A miopia brasileira na construção da paz internacional
Por mais paradoxal que possa parecer, quanto mais o Brasil pauta sua inserção na esfera da construção da paz internacional fundamentalmente pelo envio de tropas – que é o que em essência o país faz –, mais ele participa de modo ativo da afirmação de sua própria subalternidade e posição periférica nessa questãoRamon Blanco
Basta um olhar minimamente atento ao cenário internacional para perceber que a superação de conflitos violentos e a construção da paz são pilares fundamentais. Logo, não é exagerado dizer que as operações de paz, sobretudo aquelas realizadas sob a alçada das Nações Unidas, são uma dinâmica central das relações internacionais contemporâneas. Portanto, não é por acaso que o Brasil, acertadamente, procura aumentar sua relevância internacional apoiando-se em uma maior atuação nessa esfera.
Contudo, a inserção brasileira no que toca à construção da paz internacional é míope na medida em que se baseia fundamentalmente no mero envio de efetivos (militares, policiais e peritos militares) para as operações de paz. Por isso, a inserção do país nessa temática acaba por ser periférica. Para visualizar claramente a miopia brasileira, é necessário ter em mente o que são as operações de paz e, sobretudo, a função destas na política internacional.
A construção da paz internacional
As características de uma operação de paz, assim como o entendimento de paz subjacente, modificaram-se de modo significativo ao longo do tempo.1 Durante a Guerra Fria, a ideia de conflitualidade internacional limitava-se à visualização de determinado tipo de conflito – os interestatais. Isso trazia um entendimento de paz essencialmente estadocêntrico e militarizado. Nesse contexto, eram excluídos da reflexão os assuntos e atores não estatais, assim como as fontes desses conflitos violentos que fossem internas aos Estados. Dessa forma, a paz limitava-se ao mero cessar-fogo entre Estados e sua construção era um assunto basicamente de políticos, diplomatas e militares.
Assim, as operações de paz eram pensadas de modo a dar resposta a esse tipo de conflitualidade e restringiam-se a um entendimento bastante limitado de paz e de sua construção. Isso, é óbvio, trazia implicações às características das operações de paz. Nesse período, estas basicamente significavam o envio de um pequeno contingente militar ao terreno, levemente armado, que servia, grosso modo, como um amortecedor entre dois Estados beligerantes. Elas realizavam atividades como patrulhamento de zonas neutras, serviam de tampão e instrumento de construção de confiança entre as partes em conflito, além de se encarregarem da supervisão e manutenção do cessar-fogo.2
Com o fim da Guerra-Fria, as características das operações de paz, assim como o entendimento de paz inerente a elas, modificaram-se. Em primeiro lugar, passou-se a dar atenção a um distinto tipo de conflitualidade – os conflitos intraestatais. Assim, as estruturas internas desses conflitos, antes invisíveis, passaram a ser problematizadas. Mais do que isso, a construção da paz passou, no pós-Guerra Fria, a ser a operacionalização da profunda reestruturação da dimensão interna dos Estados onde tais conflitos violentos ocorrem.
Consequentemente, as operações de paz foram transformadas de modo que pudessem dar resposta a essa nova situação. Elas tiveram seu escopo de atuação ampliado e aprofundado, e incorporaram diferentes elementos. Além de integrarem também civis em suas atividades, elas passaram a atuar em esferas tão diversas como manutenção da lei e da ordem; realização de eleições; escrita de constituições; fomento dos direitos humanos; reforma dos setores da polícia e do exército; (re)estruturação da esfera econômica; e (re)construção do Estado, para mencionar apenas algumas.
A inserção brasileira na construção da paz
Apesar da atuação brasileira em operações de paz ter ganhado mais notoriedade recentemente, o país participa desse instrumento internacional desde seu início.3 O Brasil participou em mais de 70% das operações de paz já autorizadas pela ONU, atuando em mais de trinta países em diferentes continentes e enviando ao terreno mais de 46 mil militares e policiais.4
Apesar de longevo, é possível perceber diferentes graus de engajamento brasileiro nas operações de paz em distintos momentos.5 Durante a Guerra Fria, a participação do país não era destacada. A exceção foi a missão enviada a Suez (Unef I),6 na segunda metade da década de 1950, na qual sua atuação foi acentuada. O engajamento do país começou a aumentar a partir dos anos 1990. Nesse período, ressaltou-se a participação brasileira em uma operação de paz enviada a Angola (Unavem III)7 na segunda metade da década.
Contudo, apesar de crescente no fim do século XX, seu real ponto de inflexão relativamente se deu a partir dos anos 2000. Mais precisamente em 2004, com a participação brasileira em uma das operações de paz enviadas ao Haiti – a Minustah.8 Nesta, o país passou a ter atuação e responsabilidade sem precedentes.
Por um lado, o Brasil chegou em 2004 a ser o 15º maior contribuinte de efetivos em operações de paz (somando militares, policiais e peritos militares). Em 2003, o país ocupava somente a 51ª posição. A contribuição brasileira manteve-se elevada e chegou a um novo pico após o terremoto que assolou o Haiti em 2010. Entre 2010 e 2012, o Brasil saltou de 13º para 11º.9
Por outro lado, desde o início da Minustah, o Brasil lidera o que talvez seja sua esfera mais expressiva – o componente militar. Esse é um marco importante para o país enquanto participante de operações de paz e revelador do grau de comprometimento e de aceitação por parte de seus pares, que ele passou a ter nesta esfera. Não por acaso, o Brasil atualmente lidera o componente militar da operação de paz enviada ao Congo (Monusco).10 Isso é bastante significativo, dado que essa é a maior operação de paz em atividade.
A miopia da inserção brasileira
À primeira vista, observando o aumento de tropas enviadas ao terreno e o ganho de responsabilidades em diferentes operações de paz, pode parecer que o Brasil se insere de modo bastante qualificado na esfera da construção da paz internacional. Contudo, essa é uma leitura enganosa e míope. Ao contrário, por mais paradoxal que possa parecer, quanto mais o Brasil pauta sua inserção nessa matéria fundamentalmente pelo envio de tropas – que é o que em essência o país faz –, mais ele participa de modo ativo da construção de sua própria subalternidade e posição periférica na questão da paz internacional.
Para perceber tal paradoxo, superar tal miopia e começar a construir uma inserção mais qualificada no que se refere à paz internacional, faz-se necessário apreender, sobretudo, o papel que as operações de paz têm na política internacional. Para isso, é preciso compreender que elas se desenrolam em uma estrutura internacional longe de estar esvaziada ideologicamente e que, por isso, impera uma clara divisão internacional do trabalho no que toca à construção da paz internacional.
Nessa estrutura, os países do Norte responsabilizam-se pela definição do que significa paz e pelo modo como esta deve ser construída pelo globo. Já os países do Sul são encarregados da construção de uma paz à imagem da definição concebida por aqueles. Tal dinâmica desenvolve-se em um ambiente internacional, sobretudo dentro da ONU, ainda fortemente pautado pela ideia de que a adesão aos princípios liberais está diretamente ligada à paz e à prosperidade interna e internacional.
Não por coincidência, por um lado, a construção da paz no cenário internacional passou a ser não o genuíno esforço de superar diferentes violências e graves privações que as populações em cenários pós-conflito vivem, e sim a busca, amplamente malsucedida, da mera institucionalização indiscriminada de democracias (neo)liberais nesses locais. Por outro lado, são os países do Sul que mais contribuem com efetivos para as operações de paz. Em 2014, por exemplo, as dez primeiras posições foram ocupadas, respectivamente, por Bangladesh, Índia, Paquistão, Etiópia, Ruanda, Nepal, Nigéria, Gana, Senegal e Egito.11
Portanto, as operações de paz acabam sendo um dispositivo com um objetivo duplo. Primeiro, transpor estruturas políticas, econômicas e sociais do centro para a periferia do cenário internacional, configurando-se como possivelmente um dos mais refinados instrumentos atuais de governança global. Em segundo lugar, pacificar – o que é distinto de construir a paz – zonas e populações da cena internacional, em sua larga maioria do Sul, entendidas, e muitas vezes construídas, como turbulentas. Tudo isso, e é precisamente aqui que fica mais evidente quão refinado é o instrumento, sendo levado a cabo pelos próprios países do Sul, o Brasil incluído.
Inserir-se principalmente por meio de envio de efetivos denota o óbvio – um limitado entendimento de paz como o simples inverso da guerra. Assim, dentro dessa lógica, atuar na paz internacional é meramente enviar tropas ao terreno. Não é por acaso que quem conduz tal discussão no país é, sobretudo, o Ministério da Defesa.
Uma inserção qualificada do país nessa matéria passa necessariamente por um engajamento em profundidade na disputa pela concepção de imaginários globais relativos à paz internacional. Passa por inserir-se na discussão global acerca da definição do que é paz e de como esta deve ser construída no terreno. Ao propor a noção de “Responsabilidade ao Proteger” na ONU, em 2011, a presidenta Dilma Rousseff tentou algo nesse sentido. Entretanto, além de vazia teoricamente, a proposta, por não buscar alterar estruturalmente o modo como a paz é refletida, reforça a posição periférica do Brasil nessa matéria.
Para participar dessa discussão, o país deve, com urgência, alargar seu entendimento de paz. Isso não quer dizer que deva abdicar de contribuir com efetivos. Entretanto, uma inserção mais qualificada passa também por aglutinar, de modo integrado e coordenado, diferentes tipos de atores e instituições em sua atuação na construção da paz internacional. Para além da violência observável, algo que o envio de tropas pode ajudar a minimizar, é preciso ter em conta outros tipos de violência, menos visíveis e mais estruturais, formados por condições políticas, econômicas e sociais injustas que com frequência estão nas raízes dos conflitos violentos pelo globo. É nesse ponto que a construção da paz liga-se, por exemplo, à ideia de desenvolvimento e chega ao nível dos indivíduos.
Assim, faz mais sentido o Brasil ter uma atuação multidimensional, em conjunto com a população local e consoante as visões de paz desta última, em esferas como segurança, política, economia, educação, saúde, infraestrutura, desenvolvimento humano, entre outras. Isso poderia passar, por exemplo, pela inclusão de civis e de instituições como a Agência Brasileira de Cooperação, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), as organizações do Sistema S (Senar, Senac, Senai, Sebrae),12 universidades, entre outros, dentro da lógica, narrativa e ação brasileira no tocante à construção da paz em cenários pós-conflito.
Uma atuação mais qualificada nessa esfera potencializa, inclusive, a consecução de um antigo objetivo da diplomacia brasileira – um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Contudo, superar a miopia da inserção brasileira em relação à paz internacional exige necessariamente uma maior abertura à discussão sobre a matéria com diferentes setores da sociedade. Resta saber se o país está à altura desse grande desafio e, sobretudo, quando sua inserção na construção da paz internacional deixará de ser um assunto quase que exclusivo de políticos, diplomatas e militares.