A luta para manter a perspectiva de igualdade de gênero no ensino
Em carta ao presidente do Peru, autoridades da ONU defendem que a igualdade de gênero seja mantida e fortalecida no currículo nacional da educação básica
Atualmente no Peru, o Ministério da Educação luta para manter a perspectiva de igualdade de gênero como tema transversal do Currículo Nacional de Educação Básica (CNEB), diante da resistência de grupos conservadores e confessionais fanáticos do país, que são contrários à inclusão do debate sobre gênero nas escolas, e defendem a retirada da palavra “gênero” do novo currículo. Um desses grupos, chamado Padres en Acción, inclusive, apresentou uma demanda judicial para impedir que o Ministério de Educação aplicasse o currículo nacional, processo esse que é julgado atualmente pela Corte Suprema do país, sob forte pressão pública, contrária e a favor, da manutenção do enfoque de gênero no CNEB.
Nesse contexto, a relatora especial sobre o direito à educação da ONU, Koumbou Boly Barry, e a presidenta do Grupo de Trabalho sobre Discriminação contra as Mulheres na Lei e na Prática da ONU, Ivana Radačić, enviaram uma carta ao presidente do Peru Martín Vizcarra, em que o incentivam a manter a igualdade de gênero como um dos temas transversais do currículo. A carta foi enviada após um pedido de intervenção que fizemos à ONU, como Campanha Peruana pelo Direito à Educação (CPDE), uma vez que no dia 20 de agosto a Suprema Corte emitiria uma sentença final sobre o processo iniciado pela Padres en Acción, decisão essa que posteriormente foi adiada por falta de votos.
O novo currículo foi aprovado em junho de 2016, e o enfoque de direitos é uma de suas abordagens transversais, ao lado de temas como inclusão, igualdade de gênero, interculturalidade e meio ambiente. O currículo é coerente com princípios da Lei Geral de Educação (2003), como ética, inclusão, equidade, qualidade e democracia, e sua aplicação permitirá o desenvolvimento de uma formação para a cidadania e formas de coexistência para o enriquecimento e o aprendizado mútuos. A carta das autoridades da ONU afirma que o currículo “é um instrumento fundamental para gerar mudanças estruturais, dando às crianças ferramentas para o respeito aos direitos humanos e para a luta contra a violência de gênero”.
No entanto, a resistência de grupos conservadores à igualdade de gênero como tema transversal do currículo nacional foi notada desde o início de sua discussão. Assim como na Colômbia e em outros países da região, o movimento “Con mis hijos no te metas” surgiu no Peru, liderando uma campanha de “desinformação” via diferentes meios de comunicação, para difundir a falsa ideia de que o novo currículo imporia uma “ideologia de gênero” nas escolas, contrária aos valores tradicionais “da família”. Grupos religiosos conservadores – evangélicos e católicos – deram, então, conteúdo à falsa “ideologia de gênero”, dizendo que esse conceito e sua abordagem promoveriam o aborto e a homossexualidade nas escolas públicas. Esse discurso predominou em “marchas pela vida”, contra o aborto e o falso conceito de “ideologia de gênero”, que tiveram forte adesão de setores populares.
Acreditamos que a rejeição do currículo nas ruas ocorreu em um contexto de incertezas e insatisfação das cidadãs e dos cidadãos do país diante da falta de governança que caracterizou a gestão do então presidente Pedro Pablo Kuczynski,[1] que estava à mercê de um congresso conservador predominantemente fujimorista, com a presença de pastores evangélicos. Essa tendência conservadora também se observa no Judiciário, que tem sido criticado pela repetição de sentenças tímidas em casos de violência contra a mulher, ou corrupção.
Essa situação estimulou a formação do grupo Padres en Acción, que aproveitou o momento e o terreno favorável para aplicar uma estratégia já utilizada por coletivos semelhantes em outros países:[2] apelar ao Judiciário e obter o apoio do Congresso. Padres en Acción apresentou uma ação popular constitucional para remover a palavra “gênero” do currículo, argumentando que os pais e as mães não haviam sido consultados durante sua elaboração.[3] O objetivo era impedir a implementação do novo currículo, que começaria em janeiro de 2017. O processo judicial foi iniciado em 16 de fevereiro de 2017. Paralelamente, as “marchas pela vida” e o “Con mis hijos no te metas” foram se tornando notórios, ao mesmo tempo em que aumentavam a disseminação de mensagens contrárias à falsa “ideologia de gênero” nas escolas, semeando medo entre docentes, mães e pais de famílias desinformados sobre a igualdade de gênero e temáticas relacionadas.
O Judiciário aceitou a demanda e, em agosto de 2017, a Primeira Sala Civil da Corte Superior peruana declarou o currículo parcialmente nulo, especificamente em relação a duas linhas de seu texto, que mencionavam a abordagem da igualdade de gênero. As duas partes apelaram, e o caso ainda será julgado definitivamente pela Corte Suprema.
Grupos como Padres en Acción, seus seguidores e aliados negam os direitos de mulheres e meninas, assim como de pessoas com diversas identidades de gênero e orientações sexuais. Seu comportamento é altamente discriminatório e suas mensagens semeiam ódio, ignorando os altos índices de gravidez na adolescência e as persistentes violações sexuais e o feminicídio de que são vítimas meninas e mulheres no país e na região, casos esses que resultam de um machismo profundamente enraizado e da ignorância sobre as manifestações e expressões da sexualidade de homens e mulheres.
Não reconhecem que o conceito “gênero” é referenciado na legislação nacional e em convenções internacionais há décadas, muitas das quais ratificadas pelo Estado peruano. A igualdade de gênero é postulada na Lei Geral de Educação, na Lei de Igualdade de Oportunidades (2007), no Plano Nacional de Combate à Violência de Gênero 2016-2021 e no Plano Nacional para a Igualdade de Gênero 2012-2017. Como membro das Nações Unidas, em 2015, o Estado peruano subscreveu a Agenda de Desenvolvimento Sustentável 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). O ODS 4, que enfoca o direito à educação, determina a obrigação dos Estados de garantir uma educação de qualidade, inclusiva e equitativa para todas as pessoas até 2030; já o ODS 5 prevê o compromisso dos países com a garantia da igualdade de gênero e do empoderamento de mulheres e meninas, como condição para a consolidação da democracia e da justiça.
Em março deste ano, a Primeira Sala Civil concedeu uma medida cautelar ao grupo Padres en Acción, suspendendo a efetivação do currículo, até última decisão sobre o caso na Corte Suprema do país. A situação é inédita e inadmissível, pois enfraquece a autoridade do Ministério da Educação como responsável legítimo pela definição e o desenvolvimento das políticas educacionais. Enquanto isso, a Comissão de Educação do Congresso da República recebeu a atribuição de revisar e aprovar, ou não, os novos textos escolares produzidos pelo Ministério.
No dia 28 de julho, o presidente Martín Vizcarra fez declarações encorajadoras em mensagem à nação: “Uma das principais causas da violência é a falta do enfoque de gênero nas políticas públicas, seguida da existência de padrões enraizados, como o machismo. Antes do final do ano, aprovaremos a ‘Política Nacional sobre Igualdade de Gênero’, que será o principal instrumento de orientação para um comportamento social livre de discriminação contra as mulheres”.
Apesar desse discurso, mantém-se a possibilidade de que a Corte Suprema decida contra a abordagem sobre gênero no currículo. A proximidade do julgamento final e a ameaça de uma sentença desfavorável aos direitos à educação e à igualdade de gênero motivaram a Campanha Peruana pelo Direito à Educação a solicitar o apoio das Nações Unidas, especialmente após evidências de corrupção generalizada no Poder Judiciário do país. A pronta resposta de Boly Barry e Radačić foi uma demonstração do apoio que a ONU pode prestar à sociedade civil na defesa dos direitos humanos. As recomendações e exigências apresentadas pelas autoridades nas Nações Unidas ao governo peruano são um valioso precedente para ações similares de movimentos e organizações da sociedade civil em países onde os retrocessos para a defesa da igualdade de gênero são igualmente preocupantes, como é o caso do Brasil, em que por pressão de grupos conservadores foi retirada a palavra gênero no novo currículo de educação básica, e também do plano nacional e de planos estaduais e municipais de educação.
Em seção na Corte Suprema peruana, o procurador do Ministério da Educação peruano, Luis Huerta Guerrero, afirmou que ninguém tem direito a promover a discriminação: “Os direitos humanos não podem estar sujeitos à opinião da maioria. Eles não podem ser objeto de consulta aos pais”. Os juízes da Corte Suprema, em seção realizada no dia 20 de agosto, empataram em seus votos: foram dois a favor e dois contra a demanda do grupo Padres en Acción, além de um voto nulo. São necessários quatro votos para que uma das partes vença.
Segundo as autoridades da ONU já citadas, caso a Corte Suprema peruana decida contra o currículo, tal sentença violará a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), a Convenção para Prevenir, Erradicar e Punir a Violência contra a Mulher (Belém do Pará) e a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU. Todos esses instrumentos internacionais têm status constitucional no Peru. Esperamos que as juízas e os juízes compreendam que a abordagem de gênero na educação protege os direitos de crianças e adolescentes e contribui para a superação de todas as formas de discriminação, promovendo um país e um mundo com mais respeito, justiça e união.
*Madeleine Zúñiga é coordenadora nacional da Campanha Peruana pelo Direito à Educação.