A mão dos EUA
A incursão militar colombiana no Equador foi uma tentativa de impor à região a estratégia imperial americana: desestabilizar os governos progressistas e anularsuas pretensões de unidade regional, mediante a armadilha da luta antiterrorista
O ataque da Colômbia ao território do Equador não foi casual. Planejado, subordinou-se a uma estratégia posta em prática desde o começo de 2007, quando o presidente colombiano Álvaro Uribe formou a Dipol, uma unidade de inteligência cujo objetivo era a localização dos sete membros do Secretariado das Farc 1.
A operação militar – que teve como saldo a morte de Raúl Reyes, o terceiro comandante das Farc, de outras 24 pessoas, entre guerrilheiros colombianos e civis mexicanos, e de um soldado colombiano, além de três mulheres feridas – foi organizada na base militar Tres Esquinas, situada no departamento de Caquetá. A base, ampliada em função do Plano Colômbia, abriga, além de colombianos, militares norte-americanos. E está equipada com um radar que é parte do programa Rede de Radares da Bacia do Caribe, CBRN 2. Da operação, que se desenvolveu à noite, enquanto o grupo atacado dormia, participaram soldados e a polícia antinarcóticos da Colômbia.
Os atacantes lançaram mão da prática conhecida como hot pursuit, perseguição intensa durante ação bélica, consagrada doutrinariamente pelo chamado “Direito de Perseguição”, que privilegia as necessidades prementes do Estado beligerante em detrimento das normas do Direito Internacional 3.
Somente após a conclusão da operação, o governo do Equador foi avisado. As primeiras explicações oficiais, a de Álvaro Uribe ao seu homólogo Rafael Correa por telefone, e a do ministro da Defesa da Colômbia, Juan Manuel Santos, em coletiva de imprensa, não corresponderam aos fatos, pois negavam que tivesse havido incursão no território equatoriano. O informe posterior das forças armadas do Equador, que divulgou, ao contrário, a presença de unidades uniformizadas colombianas na ofensiva ao acampamento das Farc, realizada mediante bombardeio aéreo e ataque terrestre, desatou a crise e a irritação do presidente equatoriano, que qualificou Uribe de mentiroso.
Desmascaradas, as autoridades colombianas reconheceram, mais tarde, ter havido de fato violação da soberania equatoriana, em função das necessidades e dos interesses de golpear as Farc, eliminando um de seus chefes. Sintomaticamente, Raúl Reyes, o comandante morto, era quem levava adiante as negociações para a libertação dos “reféns permutáveis” – categoria que, na linguagem dos guerrilheiros, incluía, entre outros, a cidadã colombiano-francesa Ingrid Betancourt.
A margem do direito internacional
Vale a pena recordar que esta não foi a primeira vez que tropas colombianas entraram no Equador de surpresa. Ações do tipo, ocorridas em 2005, suscitaram protestos equatorianos e pedidos de desculpas das autoridades colombianas 4, mas a magnitude da operação de março último, seu modus operandie suas conseqüências, levaram as autoridades equatorianas a romper relações diplomáticas com a Colômbia e a denunciar internacionalmente a explícita violação de sua soberania. “Massacre” foi a palavra empregada pelo ministro coordenador da Segurança Interna e Externa do Equador, Gustavo Larrea.
Reunido em meados de março em Santo Domingo, o Grupo do Rio 5 decidiu pelo respeito ao Direito Internacional, a ser aplicado principalmente quando se combate os grupos ilegais, conforme as palavras da presidente argentina, Cristina Fernández de Kirchner. O hot pursuitnão foi aceito, tanto por razões de fundo quanto pelo fato de que não houve a perseguição alegada, mas um ataque meticulosamente planejado. As razões aventadas pelo presidente da Colômbia para não avisar as autoridades equatorianas – a necessidade de garantir o êxito da missão – converteram-se, de fato, em uma afronta ao Equador.
Tal posicionamento do Grupo do Rio constituiu também um repúdio implícito à doutrina militar dos Estados Unidos, de ataque ou guerra preventivos, que engloba o combate a supostas ameaças, estejam onde estiverem, dentro ou fora dos limites nacionais 6. Essa doutrina, que encontrou adeptos no mundo 7, avassala soberanias e abala o próprio conceito, já enfraquecido pela natureza das ameaças que atravessam fronteiras, como as do terrorismo. Na Colômbia, este é encarnado, segundo Uribe e parte da comunidade internacional, pelas Farc e pelo Exército de Libertação Nacional (ELN, o outro grupo guerrilheiro), incluídos na lista das organizações terroristas elaborada pelo Departamento de Estado norte-americano8.
Essa doutrina não podia ser aceita, e menos ainda nas atuais circunstâncias, uma vez que ameaçava vários países vizinhos: a Venezuela, classificada pelos Estados Unidos como uma das integrantes do “eixo do mal”; a Nicarágua (que juntamente com a Venezuela e o Equador rompeu relações diplomáticas com o governo de Uribe), em disputa com a Colômbia por assuntos de soberania sobre ilhas e águas territoriais; ou o Brasil, que desde o começo do Plano Colômbia blindou sua fronteira mediante o Plano Cobra 9. Nenhum deles tinha interesse em que a tese colombiano-americana prevalecesse.
Esse cenário repetiu-se na reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), realizada em Washington no dia 18 de março, apesar de que desta vez os Estados Unidos intervieram diretamente (e como!) nas discussões 10. Ao apoio da maioria dos países sul-americanos às posições equatorianas somou-se o do México, de maneira não tão contraditória com o que as posições direitistas de seu atual governo permitiriam supor, uma vez que outra atitude teria sido muito mal recebida pela opinião pública mexicana, altamente sensibilizada pelos desastrosos efeitos do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos e o Canadá 11. A Colômbia teve que dar explicações ao Continente, pedir perdão ao Equador e, apesar de não haver sido condenada como pedia o presidente Correa, ficou isolada. Porém, mais complicações estavam reservadas ao Equador.
Durante o ataque que destruiu o acampamento onde se encontrava Reyes, salvaram-se milagrosamente três computadores portáteis, de acordo com as afirmações das autoridades colombianas. Neles, teriam sido encontrados documentos que envolvem as Farc com o Equador, a Venezuela e até a Nicarágua. De acordo com esses documentos, ainda não divulgados oficialmente, Hugo Chávez teria financiado o grupo guerrilheiro, enquanto o ministro Gustavo Larrea do Equador teria mantido reuniões com Raúl Reyes. Larrea afirmou ter se encontrado de fato com Reyes, mas com o objetivo de levar adiante a troca humanitária de reféns. O que não aceitou foi a acusaçã
o de haver prometido, em troca, a substituição das autoridades militares e policiais da zona de fronteira com o Putumayo colombiano para, de alguma forma, facilitar a entrada das Farc e sua permanência nessa região limítrofe.
As províncias do norte equatoriano, que fazem fronteira com a Colômbia, são de difícil controle e sempre foram refúgio dos guerrilheiros, que as utilizavam para se proteger por brevíssimos períodos. A presença de um acampamento com estrutura fixa, como aquele onde Reyes foi encontrado, deve-se provavelmente à forte pressão exercida no Putumayo, centro do Plano Colômbia, pelas forças de segurança colombianas. Apesar da ostensiva presença militar e policial, o departamento é considerado uma terra de ninguém, onde a presença do Estado colombiano é somente repressiva e descontínua, o que levou o ministro da Defesa equatoriano, Wellington Sandoval, a afirmar no ano passado que o Equador “faz fronteira com as Farc, não com a Colômbia”12. Enquanto a Colômbia não conseguiu o controle de sua fronteira, o Equador negou-se a blindar a própria, para controlar o fluxo de imigrantes colombianos que fogem do conflito e manter o país como terra de paz, não se deixando envolver em problemas alheios.
Para a Colômbia, o golpe à guerrilha pode significar a concretização do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, impulsionado por Bush e Uribe e bloqueado no Congresso norte-americano pelo Partido Democrata até que se esclareçam os supostos vínculos do presidente colombiano com os paramilitares e se verifique uma substancial melhora no campo dos direitos humanos no país. O presidente Bush insiste no acordo por ser “um assunto de segurança nacional”13. Pode significar também um aprofundamento da luta contra as Farc, o que quase não deixaria qualquer margem para uma eventual saída pacífica do conflito (que Uribe descarta e parece não desejar) para as negociações pela troca de reféns 14.
A situação é muito delicada, uma vez que as Farc poderiam ser levadas a endurecer posição por causa da morte de dois de seus líderes 15, embora isso contribua para desacreditá-la internacionalmente. Para Uribe, ao contrário, essa confusão é muito vantajosa e poderia lhe garantir a reeleição, pela alta popularidade que a morte de Reyes proporciona.
Mas a incursão colombiana foi também uma tentativa de internacionalizar o conflito, submetendo toda a região à estratégia norte-americana. Os Estados Unidos não têm mirado apenas seu adversário declarado, a Venezuela, mas também o Equador, cujo governo prometeu não renovar a permissão para o funcionamento da base militar norte-americana de Manta, o maior Centro de Segurança Cooperativa da América do Sul no combate ao narcotráfico e à guerrilha 16. Correa também disse não à Udenor, a entidade autônoma que recebia fundos norte-americanos para o “sustento pacífico” do Plano Colômbia nos países limítrofes. Estas negativas desestruturam em parte o esquema continental dos Estados Unidos, obrigando a superpotência do Norte a buscar outros países anfitriões para o novo Centro de Segurança. A rede de centros e bases disseminadas pelo continente permite aos Estados Unidos manter o controle sobre a região andino-amazônica.
A tentativa de extensão do conflito colombiano aponta para sua “americanização”: trata-se de dividir, isolar e desestabilizar os governos nacional-progressistas da região e de anular suas pretensões de unidade regional, mediante a armadilha da luta antiterrorista, tal como foi feito com o Equador, que de vítima esteve a ponto de se tornar algoz.
O governo de Correa ficou sob o fogo cruzado dos meios de comunicação internacionais, que apresentaram o Equador como um santuário das Farc 17. A nível interno, os jornais e a televisão (que representam os interesses do segmento da sociedade que tradicionalmente deteve o poder, do qual se sente agora alijado, e que monopoliza a informação sob uma pluralidade fictícia) colocaram o governo na defensiva, tratando de desacreditá-lo perante a opinião pública. No entanto, esta respaldou majoritariamente o presidente Correa. Esses mesmos meios trataram de provocar uma ruptura com a Venezuela, cujas reações em apoio ao Equador foram apresentadas como desmedidas e propiciadoras de um conflito bélico, minimizando as responsabilidades da Colômbia na crise.
Mas os governos e a opinião pública majoritária da América Latina ratificaram com força – se a palavra é cabível – a resolução da OEA 18. Depois da colossal gafe da Colômbia, que mostrou ao mundo inteiro a fotografia, encontrada em um dos computadores de Reyes, que o mostrava supostamente na companhia do ministro equatoriano Larrea – e, ao fim e ao cabo, verificou-se que o personagem não era Larrea, mas o secretário do Partido Comunista da Argentina, Patricio Echegaray –, e depois de quatorze horas de reuniões, a OEA repudiou a incursão da Colômbia no território equatoriano.
Enquanto a Colômbia, apoiada pelos Estados Unidos e pelos países do Caribe, invocava o artigo 22 da Carta da OEA sobre a legítima defesa, o Equador insistia no artigo 21, sobre a inviolabilidade do território dos Estados. Após ter lutado com todas as suas forças, os Estados Unidos terminaram isolados, declarando sua reserva ao documento final, favorável à tese equatoriana.
A crise deixou pairando no ar propostas, como a do Brasil, para a conformação de uma força multilateral de prevenção de conflitos no continente, sem a participação dos Estados Unidos e do Canadá, assim como aquela lançada por Correa de uma OEA somente latino-americana.
Mas apesar destes reveses, Bush e Uribe conquistaram alguns tentos: da crise restaram relações de difícil restabelecimento entre os países em conflito e projetos binacionais truncados na zona fronteiriça. O Plano Equador, centrado na segurança humana com desenvolvimento e paz, encontrará dificuldades de aplicação em uma faixa que agora deverá ser militarizada. Como isso, recursos que poderiam ter uma destinação econômica e social serão possivelmente desviados para reforçar o aparato militar.
Esta crise foi um orquestrado jogo de poder no fio da navalha, talvez a primeira grande escaramuça no confronto entre a visão imperial e as visões nacional e regional.
*Adriana Rossi é doutora em filosofia, professora na Universidade Nacional de Rosário , na Argentina, e do Mestrado em Uso Indevido de Drogas da Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires. Ex-secretária executiva da Rede Latino-Americana de Redução de Danos (RELARD), é especialista na temática do narcotráfico e das doutrinas militares.