A Lei de Segurança Nacional e o governo dos homens -

PERSEGUIÇÃO POLÍTICA

A Lei de Segurança Nacional e o governo dos homens

por Luana Renostro Heinen e Marcel Mangili Laurindo
23 de março de 2021
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A Polícia Federal instaurou 77 inquéritos com o propósito de apurar eventuais ataques à segurança nacional ao longo dos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro

Franz Neumann não via os magistrados alemães da virada do século XIX para o XX com bons olhos. “O juiz desse período”, sustentou, “exibia todas as características de sua classe de origem: ressentimento contra o trabalhador manual, reverência para com o trono e o clero, e uma completa indiferença pelo capitalismo financeiro”. E mais: “Representavam eles a aliança entre a coroa, o exército, a burocracia, os latifundiários e a burguesia”. Um pouco mais genérico e menos incisivo, Max Weber afirmou, na mesma época, que, no círculo dos “práticos do direito”, os juristas eram majoritariamente conservadores

Dois anos depois da morte de Max Weber, Walther Rathenau, ministro das Relações Exteriores da Alemanha, foi assassinado por membros de um grupo de extrema-direita. Corria o mês de junho de 1922. Em julho, o parlamento aprovava, a toque de caixa, a Lei de Proteção à República. O objetivo era frear o avanço de todos os extremismos. Mas o judiciário alemão, integrado por magistrados bastante simpáticos à monarquia que acabara de cair, achou que tal lei combinava mais com os esquerdistas.

Em Quatro anos de Assassinatos Políticos, o jornalista e matemático Emil Julius Gumbel lista 376 homicídios ocorridos na Alemanha entre 1919 e 1922. Os direitistas cometeram 354 deles. Os esquerdistas ceifaram outras 22 vidas. E as condenações criminais dos ativistas ligados à direita foram bem mais leves: das 11 sentenças de mortes proferidas durante o período, 10 atingiram extremistas vinculados à esquerda. Franz Neumann e Max Weber teriam aí, quer parecer, uma prova empírica de suas afirmações. 

Robert Paxton lembra que, no começo de 1922, os esquadrões fascistas constituíam o poder de fato no Nordeste da Itália. No fundo, o Estado dependia da boa vontade dos camisas negras para funcionar. Na verdade, as próprias forças policiais e os comandantes do Exército emprestavam-lhes armas e caminhões – quando não se juntavam, todos, aos ataques promovidos pelos fascistas a jornais, a cooperativas e às sedes dos partidos de esquerda. Não bastasse isso, muitos chefes de polícia, coniventes, não tomavam qualquer providência contra essas investidas dos acólitos de Benito Mussolini.

Em 11 de março de 2021, a Agência Pública noticiou que “mais de uma centena de motoristas foram multados depois de terem participado de carreatas contra o presidente Jair Bolsonaro, realizadas nos últimos dois meses em diversas capitais brasileiras”. Em Porto Alegre, muitos dos rebeldes não usavam cinto de segurança. Uma dezena de insurgentes buzinou demais. Houve subversivos que, com o pisca-alerta acionado, obstruíram o trânsito. Algumas das multas aplicadas chegam a R$ 5.869,40. Curiosamente, contudo, “em comparação, segundo dados do Detran-RS, os protestos de apoio ao presidente não registraram nenhuma ocorrência” .

“Desde a antiguidade”, afirma Norberto Bobbio, “o problema da relação entre direito e poder foi apresentado com esta pergunta: ‘é melhor o governo das leis ou o governo dos homens?’”. A pergunta é capciosa – afinal, por trás da criação, da execução e da interpretação de uma norma sempre há um homem. Franz Neumann é preciso: “A invocação do direito como o único soberano e o dictum de que soberania é ‘um governo de leis e não de homens’ torna supérfluo mencionar que, na realidade, os homens governam, mesmo quando o fazem dentro da estrutura legal”.

(Agência Brasil)

São brasileiros de carne e osso que têm, com base na lei 7.170, investigado os opositores de Jair Bolsonaro. A Polícia Federal instaurou 77 inquéritos com o propósito de apurar eventuais ataques à segurança nacional ao longo dos dois primeiros anos do governo do antigo capitão do Exército. Entre 2003 e 2010, com Lula na presidência, 29 procedimentos desse tipo foram abertos. A escalada autoritária é visível. Acreditar, porém, que a edição de uma nova Lei de Segurança Nacional será capaz de frear a perseguição do presidente e de seus fiéis servidores à oposição é ingenuidade: mesmo a aplicação de multas de trânsito pelo guarda da esquina pode ser bastante seletiva. 

Sustentar que, pura e imaculada, uma norma jurídica pode, por si só, conter os ataques do governo Bolsonaro à liberdade de expressão não tem sentido. O direito e a política andam de mãos dadas. Admitir que o destino político dos homens se encontra justamente nesse entrelaçamento constitui um importante passo no processo de construção de uma sociedade realmente democrática.

 

Marcel Mangili Laurindo é doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Sociologia Política pela mesma instituição e defensor público do Estado de Santa Catarina em Florianópolis.

Luana Renostro Heinen é doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da mesma instituição.



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