A militarização do ciberespaço
O reavivamento da militarização em seu sentido original tende a favorecer o avanço do militarismo, isto é, a intervenção direta dos militares na política, no governo de um país, seja de forma consentida ou imposta
O sentido original da militarização faz referência ao emprego de grandes exércitos permanentes para alcançar determinados objetivos. Ele é sustentado por um discurso que prega uma mudança nas crenças reinantes no ambiente social, necessária para legitimar o uso da força. Tal discurso enfatiza a presença de um contingente de soldados bem treinados e armados com os aparatos bélicos mais modernos e eficientes. Outro sentido que pode ou não ser derivado do original diz respeito à presença ativa de militares e/ou de suas concepções em diversas esferas da vida em sociedade.
A concepção original se aplica há muito tempo em vários países. A China é dona do maior exército do planeta, o qual supera a cifra de dois milhões de integrantes, além de dotado dos instrumentos de guerra mais sofisticados disponíveis no mercado armamentista. O país, dirigido pelo Partido Comunista, almeja incrementar sua influência externa, e sua economia indica que os meios de produção são de propriedade pública e/ou de cooperativas, porém operados na forma de uma economia de mercado.
Também tendo por meta a busca pela ascendência em vários recantos do planeta, os Estados Unidos dispõem de Forças Armadas ocupantes do terceiro lugar em termos de tamanho, compostas por um milhão e trezentos mil integrantes. São consideradas as mais poderosas do mundo porque seus membros se revelam como os mais bem treinados, além de portarem a tecnologia de combate defensiva e ofensiva mais avançada da atualidade.
A Coréia do Norte, uma ditadura hereditária, que tem o hábito de cultuar seus líderes dirigentes, possui o quarto maior exército do mundo com mais de um milhão de soldados, uma média de um guerreiro para cada vinte e cinco cidadãos, bem como detém artefatos nucleares e mísseis balísticos, frequentemente utilizados como recursos de intimidação a qualquer outro país que ouse ameaçá-la.
Vale notar que o fenômeno da militarização permaneceu relativamente contido desde a queda do muro de Berlim até a segunda década do atual século. Tal contenção se deveu, primordialmente, à emergência do novo pensamento estratégico internacional pregador do papel de agentes da paz para os servidores de uniforme. Um movimento de redução do contingente militar atingiu alguns países da Europa, Alemanha e Portugal por exemplo, e chegou até à China que manifestou a intenção de limitar o número de seus soldados.
Entretanto, outros fatores emergentes foram capazes de superar esta contenção. Podem ser mencionados a perspectiva de diminuição da inflação, o aguerrido embate entre os Estados Unidos e a China devido a questões ligadas à transferência de tecnologia e propriedade intelectual e, principalmente, a guerra na Ucrânia. Em decorrência, no ano passado ocorreu o pico da trajetória ascendente dos gastos globais com a defesa, cujo montante superou a casa dos dois trilhões de dólares, de acordo com um relatório do Stockholm Stockholm International Peace Research Institute, e a previsão é de que ocorra um novo crescimento neste ano de 2023. Tal elevação deve muito aos investimentos em pesquisa e desenvolvimento militar nos Estados Unidos, aos elevados dispêndios russos decorrentes da guerra com a Ucrânia, à assertividade da China ao redor dos mares do sul e do leste de sua região, ao financiamento do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica no Irã, aos desafios consequentes do extremismo violento e de insurgências separatistas na Nigéria, ao fortalecimento da indústria de armas na Índia e ao incremento das Forças Armadas na Alemanha.
Reavivamento da militarização
É adequado dizer que esse reavivamento da militarização em seu sentido original tende a favorecer o avanço do militarismo, isto é, a intervenção direta dos militares na política, no governo de um país, seja de forma consentida ou imposta. Veja-se como exemplo o caso da Coréia do Norte que é guiada pelo princípio do Songun, cujo significado é o militar em primeiro lugar. Ele eleva o Exército do Povo à posição principal no governo coreano pois lhe outorga a função de orientar tanto a política doméstica quanto as relações exteriores. Mencione-se também o caso de Israel. As Forças Armadas israelitas são consideradas como uma das melhores instituições bélicas do mundo em termos de equipamentos e preparo, haja vista que se igualam às dos Estados Unidos. Israel se mostra como um Estado guarnição, ou seja, sustentado pelo poder castrense. São os militares que possuem um Estado e dessa forma também pode ser visto como um Estado patrimônio. Destaque-se que existe uma ampla concordância na esfera civil a esse respeito. Ademais, os estabelecimentos castrenses judeus são os mais prestigiados do mundo pela população porquanto chega ao índice dos 90% de aprovação.
