A maldição do “cidadão de bem”
O “cidadão de bem” é a ficção que sustenta o projeto neoliberal que está em curso: um projeto militarizado, racista, misógino, lgbtfóbico, capacitista
Não é de hoje que a ideia de que “bandido bom é bandido morto” marca posicionamentos individuais e coletivos: pessoas na rua gritam essa frase assim como gritam “pega ladrão”; candidatos a cargos políticos no executivo e no legislativo já usaram essa frase como plataforma de programa de governo; apresentadores de programas sensacionalistas de televisão já garantiram sua audiência ancorados no mesmo discurso. Em contraposição à figura do bandido, foi cuidadosamente construída a versão brasileira do herói, que é o “cidadão de bem”.
O “cidadão de bem” é necessariamente homem – aquele “pai de família”, branco, heterossexual, cisgênero e morador de áreas abastadas das cidades (ou, como dizem no Rio de Janeiro, morador do asfalto). Quando o “cidadão de bem” ainda não é pai, ele é um “partidão”, ele é o “genro que toda sogra queria”. Transformado numa espécie de figura de conduta inquestionável, o “cidadão de bem” encarna e protagoniza todo tipo de agenda conservadora enquanto desvia verba e/ou lava dinheiro ocupando cargos públicos; dirige empresas privilegiadas em licitações e acordos escusos orquestrados pelas bancadas do boi, da bala e da bíblia; seja atuando como profissional liberal ou microempreendedor, está sempre bem vestido, simpático e pronto pra usar seus pequenos ou grandes poderes para reforçar assimetrias.
O “cidadão de bem” combina muito bem com vários tipos de ofício, mas quando pensamos em uniformes, aí é inquestionável: o cidadão de bem fardado ou todo vestido de branco porque é médico, esse poderia ser considerado o “tipo ideal do cidadão de bem”. O nome de um anestesista bordado no bolso do jaleco impõe poderes da mesma forma que os sobrenomes bordados nas fardas de agentes armados de estado. Brasões também reforçam poderes nesses uniformes. O brasão da medicina – bastão com cobra entrelaçada – é atribuído em geral a Esculápio (ou Asclépio), considerado deus da cura ou da cicatrização de acordo com algumas vertentes da mitologia grega. O brasão da Polícia Penal Federal incorpora o próprio brasão da República Federativa do Brasil. Independentemente do número variado de interpretações, brasão é poder. Brasão pressupõe hierarquia entre pessoas, mesmo quando não sabemos o significado das imagens dos brasões.
Quando o “cidadão de bem” exerce funções associadas a brasões, ele se movimenta investido daquele poder, mesmo quando não está uniformizado. Carregando ou não aquele símbolo no peito, o “cidadão de bem” se vê autorizado a violar direitos como se não os estivesse violando: um agente armado fora de serviço invade uma festa e atira no aniversariante, um médico anestesista em serviço invade o corpo de uma paciente sedada com seu pênis. Quando praticados pelo “cidadão de bem”, assassinato e estupro não vão ser lidos como violência pelos demais “cidadãos de bem” que habitam as polícias, o judiciário, as igrejas. E quando outras pessoas enxergam e denunciam as violências praticadas desde o Brasil colonial pelos “cidadãos de bem”, essas são (des)classificadas como radicais e violentas.
O “cidadão de bem” é a ficção que sustenta o projeto neoliberal que está em curso: um projeto militarizado, racista, misógino, lgbtfóbico, capacitista. É esse mesmo “cidadão de bem” que defende o genocídio dos corpos negros argumentando que “bandido bom é bandido morto”, que lucra com a venda de armas no país, que prega e financia “cura gay”, que proíbe exposições como o “queer museu”, que diz que a esquerda quer colocar “kit gay” nas escolas, que apoia linchamento de jovens negros nas ruas, que estupra e/ou defende estuprador, que apoia e financia invasão e desmatamento de terras indígenas, que apoia expulsão e massacre de quilombolas, enfim, que defende a eliminação de todo e qualquer tipo de diferença.
Estamos cada dia mais atentas aos “cidadãos de bem”.
Juliana Farias é antropóloga e pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp.