Os militares e a política pelo mundo
A ingerência dos militares na área política, de modo mais ou menos incisivo, decorre da opção feita pelos civis de enclausurá-los no interior dos quartéis, com autonomia quase total. É uma forma ilusória, incipiente e débil de promover o controle das Forças Armadas.
No momento em que foram criados os Estados Nacionais, as Forças Armadas apareceram com a finalidade de defender um país contra outro considerado inimigo. Entretanto, seus líderes perceberam que por iniciativa dos fardados ou por cooptação externa, elas poderiam ser usadas internamente para esmorecer e até inviabilizar a dinâmica do regime político. Para evitar estas possíveis ocorrências elaboraram e colocaram em prática concepções assentadas no controle democrático.
Uma delas se centra na concessão pelos civis de autonomia profissional aos militares, na subordinação deles aos líderes políticos civis, na não intervenção dos mesmos na política e na não ingerência política nas Forças Armadas por parte dos paisanos. A outra é assentada no conceito de civilinização, que é entendido como a presença ativa de civis nas instituições bélicas e o emprego nelas de noções civis. Sustenta que o avanço da tecnologia é o responsável pelo fenômeno da civilinização, o qual aproxima cada vez mais os paisanos dos fardados, e desfaz a distinção entre civis e militares e suas organizações.
A ideia da profissionalização, há muito tempo, vem tentando guiar a maioria das Forças Armadas ao redor do mundo, entretanto ela tem se mostrado vulnerável por não se coadunar com a realidade objetiva. Observe-se que nos Estados Unidos vigora o preceito de que possíveis desacordos políticos entre os integrantes das instituições bélicas sempre exclui a ameaça de violência extrajudicial contra o Estado e os concidadãos. É um respeito incondicional e absoluto à democracia. Tal preceito está internalizado na subjetividade dos fardados e norteia suas ações. O exemplo mais consoante apareceu por ocasião das últimas eleições presidenciais, quando os militares negaram qualquer tipo de ação a favor de Donald Trump na invasão do Capitólio.
Existe também o elevado grau de prestígio das Forças Armadas no âmbito social norte-americano, haja vista que é sustentado por 80% por cento dos cidadãos, de acordo com o artigo de Walter Haynes. Prepondera a preferência dos norte-americanos em empregar soluções militares para a resolver problemas cotidianos, a qual foi significativamente reforçada pelo ataque terrorista de setembro de 2001 e contribuiu para incentivar o avanço da militarização em vários setores da sociedade. Acrescente-se ainda a longeva harmonia reinante no intercâmbio entre governantes e fardados. Estas ocorrências concorrem para passar a falsa ideia já verbalizada tanto por paisanos quanto por fardados de que os militares são indivíduos apolíticos.
Tal concepção se esbarra em diretivas legais estabelecidas pelo próprio Departamento de Defesa dos EUAs que possibilita aos militares: expressar opinião pessoal sobre candidatos em eleições; fazer contribuição financeira a partidos políticos; participar de reuniões políticas, comícios, debates como espectador e não uniformizado; colar um adesivo político em um veículo particular; usar um distintivo político em trajes civis; assinar petições para ações legislativas específicas; encaminhar texto ao editor de um jornal expressando opiniões pessoais sobre determinados problemas ou candidatos; solicitar ou arrecadar fundos, quando não estiver uniformizado e fora da base, para uma causa política partidária ou candidato; expor sua adesão a determinado partido político, cuja maioria pende para o lado do republicano.
O traço apolítico tem sido abalado pelo frequente uso do US Cyber Command na segurança eleitoral. Seus integrantes tem trabalhado em campanhas de influência, como a que ocorreu em 2016. O que significa que querem determinar o que conta como conteúdo político aceitável e inaceitável. Acolher um comando militar nessas questões coloca sua reputação em risco. Ademais, em seu esforço para reprimir provocadores estrangeiros, pode inadvertidamente restringir a liberdade de expressão, especialmente quando agências de inteligência forasteiras supostamente vêm atraindo americanos para escrever posts em sites falsos. A defesa de eleições não é algo que os eleitores deveriam confiar às organizações militares, pois correm o risco de perturbar as relações entre civis e fardados.

Israel
Israel é outro caso corroborante. Os militares são supervisionados pelos civis, porém são as concepções militares que norteiam a política. De fato, ele se mostra como um Estado guarnição, ou seja, sustentado pelo poder castrense. São os militares que possuem um Estado e dessa forma também pode ser visto como um Estado patrimônio. Observe-se que existe uma total concordância na esfera civil a esse respeito. As Forças Armadas israelitas têm 90% de aprovação entre a população, segundo o site Stiftung Wissenschaft und Politik.
Cabe notar que no passado os fardados exibiam um protagonismo mais vistoso, porquanto ditavam as políticas e desafiavam diretamente o governo eleito. Tem havido no momento, uma crescente intrusão civil na área militar através do acompanhamento das operações rotineiras, inspeção dos recursos materiais e humanos disponíveis e observação das atividades relacionadas ao policiamento da população palestina. Tal ingerência não significa, de modo algum, um obstáculo ao vigoroso processo de militarização em todos os setores da vida em sociedade que avançou a partir da diminuição do valor da ação diplomática. O entendimento e a harmonia reinantes nas relações civis militares se encontram em patamares elevadíssimos e sem sombra de dúvida são os mais altos do mundo.
Do mesmo modo reina uma falsa percepção quanto ao traço apolítico dos militares. Ressalte-se os mesmos se vêm como um corpo profissional que atua segundo uma concepção apartidária. Acreditam que fazem parte de um exército cidadão que se apresenta como a nação em armas pois reflete os matizes da sociedade civil haja vista que os fardados são oriundos de todas as camadas sociais. Não visualizam as Forças Armadas pelo ângulo do profissionalismo militarista e sim segundo a ideia de Mamlachtiyut, que diz respeito a um ethos nacional estatista combinador da noção de pertencimento à mesma comunidade, condutas comuns e engajamento para o bem de Israel.
Europa
Em algumas nações europeias a proposta da profissionalização das Forças Armadas se revelou inconsistente. A França, por exemplo, que na década de 1960 estava envolvida em uma guerra contra a Argélia. Receosa de perder mais uma colônia, chamou o general de Gaulle para administrar o conflito. Após conceder autodeterminação aos argelinos, emergiu a república da Argélia. Muitos franceses sentiram-se traídos e fundaram a denominada Organização do Exército Secreto que junto com alguns generais tentaram dar um golpe, porém fracassaram. Recentemente emergiu um manifesto encabeçado por generais, contendo milhares de assinaturas, advertindo que frente ao crescimento do caos no país, as Forças Armadas logo seriam convocadas para conter uma guerra civil. Após algumas semanas, apareceu outro manifesto de caráter anônimo, mas seus autores declararam ser militares da ativa. O conteúdo acusava o governo de ser incapaz de enfrentar o avanço do islamismo, da imigração e da violência interna.
Na Grécia, em 1967, vigorava um regime monárquico constitucional liderado pelo rei Constantino e em maio estavam previstas eleições parlamentares. Uma conspiração de coronéis deflagou em abril o Plano Prometheus, destinado a salvar a nação de um suposto regime comunista. Acreditavam que militantes comunistas haviam se infiltrado na burocracia, nas universidades e na imprensa e que se fazia necessária uma reação drástica para proteger o país contra uma possível tomada do poder. Os fardados governaram até 1974 e neste período prenderam mais de 40 mil pessoas, cassaram direitos civis e fecharam o Parlamento.
Nesta mesma época os militares portugueses concretizaram a denominada Revolução dos Cravos, um movimento destinado a dar fim a um regime ditatorial resultante de um golpe de Estado protagonizado por civis e militares ocorrido em 1926. Este regime, liderado por Antônio de Oliveira Salazar e posteriormente por Marcelo Caetano, denominado Estado Novo, iniciou-se em 1933 e se caracterizou pelo autoritarismo, antiliberalismo, anticomunismo, nacionalismo e corporativismo. Em abril de 1974, fardados de média patente depuseram Marcelo Caetano e em seu lugar colocaram o general Antônio de Spínola, que meses depois foi substituído pelo general Costa Gomes. No ano seguinte, foi instituída a Assembleia Constituinte por meio do sufrágio universal, direto e secreto, a qual elaborou uma nova Constituição aprovada em 1976.
América Latina
No Chile, o então presidente democraticamente eleito Salvador Allende, começou a colocar em prática um projeto de governo denominado via chilena para o socialismo, voltado para a reforma agrária e a nacionalização de bancos, de minas de cobre e de empresas estrangeiras, que contrariou os interesses dos setores dominantes locais e internacionais. Um grupo de militares apoiados pelos Estados Unidos efetivou um golpe em setembro de 1973. O regime ditatorial que se seguiu sob o comando de Augusto Pinochet reprimiu e matou três mil pessoas, torturou 40 mil e encarcerou 20 mil políticos.
Em relação à Argentina ocorreu algo parecido. O presidente local na época era Arturo Illia, que vinha exercendo suas funções após ter sido eleito. Porém em 1966 foi deposto pelos militares que assumiram o poder e o exerceram até o ano de 1973. Logo no início os fardados instituíram o Estatuto da Revolução para legalizar suas ações. Ela proibia as atividades partidárias e cancelava direitos. No decorrer dos anos mais de trinta mil argentinos foram sequestrados pelos militares e aproximadamente dois milhões e meio fugiram do país.
No Brasil, a intervenção dos militares na política tem sido frequente e vem desde o período da proclamação da República. Desde esta época até meados do século passado, agiram como uma espécie de poder moderador. Na década de 1960 destituíram um presidente eleito por meio de um golpe e instalaram uma ditadura que durou mais de 20 anos, na qual muitos viraram prisioneiros, a tortura se tornou corriqueira, parlamentares foram cassados e eleições foram suspensas. Após permanecerem quietos nos quartéis por várias décadas depois do encerramento da ditadura, se entusiasmaram pela candidatura de Jair Bolsonaro. O partido verde-oliva liderou o movimento a favor dele e um general de elevado prestígio pressionou os juízes do Superior Tribunal Federal para retirar do páreo seu oponente. Após sua vitória milhares de fardados assumiram cargos na administração pública.
Civilinização
Observando os países que integram a Comunidade Europeia, tais como Alemanha, Holanda e Suécia, contata-se uma situação bem diferente. Neles vem sendo posto em prática concepções afinadas com o paradigma da civilinização. Consequentemente, os militares foram transformados em cidadãos de uniforme, com todos os direitos outorgados aos civis, contidos na Carta Social Europeia. O único direito que não lhes foi atribuído é o de greve, contudo, a grande maioria dos militares é filiada aos sindicatos que fazem a mediação com as autoridades para resolver questões relativas a salário, condições de trabalho e progressão na carreira. Acrescente-se que os tribunais de justiça a que estão submetidos são civis especializados em questões castrenses.
Fazendo uma comparação entre os dois modelos apresentados verifica-se que um deles enfatiza o confinamento dos indivíduos no interior dos quartéis e o outro privilegia a integração deles no âmbito da sociedade. Não há dúvida de que cada uma das situações produz profissionais de perfis singulares. Os cidadãos de uniforme tendem a formar concepções e sentimentos heterogêneos próprios da diversidade social, enquanto que os fardados enclausurados se inclinam a desenvolver concepções e sentimentos homogêneos específicos do grupamento a que pertencem, e são decorrentes dos processos de educação e de socialização a que são submetidos. O aspecto fundamental desses processos diz respeito ao fenômeno da despersonalização, entendido não em seu sentido psiquiátrico de distúrbio mental e sim como uma atividade de substituição da personalidade civil pela militar.
O ambiente castrense isolado onde tal substituição acontece é bastante adequado para provocar o aparecimento e a consolidação dessas concepções e sentimentos na forma de uma totalidade. Talvez o conceito mais relevante que tende a ser manifestar, consequente da rotina diária, seja o do funcionalismo conservador, o qual aponta que na vida em sociedade cada pessoa desempenha um determinado papel favorecedor do imprescindível equilíbrio social. Caso alguma ocorrência venha a desfavorecê-lo, deve ser controlada ou eliminada mesmo de forma truculenta, uma vez que o pensamento autoritário se encontra devidamente internalizado. Junto a ela se instala a ideia de que a ordem social é conturbada porque os civis são indisciplinados e desorganizados, bem como o juízo de que como protetores legais do Estado podem exercitar a tutela sobre ele.
Em muitas nações do mundo, onde a nossa se destaca, os fardados também se encaminharam a internalizar a noção romântica dos soldados salvadores, seja de um regime constitucional, do direcionamento do país à ruína ou a ação como inovadores e renovadores do desenvolvimento nacional. Esta visão messiânica ganha um formidável reforço nos momentos de crise quando integrantes das elites, incapazes de exercerem a hegemonia, batem à porta dos quartéis para pedir auxílio. Isto colabora para o fortalecimento dos sentimentos de autoestima, e de que são mais qualificados e mais patriotas que os civis, e pode estimular a emergência de uma conduta voltada para a conquista do poder.
É possível inferir, pelas colocações aqui expostas, que a ingerência dos militares na área política, de modo mais ou menos incisivo, decorre da opção feita pelos civis de enclausurá-los no interior dos quartéis, com autonomia quase total, visando realizar o melhor preparo possível para enfrentar prováveis Estados inimigos. Como pode ser visto é uma forma ilusória, incipiente e débil de promover o controle das Forças Armadas. Parece claro que, a maneira mais democrática e eficiente, se encontra na progressiva integração dos fardados na vida em sociedade como cidadãos de uniforme, de modo semelhante aos demais paisanos que desempenham outras atividades vestindo trajes específicos por causa dos requisitos profissionais, porém destituídos da conotação eminentemente singular, dissociadora e identitária.
Antonio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e ensino militar (Cortez) e A reforma do ensino médio e a formação para a cidadania (Pontes).