O curioso caso dos “criminosos” que lutaram pela democracia
O caso de Antonio Torini, anistiado político e torturado na Ditadura Militar, comprova que no conflito entre a ideologia do julgador e norma jurídica, a ideologia vence de goleada e o direito é simplesmente suprimido
Em tempos de Vaza Jato, no qual juiz e promotor se confundem, combinam provas, as teses e retiram o sigilo judicial de interceptações telefônicas para fazer valer interesses políticos pessoais ou a favor de um determinado grupo, tornando a Constituição Federal letra morta, acontecimentos recentes indicam que esse comportamento não é uma exceção, mas, na verdade, uma das faces do crescimento do autoritarismo e a derrocada do Estado Democrático de Direito.
Diversos exemplos demonstram que a nefasta polarização política tem assolado às instituições públicas. A defesa do passado sombrio de nossa história não se restringe aos rompantes esquizofrênicos do presidente da República, o fatídico caso do tweet do general Villas Bôas demonstra a resistência de grande parte de nossas instituições em elucidar os fatos do passado. Os fantasmas da Ditadura Militar, de certa forma, ainda fazem corpo mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Recente decisão prolatada pela 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3° Região demonstra que, a depender do caso, o Poder Judiciário tem-se contaminado por essa polarização. Atualmente, no Brasil, a ideologia veste a toga. O caso de Antonio Torini, anistiado político e torturado na Ditadura Militar, comprova que no conflito entre a ideologia do julgador e norma jurídica, a ideologia vence de goleada e o direito é simplesmente suprimido.
O caso trata-se de uma ação movida pela família de Antonio Torini em que se pleiteia indenização por danos morais contra o Estado brasileiro pelos atos exceção de que Torini fora vítima durante os “anos de chumbo” da Ditadura Militar, tais como, a tortura por mais de 49 (quarenta e nove) dias nos porões do DOPS; a sua prisão pelo crime de compor “partido ilegal”; a cassação de seus direitos políticos, a pena de banimento do Estado brasileiro e a inclusão de seu nome na “Lista Suja” do Estado brasileiro, esta, por sua vez, consistia no repasse dos dados dos trabalhadores tidos como subversivos para que não fossem empregados pelas empresas privadas, fato perpetuado até o ano de 1998, data de seu falecimento.
Em primeira instância, o juiz federal condenou o Estado brasileiro no valor de R$ 150 mil reais à título de indenização pelos danos morais sofridos em razão dos nefastos atos de perseguição política praticados contra Torini. Em trecho da decisão, relatou o magistrado José Denilson Branco:
“Destaca-se dos documentos que Antonio Torini foi perseguido, preso e torturado nos períodos indicados na petição inicial, o que caracteriza o motivo meramente político para sua prisão, visto que participava de movimentos revolucionários contrários ao regime de exceção, considerados subversivos ao estado de exceção, mediante o uso de técnicas atualmente consideradas reprováveis e ilegais.”
Apelaram os advogados da família para majorar os valores e mesmo ao contrário do que prevê o texto de lei, a 6ª Turma do E. TRF-3 decidiu derrubar a decisão de primeiro grau e valeu-se de uma fundamentação que, além de apontar um viés altamente ideológico, agride o Estado Democrático de Direito e a democracia.
No voto do desembargador-relator fica demonstrado o enviesado caráter político de sua decisão, pois, entendeu por negritar o fato de que Torini era militante de esquerda. Vejamos trecho do voto:
A inicial acusa agentes públicos federais de prisão, processo e julgamento de Antonio Torini, líder de movimento esquerdista incrustrado na fábrica da Volkswagen do Brasil, movimento esse que pretendia subverter o regime vigente a partir de 1º de abril de 1964 e substitui-lo por um governo comunista, com as linhas gerais do Programa Socialista para o Brasil, elaborado pela organização revolucionária marxista Política Operária (Polop)
O Polop, após a sua dissolução por causa da repressão, tornou-se o MEP. Segundo consta do voto, o “líder de movimento esquerdista” e seu movimento “subversivo” se pautavam na militância de ideias marxistas de forma pacífica, por meio de panfletagens e trabalhos de consciência de classe, como apontou o desembargador:
O MEP jogou seus esforços numa política de construção partidária e de ligação com o movimento de massas. Destacou-se nessa política o trabalho de oposição sindical e de construção de tendências dentro do movimento. Foi através dessa prática que o MEP contribuiu para fortalecer a resistência à ditadura dentro do movimento das classes trabalhadoras, o surgimento de um sindicalismo combativo e a formação política dos setores mais atuantes do movimento de massas. Mais tarde, com as iniciativas para a formação de um partido legal e de massas, ele desempenhou um papel importante, no plano ideológico e prático, em relação à construção do PT.
Somente em Estados de exceção, independente da ideologia no poder, o exercício dos direitos fundamentais é criminalizado, uma vez que num Estado Democrático de Direito a ordem se inverte, ou seja, tornam-se crimes atos de perseguição política. Contudo, para a 6° Turma TRF-3° Região, Torini fora o “criminoso”, o que ensejou a sua punição nos rigores da lei, eis o trecho do Acórdão:
Está claro que Antonio Torini colocou-se, ativamente, contra a ordem então vigente e que suas ações e condutas amoldavam-se a delitos previstos pela legislação que – mal ou bem – representava o direito repressivo vigente. […]
Isto é dito para que fique claro que a prisão, a incomunicabilidade, o julgamento e o banimento sofridos por Torini eram as consequências jurídicas de seus atos que tendiam à implantação de uma ditadura comunista no Brasil, em confronto com a opção política vigente.
Essa decisão causa regozijo aos que clamam pelo fim da democracia e nostalgia àqueles que atualmente rogam à volta da Ditadura Militar. A tortura, a prisão, a incomunicabilidade e o banimento sofridos por Torini, segundo a 6° Turma do TRF-3, foram legais. Em outras palavras, quem mandou se colocar contra a opção política vigente?
A princípio, poder-se-ia considerar que um “comunista” não pode ser indenizado pelos atos de que perseguição política de que fora vítima, mas ela é muito mais abrangente, todos aqueles que defenderam a soberania popular e lutaram pela redemocratização do país foram “criminosos”, afinal, opuseram-se contra a ordem vigente.
Teríamos então ícones da redemocratização do país como criminosos? Tornar-se-iam criminosos àqueles que hoje nos permitem falar livremente, exercer nossos direitos políticos e lutar por um país melhor?
Aliás, a tese de que atos de exceção se amoldavam às leis da época fora a principal defesa de acusados por crimes contra humanidade ao longo de toda história. Talvez, na linha do entendimento do referido Acórdão, os que cometeram crimes contra os direitos humanos seriam absolvidos.
Carl Schimitt aplaude! O ideólogo utilizado na Alemanha no período pré-segunda guerra defendia que a soberania popular se restringiria a escolher o líder da nação para que este pudesse determinar sem qualquer limitação o inimigo, fosse ele interno ou externo.
Uma vez escolhido o líder, introduzia-se o pensamento da guerra, caberia ao líder produzir atos normativos, administrativos e ordenar o aparato estatal para extirpar do seio da nação os inimigos que impediam a unidade popular. Sendo que, numa guerra, o inimigo perde a sua qualidade como ser humano, só impera uma lógica, a total exterminação daqueles que ameaçam a unidade popular.
No caso brasileiro, durante o regime ditatorial, os inimigos foram os comunistas, os liberais, os democratas, os sindicalistas, os estudantes, as pessoas negras, as feministas. Em suma, todos que se posicionaram contra os valores e normas do poder vigente durante a época.
A decisão macula os valores liberais ocidentais, não há direitos humanos, a Declaração dos Direitos Universais assinada pelo Brasil em 1948 e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 não passam de meras folhas de papel ou retórica.
Salienta-se, ainda, que a própria fundamentação de que, com a edição do AI-5, inaugurou-se uma nova ordem constitucional e que os atos se amoldavam à legislação da época é discutível. Uma ordem constitucional que não impõe limites a um dos Poderes não é uma ordem constitucional, é um não direito, uma negação deste.
Como bem ensina Hannah Arendt, não existe o direito em Estados Totalitários, o poder não tem limites e, como nos “anos de chumbo” da ditatura, as ordens são estipuladas sem qualquer tipo de oposição, seja ela legislativa ou judiciária Portanto, no máximo, os atos de exceção poderiam ser observados sob a ótica da Constituição de 1967, a qual previa em seu artigo 150 um extenso rol de direitos fundamentais, todos estes descumpridos pelo Regime Ditatorial.
Além disso, já que não havia ordem constitucional nos “anos de chumbo”, valer-se do ordenamento jurídico vigente à época da Ditadura Militar para julgar casos de torturados e perseguidos políticos representa uma latente agressão à Constituição de 1988, o olhar sob o ordenamento jurídico e sob as condutas e comportamentos a serem rechaçados em uma democracia deve observar o texto vigente.
Ademais, o Acórdão passa ao largo do direito de resistência. Teoria construída desde o século XVI pelos huguenotes na França que considerava o direito de resistir frente aos atos do soberano degenerado em tirano quando este não observava os direitos naturais.
Desde daquele tempo, o direito de resistência possui um papel central na tutela dos direitos fundamentais, posto que não há teoria de direitos humanos que não preveja implícita ou explicitamente os direitos de resistir à atos de exceção.
Por decorrência lógica, não há que se falar em direitos fundamentais se não existir a possibilidade de o povo resistir frente aos atos de tirania praticados pelo governante. Nesse sentido, até mesmo a luta armada é legitima frente aos atos de tirania de uma ditadura.
No caso de Antonio Torini, tendo em vista que sua oposição aos atos de tirania da ditadura se deu nos campos das ideias, o Acórdão não só descumpre com os direitos insculpidos em nosso texto constitucional, mas também nega a forma mais primária de se resistir à tirania, o direito de resistência por forma pacífica, a expressão de idéias opositoras à tirania. Decide-se, portanto, a favor da barbárie e do que há de mais medieval.
Em outras palavras, não há espaço, mesmo com um esforço hercúleo do intérprete em justificar que atos de perseguição por motivações exclusivamente políticas encontram guarida na atual Constituição.
A propósito, em tempos obscuros e de desmoralização política, nunca é tarde para demonstrar e rezar como um mantra as disposições de expressas garantias de todos os brasileiros contra atos praticados pelo Estado:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;
XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
A ideologia do Acórdão e a ode à ditatura não param por aí. A contrariedade política com o fato de que a Democracia brasileira, ainda que de forma torta, buscou indenizar todos aqueles que foram perseguidos como tentativa de pacificação social e reconciliação com seu passado sombrio é nítida, destaca-se outro trecho do Acórdão:
O legislador optou, como manobra política, por indenizar administrativamente essas pessoas e essa vontade deve ser respeitada.
Nota-se, portanto, que os “criminosos” políticos que ousaram lutar pela redemocratização do país sequer deveriam ser indenizados. Amolda-se ao seguinte pensamento de parcela da sociedade: “Ah! esses esquerdistas ou democratas que não gostam de trabalhar buscando dinheiro fácil como ‘manobra política’ para serem indenizados pelos atos ‘legais’ de perseguição política”. Como se restituir os valores deixados de receber pela perda de emprego, cargo ou função por atos de exceção fossem contrários ao ordenamento jurídico.
A violação da privacidade, a honra, dignidade, a liberdade de associação, a liberdade de consciência e de reunião não significam nada, afinal, quem quer(ia) um país justo, livre e solidário assumiu deliberadamente o ônus da Ditadura Militar em violar as garantias básicas de qualquer ser humano, inclusive a tortura, ao menos que seja possível provar esta última.
Apesar do Desembargador ter proferido entendimento de que não há provas da Tortura. Em modo diverso, as provas comprovaram que Torini, nos anos de chumbo da ditadura, permaneceu encarcerado por mais de 49 dias nos porões do DOPS sob os cuidados de Delegado listado na lista dos notórios torturadores, o Delegado Affonso Celso de Lima Acra.
Ora, nenhum torturador confessa e produz documentos de que torturou, o entendimento proferido supõe uma exceção à regra, posto que desafia o que ordinariamente acontecia.
O que se presta este singelo texto não é tecer críticas à instituição do Poder Judiciário, ao contrário, busca-se enaltecer a sua função precípua prevista em nossa Constituição, o último Poder acessível ao cidadão para a defesa de seus direitos e do Estado Democrático de Direito.
A crítica, de forma respeitosa e sem qualquer conotação pessoal, afinal, uma decisão judicial representa – ou deveria representar – uma posição do Estado brasileiro frente às questões, é voltada somente para essa decisão ébria de preconceitos e de uma posição política frontalmente contrária à ordem jurídica inaugurada pela Constituição Federal de 1988. O entendimento da 6° Turma não só vilipendia os direitos fundamentais previstos em nossa Constituição e os Tratados Internacionais assinados pelo Brasil, mas também restringe a função institucional do Poder Judiciário.
Caso essa decisão seja perpetuada pelos Tribunais Superiores e as posições ideológicas de nossos julgadores se sobressaiam em detrimento da ordem jurídica, não será mais necessário “um cabo e soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal”, a própria toga apagará a luz e fechará a porta.
Pedro Estevam Alves Pinto Serrano é Bacharel, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com Pós-Doutoramento em Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Ciência Política pelo Institut Catholique de Paris e em Direito Público pela Université Paris-Nanterre; Professor de Direito Constitucional e de Teoria do Direito na Graduação, no Mestrado e no Doutorado da Faculdade de Direito da PUC/SP.
Bruno Luis Talpai é advogado, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestrando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – USP, Mestrando em Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e Pós-Graduando em Ciência Política pela Fundação Escola de Sociologia de São Paulo – FESPSP.
Victor de Almeida Pessoa é advogado, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, pós-graduando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e Pós-Graduando em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG.