A mídia e a ascensão do conservadorismo neofascista nos trópicos
O telespectador, o ouvinte e o leitor não se vêm nas imagens, nos sons, nos textos, enxergam e escutam apenas o outro, o diferente, o não ser, despossuídos de direitos, quase sempre o negro, o pobre, aquele que não merece nem mesmo as “grades” das prisões nacionais
“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais ele aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação ao homem que age, a exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos já não serem seus, mas de um outro que os representa por ele. É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte.”
Guy Debord, A sociedade do espetáculo[1]
No dia 28 de setembro de 2018, véspera de eleição, o apresentador de televisão José Luiz Datena, famoso por suas bravatas e impropérios destilados ao vivo diariamente no telejornal Brasil Urgente, entrevistou, em tom ameno e cordial, o candidato que representa a onda conservadora e neofascista dos trópicos, Jair Bolsonaro. Infringindo a lei eleitoral, que garante o direito ao mesmo espaço e tempo nas redes de televisão, rádio e jornais para todos os candidatos. No dia 4 de outubro de 2018, quase uma semana depois da fatídica entrevista e dois dias antes das eleições presidenciais, a rede de televisão Record destinou 30 minutos de seu horário nobre para veicular outra entrevista do candidato neofacista e apologista da tortura. Esse fato aconteceu no mesmo horário em que sua rival – a rede Globo – televisionava, ao vivo, o debate entre os candidatos à presidência da república, ao qual o neofascista não compareceu, alegando problemas médicos. Assim como a rede Bandeirantes de televisão, a rede Record também burlou e desrespeitou a lei eleitoral, abrindo espaço apenas para um dos candidatos em seu horário nobre. Com esses atos, ambas as empresas deixaram claro seu apoio a Jair Bolsonaro para ocupar o cargo maior do Executivo brasileiro.
Foi a partir desses fatos que pude constatar alguns dos motivos que contribuíram para a ascensão da onda conservadora e, no seu encalço, do neofascismo no Brasil. Um fenômeno pouco comentado pelos especialistas merece relevância: os programas diários pseudojornalísticos e sensacionalistas, de notícias policiais, que, desde a década de 1990, invadiram as televisões, o rádio e estampam as manchetes dos jornais populares (nos jornais esse fenômeno é mais antigo). Na sociedade do espetáculo (da mercadoria), as imagens exercem um poder ludibriador, aquilo que se apresenta ao telespectador se constitui numa verdade, uma “totalidade”,[2]“as imagens dizem tudo”, a aparência e a pseudoconcreticidade tornam-se verdades absolutas, trazidas à tona por jornalistas justiceiros ávidos por sangue. O telespectador, o ouvinte e o leitor não se vêm nas imagens, nos sons, nos textos, enxergam e escutam apenas o outro, o diferente, o não ser, despossuídos de direitos, quase sempre o negro, o pobre, aquele que não merece nem mesmo as “grades” das prisões nacionais (falidas e carcomidas, grandes fábricas de moer gente),[3] mas que são, bem da verdade, partes constitutivas deles mesmos, seu ser outro.
Foi a partir desses programas que parte da população brasileira encontrou voz para suas demandas e anseios conservadores e autoritários, contidos desde o fim da ditadura militar. A redescoberta do inimigo a ser combatido – a população pobre, negra, homossexual, nordestina e de periferia – alimentou uma espécie de inconsciente coletivo que contribuiu para a maior onda conservadora que o Brasil já viu, desde o golpe de 1964. Dentre as bandeiras desse novo/velho movimento está armar o “cidadão de bem” para que ele possa fazer justiça com as próprias mãos. Para essa turma, a saída para crise da segurança pública passa pelo embate, pela violência, por mais armas, mais mortes e mais prisões. Outra bandeira é a da redução da maioridade penal, ou seja, quanto mais cedo encarcerar jovens negros da periferia melhor. Não é à toa que essa onda está associada ao que existe de mais retrógrado e conservador na sociedade brasileira, que são as polícias militares, grande parte das igrejas neopentecostais, o Exército, os políticos (bancada da bala, da bíblia e do boi: BBB) e boa parte da magistratura. Juntos fomentam uma mentalidade abjeta e doentia, que para se combater o crime necessita-se de “bala e fogo” e que “bandido bom é bandido morto”, ou que “quem gosta de direitos humanos é bandido”.
Esses programas fazem parte de quase todas as grandes mídias televisivas, rádios e de jornais impressos populares, celebram a carnificina diariamente e inundam as televisões e capas de jornais com imagens de morte, tortura e violência. Ademais, expõem a grande massa da população negra e pobre ao ódio das classes média e alta, que não suportam sua pequena ascensão social ocorrida nos últimos anos. Esses programas, que têm enorme aceitação e capilarização na sociedade, propagam o ódio e a violência com enorme respaldo dos conservadores, inclusive moradores das periferias e vilas das grandes metrópoles, que já não enxergam mais no seu vizinho preso ou torturado um parente, um amigo de infância, o outro dele mesmo. Criou-se, com a colaboração de todos os envolvidos, a ilusão de que a solução para segurança pública está no uso da violência e em mais rigidez das leis (redução da maioridade penal, pena de morte etc.). Fato este desmentido pela maioria dos especialistas e estudiosos em segurança pública e que, por esse mesmo motivo, não são vistos como bem quistos nesses veículos de comunicação, que detestam se expor ao contraditório. A complexidade que a questão envolve é resumida aos slogans mais nefastos como “guerra às drogas”, “militarização das vilas, favelas e periferias” e “liberdade para o porte de armas”, mensagens que por si só denotam incapacidade de refletir e propor alternativas para problemas complexos arraigados na sociedade brasileira desde a sua fundação, mas que ganham novos contornos no século XXI e reafirmam uma abolição da escravatura mal resolvida.
Outro fato, não menos importante, para a ascensão dessa onda conservadora é o respaldo que seus apresentadores e líderes midiáticos buscam nas palavras de “deus”, normalmente insurgidas para legitimar o uso da violência e incentivar a intolerância. “Esse não é filho de deus”, “esse, nem deus resolve”, “fulano não tem deus no coração”. Essas são algumas das frases que legitimam o genocídio e o linchamento[4] diário das populações negras e periféricas das grandes metrópoles (isso sem contar os índios, homossexuais, mulheres, trans etc.). A grande maioria desses programas representa e dá voz à avalanche neopentecostal (uma das maiores responsável pela onda conservadora neofacista) que tomou conta da grande massa da população, que não encontrou sua redenção terrena na crise da sociedade do trabalho apostando todas as suas fichas ($) numa redenção divina. O ódio às manifestações da cultura negra, às feministas, aos homossexuais está presente e incrustado nas ideologias dos novos sujeitos milionários, usurpadores da esperança e que vivem da pobreza, da miséria e da alienação que impera em parte da população brasileira envolta ao culto à prosperidade (só se for dos pastores!). A composição entre sujeitos midiáticos e profetas do apocalipse alimentou o caldo de misoginia, do preconceito, do racismo e da xenofobia que entornou de vez nas eleições de 2018.
Advertência: retomando Debord, “se o espetáculo, tomado sob o aspecto restrito dos meios de comunicação de massa, que são sua manifestação superficial mais esmagadora, dá a impressão de invadir a sociedade como simples instrumentação, tal instrumentação nada tem de neutra: ela convém ao automovimento total da sociedade”. [5] Esses programas, midiáticos e sensacionalistas, não são a razão de ser do ressurgimento do fascismo, mas simbolizam e retroalimentam esse movimento. Expressam, ademais, o adoecimento civilizacional do capital e revelam, já na própria forma de sua aparência, uma sociedade em crise, carcomida por dentro, que se apega às forças mais retrógadas na esperança (perdida) de que exista alguma alternativa (salvação) possível por meio do choque, da violência e a partir da retomada dos “valores tradicionais”, que são, bem da verdade, expressão do neofascismo nos trópicos.
*Thiago Brito é doutor em Geografia pela UFMG.