A lei que é uma droga
A decisão do Supremo é uma redução de danos muito frágil, porque corre o risco de ser elitista
“É preciso haver tratamento isonômico na aplicação da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) para garantir que a diferenciação entre usuários e traficantes não se dê segundo características como idade, condição econômica, cor da pele e grau de instrução da pessoa abordada, mas, sim, com relação à quantidade de entorpecente apreendida e às condições do flagrante”.
Foi esse o entendimento que formou maioria na terça-feira, 25 de junho, no Supremo Tribunal Federal. O porte de maconha para consumo próprio não é mais crime. Prevaleceu o voto do ministro Gilmar Mendes, relator do caso. Com ele, votaram favoráveis Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, e a então ministra (porque hoje está aposentada) Rosa Weber. Dias Toffoli e Luiz Fux também foram pela via da descriminalização, mas consideraram ser constitucional o artigo 28 da Lei de Drogas. Esse dispositivo prevê crime ao fixar penas para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização”. André Mendonça, Nunes Marques e Cristiano Zanin votaram contra a posse de maconha para uso pessoal, permanecendo como crime.
As instâncias inferiores do Judiciário não poderão divergir e sentenciar formas diferentes da decisão do Supremo, pois trata-se de um julgamento de repercussão geral.
Em tese, as penas previstas na norma não levam à prisão, mas fazem com que pessoas sejam fichadas criminalmente, ao serem pegas usando a maconha. A falta de distinção em relação à quantidade que caracteriza o uso e o tráfico na lei faz com que policiais tenham exagerado poder nas mãos. É a autoridade policial a responsável por fazer o flagrante, portanto é ela quem decide o que é uso e o que é tráfico, de acordo com a avaliação do “local” e das “circunstâncias” da apreensão. Algo, no mínimo, disfuncional.
Em março, saiu uma pesquisa inédita do Instituto de Economia Aplicada, o Ipea. O estudo mostrou que, no país, 85% dos processos tiveram prisões em flagrantes e a Polícia Militar esteve presente na maioria (76,8%). Já a Polícia Civil, a força de polícia judiciária, responsável pelas investigações criminais, só esteve presente em 19,1% dos flagrantes. Dados que confirmam um cenário de investigações sumaríssimas nesse tipo de crime.
O Tribunal ainda não estabeleceu a quantidade que diferencia uso e tráfico. A proposta com mais adesões até o momento é a do ministro Alexandre de Moraes: devem ser presumidos como usuários aqueles que guardam, adquirem, têm em depósito, transportam ou trazem consigo até 60 gramas de maconha, ou seis plantas fêmeas, preservando as “circunstâncias” da apreensão e a “avaliação” do local.
Na história de um decidir no lugar do outro, o peso e a medida
O presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), se pronunciou em seguida da decisão do Tribunal. Para ele, que é autor de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que proíbe o porte de qualquer tipo de droga, a descriminalização via decisão judicial é uma “invasão à competência” do Legislativo. Arthur Lira (Progressistas-AL), presidente da Câmara dos Deputados, também reagiu e instalou na mesma noite uma comissão para analisar a PEC das drogas na Câmara.
De fato, há uma questão de ordem democrática. Legislativos, por meio das maiorias parlamentares, sempre terão maior legitimidade do que decisões tomadas por juízes não eleitos pelo povo. Entretanto, nesse caso, há de se considerar dois elementos fundamentais. O primeiro diz respeito à inação. Nossa elite política, à direita e à esquerda, escapou-se vergonhosamente de rediscutir a criminalização das drogas leves, gerando violação de direitos. Sistematicamente, usuários são classificados como traficantes, ficando sujeitos a penas privativas de liberdade. De acordo com o Ipea, cerca de um terço de todos os presos do Brasil estão na cadeia por causa da lei antidrogas. São 215 mil pessoas numa população carcerária de 750 mil, muitos dos quais jovens pobres condenados pela venda de pequenas quantidades. Coube ao Supremo se pronunciar sobre o assunto, quando chamado.
O segundo diz respeito aos mecanismos de democracia direta previstos no artigo 49 da Constituição Federal. Ora, tratando-se de uma questão de ordem democrática, o Congresso Nacional, competente para convocar plebiscito e autorizar referendo, por que hesita em viabilizar um debate aberto e político na sociedade brasileira? Porque fato é que o próprio Congresso tem problemas de ordem democrática.
Agora, o sentido moral e social da decisão do Supremo Tribunal Federal depende, literalmente, de uma balança de precisão. Os ministros debatem o caráter da quantidade, em gramas, que definem tráfico ou uso. Gramas injustas: números confortáveis para o consumidor de classe média e, evidentemente, uma sentença condenatória sem apelação para os “aviõezinhos”. Tudo permanece mais ou menos como está, com a polícia ostentando um menor poder nas aparências. A “guerra às drogas” segue o seu rumo nefasto nas periferias e nas favelas.
Há um lado perverso do Brasil, guiado pelo racismo estrutural e o recorte quanto à classe social que faz do flagrante de tráfico ou uso um à la carte, baseado na vontade do freguês. Outra conclusão da pesquisa do Ipea foi a de que não há uma padronização nas informações sobre quantidades apreendidas nos processos. Em muitos casos, a droga era pesada dentro das embalagens, em outras fora, e na maioria não havia sequer essa informação. Não há sequer um protocolo nacional para procedimentalizar esse tipo de flagrante. Nessa altura da discussão, o Supremo se pronunciará sobre o tema?
Em tais circunstâncias, não é razoável imaginar que prevaleça o tratamento isonômico da lei, a partir do critério da quantidade. A balança do Supremo precisaria pender para quantidades de maconha suficientes para converter o “aviãozinho” em “consumidor”, anulando parcialmente a Lei de Drogas e limitando a criminalização à elite do narcotráfico. Sob um falso manto de coerência, esconde-se uma distinção cínica entre classes sociais: um fumará sem ser crime, o outro ingressará na universidade do crime instalada nos presídios.
A PEC de Pacheco é um ilusionismo de barbárie, na medida em que se continua a fingir que a “guerra às drogas” limita o uso de substâncias entorpecentes, enquanto nas ruas do centro de São Paulo multidões de viciados acendem cachimbos de crack em plena luz do dia. Pelas esquinas do Brasil, garotos são presos vendendo pequenas quantidades de maconha, enquanto o PCC organiza embarque de toneladas de cocaína em portos como o de Santos, abastecendo mercados consumidores poderosos como a Europa. Só um debate franco e aberto sobre a legalização poderá parar a máquina de encarcerar pessoas em massa, responsável por reforçar as facções do crime organizado. A decisão do Supremo, enfim, é uma redução de danos muito frágil, porque corre o risco de ser elitista.
Rafael Pepe Romano é bacharel em Direito e graduando em Ciências Sociais pela FFLCH-USP.