A luta armada e a violência das ditaduras
Não há déficit de democracia no Brasil se considerarmos a competição partidária, voto secreto e universal, a renovação periódica dos governantes e presença de oposições. Contudo, no âmbito deste amadurecimento democrático é lastimável a forma como José Sarney alude aos movimentos que participaram da luta armada
O sistema político eleitoral brasileiro apresenta inúmeros problemas: a corrupção endêmica, a medida provisória, herança dos tempos da ditadura, o financiamento das eleições e as trocas oportunistas de partido, o que torna imperativo uma ampla reforma política. Feitas estas ressalvas, não há déficit de democracia no Brasil se por isto se entender competição partidária, voto secreto e universal, renovação periódica dos governantes, presença de oposições partidárias: esta tem sido a regra de nossa história política recente.
Contudo, no âmbito deste amadurecimento democrático é lastimável a forma como o ex-presidente da República e atual presidente do Senado, José Sarney, alude aos movimentos de oposição política que adotaram a via da luta armada, entre outros os Tupamaros e Montoneros. Sua Excelência poderia expandir-se para a América Central. A Guatemala é exemplar nesse sentido.1
Sigo as trilhas do livro de Ralph Lee Woodwar Jr, PhD e professor de várias universidades, inclusive da Academia Militar de West Point. Após mostrar a estreita ligação de John Foster Dulles, secretário de Estado do governo Eisenhower, com a United Fruit Company, na operação denominada “El Diablo”, ele aponta a CIA como envolvida na intervenção que derrubou o presidente eleito da Guatemala, Jacobo Arbenz, em 1954.
Vale a longa citação: “Uma onda de prisões, assassinatos e exílios seguiu-se (…) às brutais políticas dos sucessivos governos militares pelos 30 anos seguintes; de acordo com as organizações de direitos humanos, mais de 200 mil civis morreram nas mãos dos paramilitares a soldo dos grandes proprietários. Eram os assim chamados “Mano Blanca”, que depois passaram a se denominar “Olho por Olho”.
Segundo pesquisadores franceses, na América Central houve confrontos armados entre guerrilhas e governos, estas enfrentando, no mais das vezes, ferrenhas ditaduras, como a de Somoza. Centenas de milhares de pessoas, na maioria civis, foram assassinadas por organizações paramilitares.
Também não é mencionado o Paraguai de Stroessner, nem o Brasil, onde a “linha dura” preponderou sobre os militares que se opunham ao sequestro e à tortura, dicotomia que em tempos recentes, numa metamorfose semântica, passou a ser denominada de “ditabranda”.
Basta ler livros como Brasil: nunca mais ou Direito à memória e à verdade para ter uma visão do que foram os “anos de chumbo”: 474 mortos e desaparecidos, devidamente comprovados pela Comissão Nacional de Direitos Humanos, além de outros casos em que as investigações ainda não foram concluídas.
Uma pesquisa realizada no final dos anos 19702 mostrou que, entre l965 e l978, mais de 5 mil pessoas foram condenadas pelas auditorias militares, 4.877 tiveram seu mandato político cassado e 10 mil foram exiladas.
Além disso, houve intervenção em 536 sindicatos, proibição de 600 peças teatrais, de mil músicas e 270 assuntos censurados pelos órgãos competentes. Esse trabalho de censura era feito por profissionais ou voluntários ligados aos 16 órgãos de informação.
Milhares de mortos
Qualquer pessoa que fosse ao Chile durante o período Pinochet poderia ouvir relatos de ex-prisioneiros detidos no Estádio Nacional, que descreviam as torturas da ditadura, cuja ferocidade produziu entre3 mil e 7 mil mortos e desaparecidos.
É aterrador saber que na véspera de chegar a Santiago, nos meados da década de 1980 – portanto, muitos anos depois do golpe de 11 de setembro de 1973 –, três oponentes ao regime foram degolados e os corpos largados nas vias públicas. No Uruguai, entre mortos e desaparecidos, foram mais de 200 pessoas. Na Argentina, esses terríveis acontecimentos também são amplamente conhecidos, tendo sido assassinadas 30 mil pessoas.
É exemplar o caso das “Madres de Maio” na luta contra a ditadura militar. Com seu passo lento e sua persistência caminhavam com as fotografias dos parentes desaparecidos: no início eram denominadas de “loucas”, pois o medo impedia que as pessoas nelas acreditassem. A mudança dessa denominação – de “loucas” para “madres” – traduzia uma metamorfose de percepção que passou a ter amplo significado social e político, o movimento foi de magna importância na derrocada da ditadura.
Em todos os países os documentos mencionam estupro, tortura de mulheres grávidas e presença de crianças para intimidar e forçar os pais a confessar atos que muitas vezes não haviam cometido. Normalmente, esses opositores políticos eram jovens universitários, profissionais liberais, variando a presença de operários e camponeses de acordo com a história política de cada sociedade.
Inúmeros relatos também foram registrados acerca da Operação Condor, estratégia de aniquilamento levada adiante por seis países sul-americanos, incluindo o Brasil, e cujo aparato de repressão atuava em estreita ligação – “sem freios ou fronteiras” – e sob inspiração de Washington. Segundo o Agrupamento de Familiares Desaparecidos, essa colaboração intergovernamental foi responsável pelo sequestro e morte de 1.200 cidadãos de várias nacionalidades.
Professores de universidades, nos idos de 1970, conviviam com a prisão, tortura e exílio de colegas; com a rotineira presença da polícia nas salas de aula; com o assassinato de alunos nas prisões do governo Médici, cujo trágico exemplo pode ser personificado em Alexandre Vannuchi, da USP, homenageado por seus colegas e cujo nome honra o Diretório Central dos Estudantes.
Os mortos, torturados ou exilados não se contabilizam, pois isso significaria dizer que, num determinado país, foram relativamente poucos, e em outros foram muitos. Essa sinistra contagem, frequentemente apregoada por quem a praticou, esconde uma questão mais profunda que, nas palavras de Hanna Arendt, é o direito de ter direitos, cujo núcleo fundamental reside na própria vida.
Essa questão coloca outro ponto fundamental: no confronto da luta armada, a guerrilha sequestrou, aprisionou, mutilou e matou militares e civis em nome da liberdade, da igualdade, da emancipação dos povos, do socialismo, do que quer que seja, mas o fez como escolha individual: o que caracteriza esses fatos é que, do ponto de vista jurídico, eles foram praticados na qualidade de pessoa física.
Por outro lado, aqueles que os perpetraram a mando de um governo, portanto, portadores de um mandato decorrente do Poder Público, agiram em nome do Estado, que tem o dever de preservar a vida de todas as pessoas, independentemente de sua coloração político-ideológica.
O crime de magna grandeza ocorre quando, em nome de preservar a democracia ou a revolução, o Estado faz uso da violência de forma arbitrária, posto que qualquer concepção de Direito e de Justiça, portanto, do império da Lei, não pode se balizar no sequestro e na tortura, sob pena de tornar-se um Estado assassino.
Se estas afirmações têm fundamento jurídico, os documentos do major Curió, só agora publicados, são seminais.3 Eles mostram que “a maioria dos 41 guerrilheiros mortos se entregaram ou foram rendidos em situações em que não ocorreram disparos (…) foram presos, amarrados e executados quando não ofereciam resistência (…): a ordem de cima – continua o major subserviente de Médici-Geisel – é que só sairíamos quando pegássemos o último”.
Exemplo típico da assim chamada “obediência devida”, o algoz enfatiza: ”O inimigo, por ser inimigo, tem de ser respeitado”. Só que esse respeito segue as trilhas cujo princípio é a matança, desrespeitando a essência do Estado de Direito. Os Curiós e seus superiores existiram em todas as ditaduras latino-americanas que, felizmente, não mais predominam no cenário político dos últimos 20 anos.
Uma palavra final: o pensamento do ex-presidente da República e atual presidente do Senado presta-se como exemplo, pois algumas lideranças militares e civis que com ele ainda se identificam, manifestam posicionamentos que aproximam esse rol de indivíduos do lado violento do período ditatorial.
*Lúcio Kowarick é professor titular do Departamento de Ciência Política da FFLCH/USP.