Esse reavivamento também se inclina a contribuir para a emergência da militarização em seu segundo sentido. A educação é o setor onde ela se revela mais presente. Nos Estados Unidos existem parcerias entre universidades e indústria bélica além da presença de muitas escolas de nível médio administradas segundo os princípios castrenses. Israel é o local onde a militarização do ensino se mostra como a mais incisiva do mundo, bem como a mais extensa, pois atinge a quase totalidade das escolas. Na China ela incide na primeira e na última série do ensino médio e no primeiro ano da universidade.
Outrossim, a militarização da segurança pública através do uso de equipamentos e táticas castrenses é bem notória. Nos Estados Unidos existem muitos estabelecimentos policiais militarizados, os quais foram implantados com mais frequência em comunidades cuja maioria da população é de afro-americanos. A França, detentora de uma das maiores e mais bem aparelhadas instituições bélicas, possui uma importante unidade policial militarizada, qual seja, a Gendarmerie. No Brasil – que ocupa o 12° lugar no ranking das Forças Armadas, e que vem renovando sua frota de veículos motorizados, construindo um submarino nuclear e adquirindo novos aviões de caça a militarização – já caminhou rumo à educação, à segurança, à gestão pública e ao processo eleitoral. Cabe ressaltar ainda o avanço da militarização nas relações internacionais por meio da tríade principal composta pelos Estados Unidos, China e Rússia, sendo esta possuidora de uma das maiores Forças Armadas, turbinadas por um fervoroso sentimento patriótico e proprietária de uma diversificada indústria bélica. Os três países adotam o recurso estratégico da projeção do poder em direção a vários recantos do mundo, além de serem capazes de atuar no espaço sideral por meio do uso de armas antissatélites.
Ciberespaço
Essa militarização tem jornadeado bastante também no ciberespaço – local onde ocorre a comunicação interpessoal sem que seja necessária a presença física dos indivíduos nela envolvidos e cujo ambiente principal é a internet. Ele inclui afora os sujeitos participantes, as redes planetárias de dispositivos digitais interconectados e aparelhos específicos portadores de dados e programas. Além disso, serve como uma área de diversão, de entrelaçamento cultural, de expressão da singularidade de cada um e possui duas peculiaridades marcantes que são a liberdade de acesso e a descentralização.
O ciberespaço é um ambiente que se mostra em movimento e em transformação a todo instante. Nunca se apresenta de forma estática e inconversível, mas sim recheado de múltiplas recriações e persistentes atualizações. Assim sendo, é consoante dizer que o aprimoramento acelerado da tecnologia digital vem provocando alterações significativas em todos os setores da vida em sociedade.
Podem ser citados vários fenômenos marcantes resultantes da utilização do ciberespaço. Um deles é a cibercultura ou o conjunto de técnicas intelectuais e materiais, práticas, atitudes, modos de pensar e valores que se desenvolvem e circulam de maneira ininterrupta no meio dos indivíduos. Outro diz respeito à ciberdemocracia, o emprego dos recursos da comunicação eletrônica para a realização de práticas políticas, o intercâmbio entre governantes e governados por meio da participação direta.
Entretanto, diversos aspectos negativos ocorrem no ciberespaço, tais como as violações de dados pessoais, os golpes online e as manipulações psicológicas. Um dos acontecimentos mais prejudiciais diz respeito à vultosa divulgação de Fake News que mira validar um determinado ponto de vista ou conferir prejuízos a um indivíduo ou a um conjunto de pessoas. Elas se caracterizam pelo forte apelo emocional para fazer com que sejam aceitas de forma acrítica e sem a confirmação de possível veracidade. Acertadamente, diferentes países estão atuando sobre as empresas que se encontram nele alocadas para obrigá-las a não mais permitirem a divulgação de tal conteúdo.
