A miséria da alimentação tóxica
A superabundância de alimentos, produzidos a qualquer custo em detrimento da saúde dos povos e do meio ambiente, não erradicou a fome crônica, expandiu a fome discreta, criou a fome de alimentos saudáveis e a intoxicação de milhares de pessoas e do meio ambiente nos campos e nas cidades e, ainda, reproduz e reforça o privilegio de alguns
“A soberania começa pela boca!”
Eduardo Galeano
Em 16 de outubro se celebra o Dia Mundial da Alimentação e a criação, em 1945, da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO/ONU), que tem a missão de reunir os países na erradicação da fome no mundo.
Desde a criação da FAO, a alimentação é reconhecida como direito humano básico, mas até hoje ela se constitui em um privilégio. No último século, em função do desenvolvimento tecnológico, a produção de alimentos cresceu mais que a população global, e as pessoas passaram a viver e se alimentar mais, não confirmando os postulados das teorias malthusianas.
Entretanto, em pleno século XXI, o mundo, que produz mais alimentos do que necessita, contabiliza 820 milhões de pessoas sofrendo de subalimentação crônica. Ou seja, uma em cada nove pessoas no mundo passa fome. E esse número cresce desde 2014.
No Brasil, assim como em diversos outros países, eventos acontecem para divulgar a iniciativa, informar a população e sensibilizar a sociedade sobre a importância da erradicação da fome e da alimentação saudável. Mas, diferentemente de anos anteriores, não há muito o que comemorar em 2019.
Ao contrário, o Brasil passa atualmente por uma profunda e dramática crise alimentar. Em 2014, como resultado de anos de esforços entorno do programa Fome Zero e outras políticas sociais que reuniriam os esforços de organizações públicas e privadas, o país deixou de ser listado pela FAO em seu mapa mundial da fome. Infelizmente, essa não é mais a realidade das periferias urbanas ou dos rincões do país. A pobreza aumentou e atinge 54,8 milhões de brasileiros, 15,3 milhões em situação de extrema pobreza, e junto com ela a fome crônica ou absoluta. A cada dia, quinze pessoas morrem de subnutrição no país e, ao todo são 5,2 milhões de pessoas que não têm o que comer diariamente.
Diante dessa dramática crise, infelizmente, o governo brasileiro nega a realidade e contraria todos os esforços feitos nas últimas décadas. Um grande marco desta política genocida de virar as costas para a temática da fome foi a extinção do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) nos primeiros dias da atual gestão.
O Consea surgiu nos anos 1990 aglutinando esforços da sociedade civil protagonizados pela figura icônica do sociólogo Betinho e da campanha pela erradicação da fome. O órgão garantia a participação democrática da sociedade civil no planejamento das políticas de segurança alimentar. Com o Conselho alcançou-se um novo e importante patamar neste debate, introduzindo o tema da soberania alimentar na agenda pública nacional.
A FAO define em seu website soberania alimentar como o direito dos povos para definir suas políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos, que garanta o direito à alimentação de toda a produção, com base na pequena e média produção, respeitando a cultura e a diversidade de modos camponeses, pesqueiros e indígenas de produção agropecuária, comercialização e gestão de espaços rurais, nos quais a mulher desempenha papel fundamental (tradução nossa).
Dado o posicionamento do governo federal contrário ao direito das minorias, dos quilombolas, em relação à reforma agraria, e priorizando a grande produção agrícola, em particular na Amazônia, verifica-se que os princípios da soberania alimentar passam a ser opostos aos interesses dos atuais governantes. O “Plano de Governo” apresentado em 2018, em grande medida, já anunciava a forma como a questão da fome e da alimentação seria abordada ou negligenciada, na melhor das hipóteses. No item agricultura, as palavras “alimento” e “alimentação” não são sequer mencionadas. E, muito embora a expressão “segurança alimentar” apareça na proposta, não há menção alguma de como ela será tratada.
O debate sobre a crise alimentar ganha novos patamares na sociedade globalizada.
A crise alimentar não está circunscrita aos miseráveis. Em 1964, Josué de Castro, médico, geógrafo, embaixador do Brasil na FAO e autor da fundamental obra A geografia da fome, ensinou ao mundo que a fome não consiste apenas na privação de comida. Essa é a fome absoluta, a ponta visível de uma catástrofe de dimensões globais e que atinge norte e sul, países ricos e pobres, culturas e raças indistintamente.
Abaixo da linha que coloca a miséria e a fome crônica no topo de uma cadeia mundial da fome pode-se distribuir os demais 7 bilhões de pessoas que diariamente ingerem alimentos em ao menos outros três diferentes grupos: os que se alimentam e sofrem com a fome discreta, os que diariamente são intoxicados com os alimentos que consomem e os privilegiados.
Centenas de milhares, talvez bilhões de pessoas convivem com a fome discreta. Segundo o perfil epidemiológico da fome de Josué de Castro essas pessoas passam por carências nutricionais. Alimentos são regularmente ingeridos, mas em função da qualidade e/ou diversidade não são consumidos os necessários nutrientes, vitaminas e minerais. Essa é a fome de alimentos balanceados e saudáveis, que resulta em doenças crônicas como bócio e anemia. Esse grupo é mais atingido por doenças crônicas não transmissíveis (DNT). Uma expressão da fome discreta é a obesidade que atinge 672 milhões de pessoas (FAO, 2019) e o diabetes, que somava 422 milhões de casos em 2014 contra 108 milhões em 1980, sendo o aumento da ocorrência mais intenso nos países mais pobres.
Se no primeiro grupo de pessoas é a escassez produzida de alimentos a responsável por suas mazelas, esse segundo grupo tem na abundância dos alimentos superprocessados, que chegam baratos às mesas, sobretudo dos pobres nos países ricos, a sua explicação.
Entretanto, em que pese a preponderância do consumo desse tipo de alimento nos países ricos, o consumo de alimentos ultraprocessados tem crescido muito nos países pobres.
Na América Latina, por exemplo, o consumo de alimentos e bebidas ultraprocessados cresceu cerca de 50% nos últimos anos. Evidentemente, esse crescimento foi acompanhado do crescimento das taxas de obesidade. Esta, e as doenças crônicas não transmissíveis, de acordo com o Relatório da Organização Pan-Americana de Saúde, já são epidêmicas em toda a América Latina, tanto em adultos, como em crianças e adolescentes.
Ao mesmo tempo, nos últimos anos, temos acompanhado o aumento das safras de grãos. No Brasil, estas têm batido recordes ano após ano. Tais safras são comercializadas por empresas transnacionais. Bunge, Cargill, ADM, Louis Dreyfus e COFCO, juntas, controlam 52,4% do volume de soja exportado pelo país.
O Brasil tem hoje uma área equivalente a 3,5 vezes o território de Portugal cultivada com soja. No entanto, no que diz respeito aos pilares clássicos da alimentação nacional, arroz e feijão, vê-se uma diminuição significativa da área cultivada com estes produtos. De acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a área cultivada com arroz diminuiu cerca de 48% entre 2002 e 2016 e o território cultivado com feijão diminuiu cerca de 44% no mesmo período. O Brasil importa feijão há, pelo menos, dez anos. Como se pode ver por esses dados e outros apresentados no Atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia (2017), produção agrícola não significa necessariamente produção de alimentos e nem tampouco segurança alimentar.
A alimentação mundial é cada vez mais empobrecida. Alimenta-se cada vez mais com menor variedade de cereais, por exemplo, resultado do oligopólio conduzido pelas empresas que controlam a comercialização de alimentos e da chamada “revolução verde” que estandardizou a produção mundial de alimentos, e que conduz, potencialmente, àquilo que se chama de “erosão genética”.
Chegamos então ao terceiro grupo de pessoas nesta cadeia mundial da fome. Trata-se de bilhões de pessoas que não passam fome nos termos quantitativos ou qualitativos de Josué de Castro. São pessoas que se alimentam diariamente de maneira balanceada, mas por falta de acesso, conhecimento ou informação sobre cadeias alimentares agroecológicas servem em suas mesas uma variedade crescente de agrotóxicos. Esse grupo potencialmente intoxicado é recente e em forte expansão, resultado do desenvolvimento tecnológico e do modelo capitalista globalizado de produção agrícola do último século. Mensurá-lo depende de novas pesquisas sobre a fome e a alimentação no mundo. Evidências podem ser achadas nas correlações com as estatísticas de saúde – aumento de doenças degenerativas, do câncer e relacionadas ao sistema nervoso central – e ingestão de alimentos tóxicos, ou produzidos com agrotóxicos.
