade social de Milton perante questões como o êxodo rural, a desigualdade e o trabalho. A diretora estabelece conexões entre essas composições e o contexto sociopolítico brasileiro, revelando como Milton conseguiu criar uma obra universalmente apreciada sem jamais perder de vista as raízes sociais e as questões prementes de seu tempo e lugar.
A dimensão internacional da carreira de Milton Nascimento recebe atenção especial no documentário. Comentários de figuras como Quincy Jones, Pat Metheny, Paul Simon e Esperanza Spalding evidenciam como sua música transcendeu fronteiras culturais e linguísticas, conquistando admiradores em todos os continentes. O filme analisa com propriedade a turnê Native Dancer, realizada com Wayne Shorter em 1974, como um momento decisivo para sua projeção mundial e para o estabelecimento de um diálogo profícuo entre a música brasileira e o jazz norte-americano, influenciando gerações de músicos em ambas as tradições.
A construção narrativa do documentário destaca a relação de Milton com suas duas mães – a biológica, Maria do Carmo, que faleceu quando ele tinha apenas dois anos, e Lília, que o criou. Essa dualidade maternal aparece como elemento formativo essencial tanto para sua personalidade quanto para sua expressão artística. A canção Maria Maria e outras composições dedicadas às figuras femininas são contextualizadas como pontes emocionais que conectam o pessoal ao universal, transformando a experiência íntima do artista em expressão de sentimentos compartilhados coletivamente.
O período dos anos 1980 é abordado como um momento de transformação na carreira de Milton, quando ele expandiu suas explorações musicais incorporando elementos da música pop contemporânea sem abandonar a sofisticação harmônica e poética que o caracterizava. Obras como Anima (1982) e Encontros e Despedidas (1985) são apresentadas como expressões de um artista em constante evolução, capaz de dialogar com novas tendências sem comprometer sua identidade artística. O filme destaca como essa fase consolidou sua posição como um dos principais compositores e intérpretes brasileiros, capaz de transitar entre diferentes públicos e gerações.
A dimensão política da obra de Milton ganha contornos mais explícitos quando o documentário aborda álbuns como Missa dos Quilombos (1982) e Txai (1990). Esses trabalhos evidenciam seu compromisso com causas sociais, como a valorização da cultura afro-brasileira e a defesa dos povos indígenas e do meio ambiente. A diretora estabelece paralelos entre essas obras e os movimentos políticos e sociais contemporâneos, demonstrando como Milton sempre manteve uma postura ética e engajada, utilizando sua arte como instrumento de conscientização e transformação social.
O aspecto transcultural da música de Milton é analisado através de suas colaborações com músicos de diversos países e tradições. O filme explora como ele incorporou elementos de diferentes culturas musicais – do jazz norte-americano às tradições africanas, da música clássica europeia aos ritmos latino-americanos – criando uma síntese original que, paradoxalmente, soa profundamente brasileira. Essa capacidade de integrar influências diversas sem perder sua identidade é apresentada como uma das razões para sua longevidade artística e sua relevância contemporânea.
O documentário não se furta a abordar momentos desafiadores na carreira de Milton, como períodos de menor reconhecimento comercial e problemas de saúde que impactaram sua performance. Essas dificuldades são contextualizadas como parte integrante de sua trajetória artística, revelando um músico resiliente e comprometido com sua expressão autêntica, independentemente de tendências mercadológicas ou expectativas externas. A franqueza com que esses aspectos são tratados confere profundidade humana ao retrato do artista, evitando a hagiografia superficial.
A relação de Milton com os músicos que o acompanharam ao longo de sua carreira é explorada como elemento fundamental para a compreensão de sua obra. O documentário evidencia como ele sempre valorizou o trabalho coletivo e a troca criativa, estabelecendo parcerias duradouras baseadas no respeito mútuo e na busca pela excelência musical. Depoimentos de instrumentistas que o acompanharam em diferentes fases revelam a generosidade de Milton como líder musical e sua capacidade de inspirar o melhor em seus colaboradores, criando um ambiente propício para a experimentação e o desenvolvimento artístico.
A dimensão espiritual da música de Milton Nascimento recebe atenção especial na narrativa documental. Suas composições frequentemente abordam temas como transcendência, fé e busca existencial, refletindo tanto sua formação católica quanto sua abertura para diversas tradições espirituais, especialmente as de matriz africana. Essa espiritualidade sincrética é apresentada como elemento unificador de sua obra, conferindo-lhe uma dimensão contemplativa e universal que transcende barreiras culturais e religiosas, conectando ouvintes de diferentes origens e crenças.
O impacto de Milton nas novas gerações de músicos brasileiros é evidenciado através de depoimentos e participações de artistas contemporâneos. O documentário analisa como sua influência se manifesta não apenas nas citações diretas e homenagens explícitas, mas principalmente na liberdade estética e na disposição para transcender fronteiras entre gêneros musicais que caracterizam a música brasileira atual. Essa herança artística é apresentada como um legado vivo e em constante transformação, que continua a inspirar inovação e excelência na produção musical do país.
O que me chamou a atenção também foi ver, na sessão que eu estava, a emoção das pessoas, com aquele choro velado. Presenciar aquelas reações coletivas me fez compreender que não estava apenas diante de um documentário sobre um cantor, mas testemunhando um momento de comunhão quase religiosa em torno de uma figura que ultrapassou o status de artista para se tornar uma espécie de patrimônio afetivo nacional. Cada nota, cada falsete, cada silêncio de Milton provocava suspiros e lágrimas no público, como se todos ali revivessem memórias íntimas e coletivas simultaneamente – a trilha sonora de suas próprias travessias.
Revisitar a trajetória de Milton através do filme me fez refletir sobre como sua música permeou momentos decisivos de minha própria vida. Aquela voz que sempre pareceu vir de outro plano embalou encontros, despedidas, descobertas e perdas que compuseram minha existência. Percebo que não sou apenas um ouvinte de sua música, mas parte de uma comunidade afetiva que encontrou em suas canções a expressão perfeita para sentimentos que, de outra forma, permaneceriam inomináveis – aquela capacidade única que Milton tem de transformar emoções difusas em sons precisos, reconhecíveis, compartilháveis.
Ao sair da sala de cinema, carregava comigo a sensação de que havia participado não apenas de uma exibição, mas de um ritual de passagem coletivo. O documentário de Flávia Moraes, ao capturar a despedida de Milton dos palcos, nos convida a refletir não sobre um fim, mas sobre a permanência e a transcendência de uma obra que continuará ecoando nas vozes de muitos outros artistas e nos corações de todos que foram tocados por ela. Como toda grande arte, a música de Milton Nascimento não pertence apenas ao seu tempo, mas habita aquela dimensão atemporal onde as verdadeiras obras-primas encontram seu lugar de descanso e, paradoxalmente, sua perpétua renovação. Saí dali com a certeza de que, mesmo quando o próprio Milton não mais estiver entre nós, sua voz continuará a ser aquele vento que sopra de Minas para o mundo, carregando consigo toda a universalidade que só a mais autêntica expressão local pode alcançar.
Erik Chiconelli Gomes é Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Doutor e Mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Direito do Trabalho pela USP. Bacharel e Licenciado em História (USP). Licenciado em Geografia (UnB). Bacharel em Ciências Sociais (USP) e em Direito (USP).