A militarização do ciberespaço vem se manifestando de várias maneiras, e a garantia da segurança interna do Estado é uma delas. Em 2011, frente à Primavera Árabe, o governo de Bahrein utilizou postagens, monitorou cidadãos e puniu aqueles que entraram em sites com notícias relacionadas aos protestos. A China, que possui um domínio muito grande sobre a internet, costuma fiscalizar os locais das postagens de informações e empregar censores para bloquear aquelas discordantes do Partido Comunista e outras estimuladoras de agitações e protestos. Usa também um sistema de pontos revelador do nível de confiabilidade das pessoas e organizações que navegam pelo espaço virtual. Para firmar a garantia à proteção interior muitos países criaram oficialmente agências de segurança cibernética, dentre os quais se encontram Malásia e Cingapura. A Enisa (European Union Agency for Cybersecurity) é a instituição encarregada de fornecer essa salvaguarda a todas as nações integrantes da comunidade europeia.
A Rússia monitora o uso que seus cidadãos fazem da internet e continua impedindo e desqualificando os meios de comunicação opositores de Putin. O Japão a partir de 2015 entregou a tarefa de manutenção da segurança do país via internet à Agência Nacional de Polícia, ao Ministério da Defesa, ao Escritório de Segurança Nacional, à Sede da Inteligência de Defesa, ao Centro de Gerenciamento de Crises, ao Gabinete de Pesquisa de Inteligência e ao Centro Nacional de Segurança da Informação. Tais organizações atuam em conjunto no acompanhamento do que é visto pelas pessoas, sejam conteúdos externos ou discrepâncias políticas internas.
O problema da segurança interna de muitos países pode ser agravado quando os próprios fardados fazem a divulgação de dados confidenciais, a qual também é uma forma de militarização do ciberespaço. Em 2013, nos Estados Unidos, um soldado foi condenado por corte marcial por ter divulgado milhares de documentos militares e diplomáticos ao WikiLeaks. Neste ano, um membro da Guarda Nacional expôs na internet dezenas de documentos confidenciais do Departamento de Defesa reveladores das ações de espionagem sobre a máquina de guerra da Rússia na Ucrânia e de avaliações da capacidade de defesa dos ucranianos, além de informações sobre a Coréia do Sul e Israel. Em 2021, um integrante não identificado do Exército Britânico divulgou uma planilha contendo dados pessoais de soldados das Forças Especiais que precisam ser protegidos devido a possíveis ações de terroristas contra suas famílias.
Eleições
Outro tipo de militarização diz respeito à ingerência em processos eleitorais. Nos Estados Unidos o US Cyber Command costuma ser utilizado na segurança dos escrutínios nacionais. Entretanto, existem acusações de que seus membros frequentemente extrapolam suas funções, haja vista que agem como árbitros na determinação de conteúdos políticos aceitáveis e inaceitáveis e restringem a liberdade de expressão. Os militares estadunidenses, dentre outras atividades, também realizam manifestações políticas na internet. Frente a essas e outras ações foi elaborado pelo Exército um guia das redes sociais que contém orientações aos soldados de como nelas se comportar, e dentre as mesmas aparecem duas muito importantes, quais sejam, a de que as contas de cada um precisam ser claramente distinguidas como pessoais e a proibição do uso de títulos, insígnias, uniformes e símbolos identificadores. Por causa desse envolvimento paira uma certa desconfiança do povo a respeito do caráter apolítico dos fardados.
Recentemente, no Brasil ocorreu algo semelhante em torno da última eleição. Muitos servidores de uniforme afrontaram e publicaram inúmeras notícias falsas sobre o sistema eleitoral brasileiro que emprega urnas eletrônicas. Além disso, do total de mais de 300 militares que se candidataram, aproximadamente metade usaram a posição hierárquica em suas campanhas na internet. Uma grande quantidade deles também pediu voto para um dos postulantes ao cargo presidencial. Comandos das Forças Armadas se apressaram em organizar manuais de condutas nas redes sociais. Por sua vez, no Paquistão, durante as eleições gerais de 2018, integrantes das instituições castrenses e das agências de segurança fizeram atuações na esfera virtual destinadas a persuadir candidatos de partidos antissistema a mudar de lado ou a concorrer como independentes com vistas a dividir os votos e influenciar os resultados.
Outrossim existem os conhecidos eventos provocados pelos hackers moscovitas. Com efeito, em 2016, Putin coordenou diligências perpetradas pela Agência de Pesquisa da Internet sediada em São Petersburgo destinadas a prejudicar as possibilidades eleitorais de Clinton e abalar a crença popular no processo democrático estadunidense. Milhares de contas falsas foram geradas nas redes sociais para espalhar desinformação, desavenças e desgastar a confiança das pessoas no sistema eleitoral. No ano de 2020, a comunidade de inteligência estadunidense acusou a Rússia de interferência no escrutínio em andamento contra Biden e novamente a favor de Trump por meio da divulgação de fake news. Tais atos agregaram táticas da guerra de informação próprias da estratégia russa, baseada no princípio do perpétuo conflito em relação aos seus reais ou prováveis adversários.
Uma quarta forma de militarização, sem dúvida a mais relevante delas, se refere aos atos voltados para a manutenção da segurança externa de um país, a qual envolve o uso de ações cibernéticas. Vale lembrar que a ciberguerra diz respeito ao emprego de redes de computadores para promover ataques e se defender deles. Sua finalidade principal é a obtenção do controle sobre os computadores oponentes bem como a interrupção ou destruição de sua capacidade de realizar operações. Este confronto pode envolver tanto atores estatais, como não estatais e ser direcionado a alvos militares, governamentais ou civis.
Em 2008 uma agência de inteligência estrangeira não identificada contaminou cartões de memória usados em uma base militar dos Estados Unidos com o worm stuxnet, o qual se propagou por todo o sistema do comando central e demorou 14 meses para ser erradicado. Este malware também foi usado para infectar as instalações atômicas do Irã, visando paralisar o avanço de seu programa nuclear, cujo autor supõe-se tenha sido Israel. A ação atingiu 30 mil computadores, apesar de as autoridades iranianas terem afirmado que eles não foram danificados.
Aconteceram ainda inúmeros outros casos parecidos. O ataque à rede elétrica da Ucrânia, em 2015, foi o primeiro atentado cibernético a uma rede elétrica. Como resultado, metade das residências na região de Ivano-Frankivsk ficaram sem energia por muitas horas. A violação do API Strava em 2018, um aplicativo utilizado por militares para rastrear suas atividades de treinamento, expôs mapas de bases castrenses e possibilitou a coleta dessas atividades em múltiplas regiões do mundo. Hackers russos obtiveram acesso, em 2020, ao software de monitoramento Solar Winds usado por laboratórios nucleares, agências de inteligência e o Pentágono e violaram a cadeia de suprimentos de várias empresas privadas. Continuaram agindo durante vários meses sem serem detectados pelos seus funcionários e dirigentes.
Por fim, se faz necessário colocar uma observação importante. O atual recrudescimento do militarismo, conforme exposto, não significa um progresso de modo livre e solto porquanto há inúmeras reações sociais em várias partes do mundo contrárias ao seu avanço porque ele favorece a beligerância, abocanha vultosos recursos financeiros nacionais e arrefece a ajuda aos países em desenvolvimento. Além disso, a sua aparência está se tornando cada vez mais influenciada pela vida urbana moderna, à medida que a tecnologia avança. Isso tem levado mais e mais civis a se juntarem às forças militares, gradualmente trazendo diferentes perspectivas e aproximando os militares do público em geral. Isso resulta em uma redução crescente das diferenças entre eles e suas organizações. Considerando que nas sociedades democráticas o processo de civilinização tem se mostrado célere e irrefreável, num futuro não longínquo o termo militarização cairá em desuso e terá que ser substituído por outro que expresse as novas ocorrências em andamento.
Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes).