A morte dos certificadores de ideias e a supremacia do nonsense
Os certificadores de ideia ou morreram ou foram inutilizados: vivemos a Era do nonsense. A consequência dessa nossa lamentável escolha será a diminuição ainda maior dos espaços de autonomia privada, para que o Estado nos proteja de nós mesmos, será a tutela dos néscios por déspotas iluminados
O economista norte-americano George Akerlof ganhou o prêmio Nobel de economia em 2001, 31 anos depois de fazer uma profecia sobre os carros usados, num artigo que tratou do mercado de limões.
O limão é aquele carro prenhe de defeitos ocultos. É, portanto, a expressão metafórica, jocosa e elíptica, que se associou a esses carros, sobretudo nos EUA. É como os chamou a campanha publicitária, dirigida por Helmut Krone para a Volkswagen, que promoveu as vendas do Fusca com estrondoso sucesso nos anos 1960.
Os anúncios, que conclamavam os espectadores a “Pensar Pequeno”, revolucionaram a publicidade. Sob os auspícios da eficiência e da simpatia (inspirada nas linhas sinuosas e nos olhos oblíquos), lançaram o Fusca, um carrinho alemão estranho e pouco potente, numa batalha contra os muscle cars americanos, inutilmente rápidos, beberrões e de proibitiva manutenção.
O Fusca é o limão da Volkswagen, aquele que uma charmosa espécie de autocomiseração, sabidamente improcedente, aproxima das pessoas. É como se um rapaz feioso, mas pleno de virtudes, exortasse – de modo subliminar – as suas qualidades relevantes, pela exaltação dos defeitos superficiais, para induzir aquela que pretende seduzir a uma imediata negação: “nada disso, bobinho”.
É infalível.
Os limões, então, sob essa manipulação emocional sutil, passaram a ser todos os outros carros, enquanto o Fusca se infiltrava no coração daquele que era o maior mercado consumidor do planeta. Mais ou menos 21 milhões de fuscas foram vendidos nos EUA, de 1938 a 2003. A maioria deles depois do incentivo midiático.
Como um exagero leva a outro, por força de uma inevitável extrapolação, o limão se tornou sinônimo de carro de péssima qualidade (todos menos o Fusca, é claro!). Algo como um carro-bomba, que com frequência se encontra no mercado de usados, que é o habitat de um picareta caricato: o vendedor-de-carros-usados. Ele não é qualquer vendedor de carros usados (porque há muitos que são sérios, deve haver…), mas é aquele, aquele muito particular, que sabe da capotagem do ano passado ou da ferrugem no avesso do para-lama; um probleminha que o comprador desavisado é incapaz de ver, tanto mais cego pelo brilho do sol na capota recém-encerada ou pela necessidade incontornável e urgente de se mover em um mundo que exige prontidão e rapidez.
É aquele que vende gato por lebre, pão bolorento por bela viola, sob a força do hermetismo, de um conhecimento só seu, que priva o comprador do exercício de um juízo minimamente informado. E, ao volante, repito, do carro-bomba, a verdade se revela debaixo de um viaduto, na madrugada medonha de uma vizinhança perigosa, ou no horário de pique, em meio a condutores enfurecidos e buzinas cortantes.
O problema é que todo mundo sabe disso. Todo mundo sabe que não sabe distinguir um carro bom de uma carroça, e que o vendedor-de-carros-usados não falará a verdade, a verdade que só ele conhece.
É isso o que transforma o mercado de carros usados numa espécie de loteria, um jogo de azar, que afeta a precificação dos bons e dos ruins, indistintamente.
A incerteza determina que os bons sejam medidos pelos ruins e que pelos bons não se pague mais do que pelos ruins, sob a suspeita de que o que parece bom seja, de fato, ruim.
Essa presunção é um efeito colateral do que se chama de assimetria de informação. Ou seja, o fato de o vendedor saber muito e o comprador nada, ou quase nada, sobre o produto, o que – somado à crença de que vendedores-de-carros-usados frequentemente enganam compradores-de-carros-usados – leva à certeza indissolúvel de que o produto é ruim.
A atribuição de preço aos bons como se fossem ruins desincentiva a oferta dos bons (quem é que quer vender ouro por cobre?), pelo que no mercado só haverá ruins, ao ponto de que, disseminada essa crença, ninguém mais desejará comprar carros usados.
Mas essa profecia devastadora de Akerlof, dirão os leitores, mostrou-se de todo absurda: “O tal Akerlof enganou a Fundação Nobel e levou a grana do pai da dinamite. O mercado de carros usados está a pleno vapor. Qualquer um sabe disso.”
Talvez tenha sido por esse motivo que ele só recebeu um terço do prêmio de um milhão de dólares: Joseph Stiglitz e Michael Spence também levaram um terço cada.
Mas não, não foi nada disso.
Akerlof explicou que um determinado tratamento da informação, para a disseminar – confiável e homogênea –, tanto entre vendedores, quanto entre compradores, foi o que salvou o mercado de carros usados.
A certificação e a garantia resolveram o problema.
A disseminação de agentes econômicos nos mercados, capazes de responder, porque o seu patrimônio é suficiente para ressarcir aqueles aos quais eventualmente lesassem, e ao mesmo tempo confiáveis, porque sua credibilidade foi atestada por mecanismos de controle e de transparência, permitiu corrigir os efeitos colaterais adversos da assimetria de informação.
Akerlof defendeu, a bem da verdade, uma forte intervenção do Estado nos sistemas econômicos, para determinar que os vendedores de carros (e de quaisquer outros produtos) atestassem e garantissem a qualidade do que vendiam. Propôs uma intervenção que alinhasse os instrumentos de coerção estatal para assegurar que, se a afirmação sobre a qualidade do produto fosse mentirosa, haveria consequências: o vendedor seria punido e o comprador indenizado.
O texto aparentemente inofensivo de Akerlof, que, vale relembrar, levaria 3 décadas para impressionar a fundação Nobel, foi determinante para a promulgação, em 1975, da Lei Magnuson-Moss sobre as Garantias.
Essa lei foi concebida sob a lógica denunciada por Akerlof: ninguém é obrigado a certificar a qualidade do que vende (por si ou por terceiros ainda mais críveis) ou mesmo a dar garantias de troca ou de reparação do produto. Mas se não o fizer, dificilmente venderá, sob a suspeita de que o produto que pretende vender é um limão dos mais azedos. Se certificar qualidade e se der garantia, deverá, contudo, fazê-lo de forma clara, exequível e livre de exceções maliciosas, escritas com letras miúdas em notas de rodapé.
O leitor não deve, todavia, acreditar que se tratava de uma ideia completamente nova.
As corporações de ofício, aquelas entidades que congregaram artesãos de toda a sorte na Renascença, serviram, em parte, para certificar a qualidade dos produtos. O voluntarismo dos seus membros, que aceitavam se submeter a exigentes regras de qualidade, foi garantia indispensável ao comércio e à sua revivescência nos primórdios do Estado moderno. Enquanto aguardavam a gestação do Leviatã, os agentes econômicos lançaram mão de instrumentos fundamentais à afirmação do capitalismo comercial. Mecanismos que, segundo laureados economistas contemporâneos, a exemplo de Akerlof, ainda garantem a existência dos mercados, mesmo que agora tudo isso se passe sob a atuação do Estado.
Akerlof reclamou, portanto, quase seiscentos anos depois que o fizeram as corporações medievais, por uma ação do Estado para corrigir falhas de mercado. E é precisamente isso o que o une aos outros três intelectuais da Economia que com ele partilharam o Nobel de 2001.
Todos eles produziram trabalhos brilhantes sobre os defeitos que uma distribuição desigual da informação impõe ao funcionamento dos mercados, assim como sobre técnicas para impedir e para reparar esses defeitos. E o provável é que tenham sido muito apreciados pelos homens que mandam no mundo e que, portanto, mandam nas leis. Os mesmos que influenciam os juízos da Fundação Nobel. Não teriam ganho o prêmio, não fosse esse alinhamento entre premiados e premiadores.
Os três trabalhos agraciados com o Nobel da economia em 2001 fazem forte defesa da especialização da disciplina da informação. Fazem-no em direção a um aumento irreversível e exponencial da transparência, que proclamará – em breve – a sentença de morte do sigilo e o império dos mecanismos de controle, os quais, por sua vez, darão cabo de toda a desconcertante indetecção de condutas de interesse do Estado nos mercados.
Uma transparência que se espraia sobre o povo e apenas sobre ele.
A Fundação Nobel premiaria esses três grandes economistas em outubro de 2001, poucos dias depois de o Al-Qaeda executar, em 11 de setembro daquele ano, um ataque espetacular em solo americano. Um ataque que culminaria com a queda das torres gêmeas em Manhattam, a destruição de parte do Pentágono (a sede do poder militar norte-americano), a destruição de quatro aeronaves comerciais de grande porte e a morte de milhares de pessoas. Um ataque que daria início a uma longa e tumultuada guerra contra o terrorismo, a qual, acima de tudo, elevaria, para sempre, os níveis de vigilância e de controle estatais no mundo todo. Vigilância e controle nas fronteiras entre países, nos aeroportos, nas estações de trens e de ônibus, nos edifícios mais importantes, mas também sobre o fluxo de capitais, sobre a identidade dos agentes nos mercados, sobre a origem e o destino do dinheiro etc.
Uma transparência paradoxal sobre o povo, que se abate sobre a privacidade, sobre o lugar onde o indivíduo está, um lugar que se tornou claustrofóbico e irrespirável. É uma transparência toda nova, que também significa um crescente e impenetrável sigilo das ações estatais: uma mancha negra que nos impede de ver ações e de conhecer os propósitos daqueles que nos governam.
A devassa que submete os cidadãos se justifica pelo dever do Estado de protegê-los dos perigos do mundo. Um dever que dá causa ao Estado, ao menos segundo a sua justificação liberal. Uma devassa que pressupõe seja o Estado sempre benfazejo, sempre bem-intencionado, que esteja inexoravelmente compassado com o melhor interesse da comunidade que administra, a despeito dos governos e das suas peculiariedades.
O trabalho de Akerlof, que se bate contra a assimetria de informação nos mercados, assim como os dos economistas premiados em 2001, seria (talvez por mera coincidência) o prenuncio do fim de toda a privacidade, que mingua à medida em que se sabe de tudo o que cada um de nós faz e de tudo o que pensa, à medida em que evanescem – apenas para nós (os comuns) – os cantos escuros, diante da vigilância virtual, do cadastramento biométrico, da proliferação de opiniões rasas e acachapantes das redes sociais e da multiplicação de câmeras de reconhecimento facial.
É esse o mundo que se alastra a partir das fagulhas do pensamento aparentemente inofensivo e sectário de Akerlof; é o admirável mundo novo de Huxley, que de vaticínio se transmuda, apressado e insensível, em realidade.
Estamos todos e cada um de nós à mercê do Estado, pressupondo que seja infenso às capturas, pressupondo que não tenha dono nem senhor. Um Estado a quem entregamos voluntaria ou involuntariamente a nossa privacidade.
Ao mesmo tempo, toda essa informação, profusa, barata, impertinente e penetrantemente acessível, que brilha na tela dos computadores e dos smartphones, para abrandar a tristeza do tipo peculiar de isolamento a que nos sujeitamos, não foi capaz de nos livrar das ideias defeituosas.
Não há mais, para os fins do exercício da soberania popular, informação fiável, tampouco opinião balizada: tudo está em xeque, o tempo todo. O povo sabe muito, porque tem acesso a muita informação, mas ao mesmo tempo, sabe nada, porque todos os fatos são suspeitos, porque as afirmações plausíveis e as absurdas – na falta de uma certificação de qualidade das informações – foram niveladas; isso criou um mercado de loucos, de informações amalucadas e reduziu a pó as informações verdadeiras, a exemplo da indistinção que se estabelece entre carros usados bons e maus, como denunciou Akerlof.
O Estado, manejado pelos governos, e os governos, não raro manejados por seus captores, ostentam, contudo, um acesso inusitado a toda uma miríade de informações sobre os cidadãos. O acesso estatal à privacidade do indivíduo é o primeiro passo de uma submissão que se consuma com o emprego indiscriminado dessa informação para fins discrepantes de um legítimo interesse público. E essas são marcas indeléveis das democracias em concreto no seu distanciamento diário e galopante das democracias ideais.
Os certificadores de ideia ou morreram ou foram inutilizados: vivemos a Era do nonsense. E a consequência dessa nossa lamentável escolha será a diminuição ainda maior dos espaços de autonomia privada, para que o Estado nos proteja de nós mesmos, será a tutela dos néscios por déspotas iluminados. A culpa será nossa, que caminhamos bovinamente para o matadouro.
Walfrido Warde é Advogado e Presidente do IREE.