Os militares na política
Em verdade, essa ascensão dos militares pode ser ilustrativa de uma saída da política que nunca existiu. Apesar de contarmos 32 anos sem intervenção direta, as Forças Armadas jamais recuaram do controle do instrumento de dominação social e política por excelência do Estado moderno
Passado o espanto inicial com as declarações do alto escalão das Forças Armadas sobre a possibilidade de uma intervenção militar, timidamente o tema dos militares na política começa a ganhar alguns segundos na insônia democrática. Não por menos, a sequência de acontecimentos recentes tem se imposto. Dois merecem destaque: estudos sobre a adesão autoritária da população e ampliação da competência da Justiça Militar para julgar crimes cometidos por militares contra civis.
Estudo sobre atitudes e comportamentos em apoio à democracia no mundo revela que somente 8% dos brasileiros aprovam a democracia representativa e 38% consideram uma alternativa militar como positiva para o sistema político.1 Se acrescidos aqueles que avaliam a democracia representativa como “boa”, mas apoiam saídas “não democráticas”, a projeção sobe para 62% das opiniões manifestadas entre março e abril deste ano. De acordo com o índice de propensão ao apoio a posições autoritárias,2 a soma das três dimensões de perguntas – submissão à autoridade, agressividade autoritária e convencionalismo – indica uma forte propensão autoritária da população brasileira, chegando a um índice de 8, numa escala de 1 a 10. Outra pesquisa realizada pelo Datafolha indicou as Forças Armadas como a instituição mais confiável para a população.3 No mesmo sentido, pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) sinalizou ampla rejeição aos possíveis candidatos à Presidência, sendo um militar da reserva lembrado espontaneamente por 10% dos entrevistados.4
Apesar das limitações dessas pesquisas – seja por misturarem autoritarismo e conservadorismo, seja por sua natureza probabilística –, elas podem ser associadas com o atual quadro da presença dos militares na política. Tradicionalmente, essa influência é medida indiretamente pela presença de militares em altos escalões, pelo peso do orçamento militar no orçamento da União e em relação ao PIB e pela razão entre efetivo militar e população. Com essas medidas, realizadas até 2010, cientistas políticos – entre os quais se destaca Octavio Amorim Neto – visualizaram um declínio do poder político dos militares.5
Entretanto, atualmente essa tendência tem sido contrariada, sobretudo após a deposição presidencial de 2016. Recorrentemente os militares têm sido chamados para a política, ocupando postos estratégicos. Nos cargos de alto escalão, temos a ascensão do general da ativa Sérgio Etchegoyen para comandar o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) – agora incorporando a Agência Brasileira de Inteligência (Abin, antigo SNI). Na Funai, o general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas assumiu o comando da pasta responsável pela política indigenista, especialmente sobre as demarcações de terras.
Já a ascensão do general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz ao comando da Secretaria Nacional de Segurança Pública teve mais vulto e menos holofotes. Consequência de sua atuação “agressiva” numa favela haitiana no comando da Minustah, em 2010, Carlos Alberto foi o comandante-geral, em 2014, de umas das maiores operações das Nações Unidas em conflitos nacionais, a qual marcou uma quebra da tradicional neutralidade da organização: a Monusco (Congo), com orçamento de US$ 1,5 bilhão, 22 mil homens e autorização do Conselho de Segurança para caçar e matar os inimigos da operação. A “expertise brasileira”, por sinal, criou a primeira empresa nacional de mercenários internacionais, a Aquila International, sediada em Brasília, com comando e recrutamento de militares brasileiros da reserva para atuar em missões militares no exterior.
Isso pode nos ajudar a entender a motivação da Lei n. 13.491/2017. As chamadas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) são a principal avenida pavimentada pelos civis para a intervenção militar no arremedo democrático atual. Usadas a partir de 2010 com Dilma Rousseff (PT), essas operações foram decretadas 29 vezes, inclusive contra a oposição política na própria Esplanada dos Ministérios, no fatídico 24 de maio de 2017. Ocorre que essa ampliação da competência da Justiça Militar – num largo passo atrás de recomendações internacionais e da Comissão Nacional da Verdade – foi muito além de estraçalhar uma cláusula pétrea (art. 5º, inciso XXXVIII, CFRB/1988). Conforme alertou o jurista Aury Lopes Jr., a ampliação da competência do Judiciário corporativo abarcou todo e qualquer crime previsto no Código Penal cometido pelo militar das Forças Armadas em serviço de policiamento urbano: tortura, abuso de autoridade, lesão corporal e até violência doméstica seriam, agora, de competência castrense processar e julgar. Sabe-se, historicamente, que o Tribunal do Júri no Brasil foi instituído para proteger as garantias e liberdades individuais – tendo em Rui Barbosa seu fervoroso defensor na Primeira República – e para enfrentar a impunidade do coronelismo – sendo Victor Nunes Leal outro árduo defensor. Agora, tudo fica a cargo de um Judiciário reconhecidamente parcial e instrumento de impunidade. Note-se o tamanho do retrocesso.
Em verdade, essa ascensão dos militares pode ser ilustrativa de uma saída da política que nunca existiu. Apesar de contarmos 32 anos sem intervenção direta, as Forças Armadas jamais recuaram do controle do instrumento de dominação social e política por excelência do Estado moderno. Figueiredo, em 1983, editou o Decreto n. 88.777 regulamentando polícias militares e corpos de bombeiros. De lá para cá, apesar de diversas modificações, o Exército brasileiro continuou exercendo controle por meio da chamada Inspetoria-Geral das Polícias Militares (IGPM). Atualmente comandada pelo general de exército Araken de Albuquerque, esta é subordinada ao Comando de Operações Terrestres (COTer). Portanto, não somente a manutenção, mas também a grande ampliação do Judiciário militar e da militarização da segurança pública interna aumentam significativamente o poder político dos militares em relação ao poder civil.
Nesse sentido, o protagonismo silencioso a que se refere o comandante Villas Bôas está em marcha subterrânea, nos tubos institucionais. Se, por um lado, uma intervenção militar nos moldes old school seja vista um pouco distante, sem aparentemente interesse estratégico, o método institucional do autoritarismo, tão característico da última ditadura brasileira segundo o brasilianista Antony Pereira, também tem sido adotado por nosso simulacro democrático para o aumento do poder político dos militares. Por sua vez, o crescimento da candidatura presidencial de um militar da reserva e a ampliação de legisladores sintonizados tendem a elevar essa tendência que renova factualmente a tese do cientista político Jorge Zaverucha de uma democracia tutelada pelos militares desde 1988.6
E o que todos têm em comum – Villas Bôas (1973), Hamilton Mourão (1975), Carlos Alberto (1974) e Sérgio Etchegoyen (1974) – é sua formação pela Doutrina de Segurança Nacional, formulada pela Escola Superior de Guerra: uma concepção de poder nacional expressa nos poderes militar, econômico, político, psicossocial e de ciência e tecnologia e que tem como missão atingir ou proteger os Objetivos Nacionais Permanentes (ONP). Na década de 1970, esses objetivos traduziam o capitalismo, o cristianismo conservador, o liberalismo político e a ordem e o progresso. Conforme os sinais recentes, tanto das manifestações oficiais sobre a previsão de uma intervenção militar “salvadora” quanto da fervorosa recepção de Bolsonaro em formaturas de oficiais pelo país e até convocações de colégios militares, o pensamento político dos militares tem se mantido muito semelhante.
Portanto, não seria nenhum exagero reconhecer que vivemos um momento de graves fragilidades democráticas nas relações civis-militares. O simulacro democrático vivenciado há décadas pelas periferias avança a passos largos, com respaldo institucional. É hora de a insônia democrática se preocupar em romper a indecorosa passividade com o terrorismo de Estado, frear o militarismo crescente na política e, sem novos históricos titubeios, exercer o controle direto dos militares por meio da democratização de seu pensamento. Do contrário, seguiremos com o fantasma da intervenção cada vez mais de carne, osso, lágrimas e sangue.
*Rodrigo Lentz é advogado, professor, ex-coordenador da Comissão de Anistia e doutorando em Ciência Política da Universidade de Brasília com a tese As relações de poder entre civis e militares no Brasil: o pensamento político da Escola Superior de Guerra pós-88.