Leia o artigo da edição de julho: “Uma nuvem escura de agrotóxicos em nosso horizonte”, também escrito por Larissa Bombardi
Essas pessoas podem ainda sofrer de novas doenças crônicas não transmissíveis: a mais conhecida é a intolerância ao glúten. Pesquisas recentes têm procurado evidenciar que não há uma pandemia de alergia a essa proteína presente na dieta da humanidade há milênios. O que se verifica é que é possível que essas pessoas estejam sendo intoxicadas por glifosato. Nos Estados Unidos os processos contra a Monsanto se avolumam, novos documentos que provam a toxidade do glifosato estão vindo à tona e as indenizações se multiplicam.
Entre 2007 e 2014 a média anual de pessoas intoxicadas com agrotóxicos de uso agrícola, no Brasil, foi de 3.125. Entretanto, este número aumentou nos últimos anos: entre 2015 e 2017 a média foi de 4.763 pessoas intoxicadas anualmente, ou seja, embora o recorte temporal não seja o mesmo, verifica-se um aumento de cerca de 50% nos casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola.
Ainda assim essa realidade é pouco visível para os consumidores nas cidades de todo o mundo. As mazelas do campo são deixadas para trás e o alimento chega visualmente limpo aos supermercados. São apenas aparências.
O quarto e último grupo de pessoas nesta cadeia da fome é composto – quase que exclusivamente, e, este é um grande desafio para a humanidade – pelos privilegiados. Não se trata mais do privilégio de acesso a um bem escasso num contexto pós-guerra mundial, como em 1945 quando a FAO foi criada. Não se trata de superar a escassez absoluta de alimentos para que o privilégio de alguns se tornasse direito de todos. Desde então, a sociedade – ou melhor dito, o capitalismo – sob o discurso de que a “revolução verde” suprimiria a necessidade de uma “revolução vermelha”, visando garantir o acesso ao alimento para todos, transformou a agricultura em uma indústria, desenvolveu tecnologias, transformou sementes, produziu novos organismos, enfim, transmutou a escassez absoluta de alimento transformando-o em uma commodity global.
O grupo de privilegiados na cadeia mundial da fome é resultado da escassez de um tipo de alimento, saudável, agroecológico/orgânico. Essa escassez vem sendo produzida pelos métodos agrícolas desenvolvidos para a comoditização da alimentação que ao fim e ao cabo não superou nem mesmo a fome absoluta.
Com o argumento de alimentar uma população mundial crescente passamos a viver – potencialmente – um genocídio silencioso, diariamente servido à mesa da maior parte daqueles que comem no planeta.
A mobilização da FAO neste dia 16 de outubro é um alerta para que o mundo busque padrões de alimentação saudável para todos.
Padrões de alimentação saudável – para todos – implicará, necessariamente, superar a condição de privilégio e alcançar a condição de direito!
O debate sobre a soberania alimentar e a agroecologia tem o potencial de reconduzir e direcionar a sociedade para essa instância tão central que merece ser reverenciada neste dia 16 de outubro: alimentação saudável para todos. A superabundância de alimentos, produzidos a qualquer custo em detrimento da saúde dos povos e do meio ambiente, não erradicou a fome crônica, expandiu a fome discreta, criou a fome de alimentos saudáveis e a intoxicação de milhares de pessoas e do meio ambiente nos campos e nas cidades e, ainda, reproduz e reforça o privilegio de alguns.
As metas da FAO vinculadas à Agenda 2030 reconhecem a condição e a contribuição dos povos originários e da agricultura familiar no combate à fome. Viabilizar a alimentação agroecológica para todos é, sem dúvida, repensar nossos padrões de sociabilidade. As reformas urbana e agrária – enquanto mecanismo de viabilização da agrobiodiversidade – são políticas essenciais a serem debatidas, aprimoradas à luz da soberania alimentar e colocadas em prática no Brasil e no mundo. Sem essas reformas não haverá sustentabilidade. Sem elas não se atingirá o Segundo Objetivo do Desenvolvimento Sustentável, a efetiva erradicação da fome, de uma maneira que se produza alimentos saudáveis, frescos e acessíveis (inclusive de proximidade), como também preconizado na Nova Agenda Urbana da ONU.
Renato Balbim é pesquisador e professor visitante da Universidade da Califórnia em Irvine (UCI); e Larissa Bombardi é professora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP).