A Mulher Rei: “há coisas pelas quais vale a pena lutar”
A redução de imagens da África a um corpo delimitado, racializado e de pouco contraste, se integra ao que Achille Mbembe analisa como um processo de criação de uma “loucura codificada”. Se essas imagens subsidiaram produtos no audiovisual, hoje em dia já não conseguem mais atender a um público que busca por correspondências impossíveis de serem contempladas por histórias reducionistas.
As mulheres guerreiras do Daomé nos guiam, seguramente, para um lugar de novas descobertas. A partir de um enredo que conversa com eventos pregressos, localizados em um continente visitado e revisitado, ficamos perto de uma abordagem que traz às vistas outras histórias. Nanisca, interpretada pela atriz Viola Davis, lidera um exército de mulheres que guerreiam pelo reino do Daomé, mas também, dentro dos limites, por seus próprios interesses. Uma trama tingida por lutas intensas, retoma traços legítimos de outros campos de batalha, em que a disputa por espaços de representatividade e um primeiro plano para narrativas marginalizadas passam, cada vez mais, a serem conquistados.
Para quem ainda não assistiu ao filme A Mulher Rei, veja – mesmo se for para criticar, as críticas sempre nos movem em alguma direção. Cada minuto de imagem em movimento é um convite para adentrarmos em caminhos pouco percorridos. O filme, dirigido por Gina Prince-Bythewood, integra em sua produção uma presença notável de mulheres e segue, do início ao fim, uma proposta provocativa para se pensar nas dinâmicas de gênero. Este tema, e muitos outros, se faz presente nas salas dos cinemas brasileiros, desde o último 22 de setembro.
Já faz tempo que visitamos o continente africano com olhares afetados por estereótipos. Um continente com 54 países ainda sente as marcas das experiências coloniais e do período do tráfico de pessoas para a escravidão, em que o Brasil teve expressiva participação. A redução de imagens da África a um corpo delimitado, racializado e de pouco contraste, se integra ao que Achille Mbembe analisa como um processo de criação de uma “loucura codificada”. Se essas imagens subsidiaram produtos no audiovisual, hoje em dia já não conseguem mais atender a um público que busca por correspondências impossíveis de serem contempladas por histórias reducionistas.

E ainda que o filme traga uma outra perspectiva sobre a África é interessante pensar: qual África? O sol nascente ou poente, imagem recorrente em paisagens do continente, estava lá. Mas, apresentado de outro jeito. O primeiro plano, dessa vez, foi ocupado por mulheres guerreiras, integrantes do exército Agoji. Mulheres fortes, combatentes e de carne e osso. A compilação dessas guerreiras pode ser entendida como um ponto central nas lutas travadas: elas personificam humanidade e sugerem aos espectadores a reflexão sobre a vida de outros povos e culturas, reconhecidos por muito tempo, pelo o que Frantz Fanon denominava, como os “condenados da terra”. Por esta via, podemos conversar sobre as vidas, sentimentos e trajetórias percorridas por outros grupos que podem sim ultrapassar o primeiro contato com as guerreiras do Daomé. Somos atraídos pelos rumos de Nanisca, Nawi, Izogie, e tantas outras personagens; somos convidados a pensar que além do que nos foi apresentado, muito mais existe. Esta aproximação retoma um processo de familiarização com subjetividades, que passaram por violentas tentativas de extorsão, mas encontram outros caminhos para o reconhecimento e possíveis restituições na atualidade. Parafraseando Neusa Souza, “uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo”. São dimensões que extrapolam os fatos narrados, ganham força em outras frentes e com o uso de imagens contribuem para as pessoas verem umas às outras – e, principalmente, a si mesmas.
Ao vasculhar o passado, realmente encontramos as guerreiras do Daomé. O reino, localizado no atual Benin, contava com um exército de mulheres, chamado Agoji, retratadas em escritos do século XIX como “Amazonas do Daomé”, e até mesmo “espartanas negras”, como analisou Stanley Alpern. Mulheres com uma vida pública, cheia de especificidades, lutavam em nome de seu rei e comunidade, em um momento crítico, afetado por disputas políticas imbricadas nas campanhas pelo fim do tráfico de escravizados – proibido no Brasil com a Lei Eusébio de Queirós, em 1850 -, e os movimentos e discursos raciais incentivadores da colonização. Determinados grupos de europeus, fundamentais para a estruturação da escravidão mercantil, diziam, com o adensamento do colonialismo, participar de uma empreitada civilizatória no continente. Dos efeitos, irrompeu a montagem de sistemas coloniais, com práticas de exploração que recorreram a violência física e simbólica. Importante dizer que esta intromissão foi confrontada por lutas, resistências e interações multifacetadas que nos instigam a pensar em diferentes camadas constitutivas desse passado. Nada e nem ninguém faz parte de uma narrativa só, seja ela qual for.
No filme, a riqueza de conexões abre outras portas. O figurino, o cenário, as abordagens, os elementos retratados, os dilemas e as conciliações são alguns entre tantos outros símbolos que nos integram a uma região do continente africano, até então, pouco conhecida. Indubitavelmente, seria muito pedir de alguma cinematografia uma reunião precisa de todas as fragmentações de acontecimentos transcorridos. Da liberdade artística em interpretar e reinventar, entre outras atribuições, damos ênfase ao papel social do filme em potencializar discursos postos em tela, propícios para se pensar uma miríade de questões. O olhar contemporâneo acompanha as lutas encabeçadas por mulheres negras, em paralelo a uma abordagem mais inclusiva do trato com o passado. A Mulher Rei, de certa forma, ratifica o interesse de combate, incessante, às narrativas dominantes, matizadas pelas visões coloniais. Como disse Nanisca, líder das Agoji: “há coisas pelas quais vale a pena lutar”.