A música como experimentação social
Em 1965, alguns músicos decidiram reagir ao mercado, aprofundando as relações cooperativas características de suas práticas sociomusicais. Eles multiplicaram as tentativas de controlar meios de produção e de difusão, criando composições originais destinadas não só a exprimir como a transformar
A paisagem é bucólica na Wabash Avenue, perto da 45th Street, no lado sul de Chicago. Alguns fiéis em suas roupas de domingo param em frente à fachada triangular da Saint Paul Church of God in Christ, a caminhonete do vendedor de sorvetes propaga seu refrão, enquanto esquilos descem rapidamente por galhos de árvores e cabos de eletricidade. Este poderia ser o melhor dos mundos urbanos da América do Norte, se aí a paisagem não fosse tão estranha1.
Os habitantes que vivem em outras partes da cidade não têm o menor motivo para se encontrarem no lado sul, ou South Side, a não ser para pegar as vias expressas que o cruzam. Se tentassem se aventurar, perceberiam, no entanto, que o gueto não é aquele lugar tão mal-afamado: é sim um espaço semipúblico, sem mercearias nem farmácias, sem hospitais nem bancos, praticamente sem transportes coletivos, povoado por centenas de milhares de homens e mulheres estigmatizados, a maioria sem emprego, mas que – curiosamente – são cheios de vida…
Do outro lado da Wabash Avenue, naquele domingo de maio de 2009, o novo comitê executivo da AACM (Associação para o progresso de músicos criativos) reuniu-se em uma casa de dois andares de tijolinhos vermelhos. A flautista Nicole Mitchell, o baterista Mike Reed, o cantor Saalik Ziyad e a violoncelista Tomeka Reid, assim como a diretora da escola da AACM, a percussionista Coco Elysses, pertencem a uma nova geração à qual acabam de ser confiadas as rédeas da associação.
Sua primeira iniciativa será a de levar a todos os bairros da cidade os concertos e as oficinas que esses músicos e militantes organizam há quase 50 anos. Não vão mais esperar que as famílias cheguem à porta da escola de música, irão ao seu encontro.
Continuar implantada no South Side e estar comprometida com a sua revitalização, valorizar a si mesmo e aos outros, significa lutar contra a desmobilização da comunidade afro-americana. É um desafio permanente.
Poucas horas depois esta coordenação se reúne com seus associados mais antigos, no palco do Velvet Lounge, o club e “sala de reunião” mantidos pelo saxofonista Fred Anderson, um dos primeiros membros da AACM, que reúne neste local todos os artistas “do barulho” com que a cidade conta. Naquela noite, os quinze músicos do Great Black Music Ensemble antes de tocar deram as costas ao público. O clarinetista Mwata Bowden dirige a interação entre os poetas, rappers, cantores e instrumentistas até a apoteose.
Como conta George Lewis, trombonista e etnomusicólogo2, quase todos aqueles que fundaram a AACM, em 1965, vinham de famílias pobres da classe operária negra, que se estabeleceram no Midwest depois da Grande Migração das primeiras décadas do século XX3. Para essas famílias, a música, em suas formas profanas ou sagradas, populares ou experimentais, tinha o valor de uma instituição: todos a escutavam e a tocavam nas casas, nas ruas, nos bares e nas igrejas. No gueto, a música representava uma perspectiva profissional e, ao mesmo tempo, um modo alternativo de socialização.
A AACM sempre tomou o cuidado de não se tornar uma organização unitária ou hierárquica, de privilegiar uma pluralidade dos métodos, de promover pesquisas. “A coletividade é o maior desafio. Experimentar por si só e com os outros. Promover-se e ajudar-se mutuamente. Nesta dinâmica cada um contribui de sua maneira e se alimenta da contribuição dos outros”, avalia o saxofonista Douglas Ewart. O percussionista Kahil El’Zabar acrescenta: “Na política, tudo é feito para restringir a liberdade dos indivíduos e dos grupos, para dominá-los e dividi-los. Nós representamos uma tradição de criatividade, de parcerias e de responsabilidade. Imagine um sistema político feito à imagem do verdadeiro prazer que propagamos…”.
Durante os anos 1960, com o desmembramento do gueto, os músicos do South Side de Chicago se viram diante de uma terrível pauperização e também de uma padronização de sua arte – que Lewis atribui à produção em massa capitalista, cujo impacto chega até este sub-ramo da indústria do espetáculo. Ele compara a acentuação da divisão do trabalho, principalmente entre leaders e sidemen [líderes das bandas e instrumentistas], assim como a escalada de virtuosismos pretensiosos nas jam sessions, supostamente informais, mas na realidade palco de competições cada vez mais padronizadas e padronizantes.
Por meio da criação da AACM, em 1965, alguns músicos decidiram reagir, aprofundando as relações cooperativas características de suas práticas sociomusicais. Eles multiplicam as tentativas de controlar meios de produção e de difusão – tal como Anderson no Velvet Lounge –, criando músicas originais destinadas não só a exprimir como a transformar. Uma das estratégias utilizadas por esses militantes, que durante muito tempo recusaram qualquer forma de subvenção, foi distribuir seus esforços em várias frentes: local (Chicago e Midwest, em seguida, Nova York, com a abertura de um segundo capítulo da AACM em 1977), nacional (Estados Unidos e Canadá) e internacional (o mundo ocidental e alhures).
“Fomos levados a desenvolver perspectivas múltiplas, percepções transculturais, a nos projetar simultaneamente em diversos mundos, a nos conectar com outras realidades”, relata El’Zabar. O saxofonista Ernest Khabeer Dawkins acrescenta: “Tudo é uma questão de controle. É por isso que é preciso multiplicar os contatos e as alianças para substituir a hegemonia dos mercados financeiros e poderes políticos nacionais por uma atividade artística e econômica difusa.”
Agora que Barack Obama preside os destinos do país, o que acontece com essas estratégias? Ewart dá provas tanto de pragmatismo quanto de fervor: “Temos consciência não só dos limites do programa de Barack Obama, mas também do fato de que a ideia de liberdade, no momento, passa por ele. E faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para que ela continue a avançar rumo à sua mais completa realização, como sempre fizemos desde a época das plantations e, se necessário for, com os espasmos dos holy rollers4 e as raízes do hoodoo5!”
Para os músicos, se Obama passou por Chicago, residindo no bairro seguro de Hyde Park e matriculando seus filhos na prestigiosa University of Chicago Lab School6, tornando-se ao mesmo tempo trabalhador comunitário, foi também para lançar sua carreira política em uma das cidades mais segregadas dos Estados Unidos7, e adquirir assim um equivalente da street credibility (credibilidade originada na rua) dos rappers.
O saxofonista David Boykin dá sua opinião: “Os tempos não mudaram para os negros, e particularmente para os
músicos criativos negros: estamos no fundo do abismo. Atravessamos uma crise social e econômica desde que os europeus iniciaram o tráfico de escravos. Nossa cultura é a de um povo oprimido, às vezes cativado, às vezes cativante.” Para satisfazer às necessidades básicas de sua família, a maioria dos músicos precisa ter um segundo trabalho, ligado ou não à sua atividade principal, ou manter mais do que gostaria uma presença fatigante nos palcos europeus, quando tem acesso a eles.
Para continuar com as portas abertas, a AACM concebe a música como meio de troca e valor de uso. A fórmula não mudou desde a época em que John Shenoy Jackson considerava que os membros da associação se dedicavam metade à música criativa e metade à conscientização social. Foi assim que Dawkins formou uma parte da nova geração, principalmente durante os vários anos em que morou no bairro Englewood, iniciando ao mesmo tempo programas de intercambios com o liceu de Clich-sous-Bois, no subúrbio parisiense, e com a sólida comunidade do saxofonista Zim Ngqawana, na periferia de Johannesburg.
Ele ajuda também El’Zabar em projetos junto às escolas e conservatórios de Bordeaux e da Aquitânia. A parceria acontece há 10 anos a convite da associação Musiques de Nuit. “Graças a iniciativas de apresentações de bairro conseguimos transformar um grupo de músicos desconhecidos de South Side de Chicago em um fenômeno internacional”, assinala El’Zabar. Segundo ele, no momento em que a guerra pela informação e pelo controle das mentes se intensifica, a música criativa constitui uma “arma milagrosa” para aprender a conjugar espírito crítico e inventividade.
Na expectativa de lançar proximamente sua própria escola, um grande número de membros da AACM atua também em ambiente escolar. Como Nicole Mitchell, por exemplo, que trabalha na J. N. Thorp Elementary School, situada num bairro em que se misturam populações africanas e latino-americanas. Logo após o hall de entrada e o detector de metais, um longo banner azul mostra uma foto de Obama em moldura oval, cercado de instrumentos musicais, com os dizeres: “Change has come!” – a mudança chegou. Em poucos anos, o diretor do estabelecimento decidiu acabar com a separação entre os alunos afro-americanos e os mexicanos, considerados os primeiros a chegar e aos quais era preciso ensinar em espanhol. Acreditando que essa medida não penalizava seus filhos, mas também que a convivência com os estudantes negros das áreas degradadas era uma má companhia a maior parte das famílias mexicanas retirou seus filhos da escola.
Diante de uma turma fundamentalmente composta por afro-americanos de dez anos de idade, Nicole Mitchell reúne todos a sua volta e, com seu tamborim entoa e encadeia canções familiares às crianças, distribui os instrumentos de percussão: “Se vocês prestarem atenção no que se passa, e se encontrarem uma maneira de intervir no que acontece, então terão um instrumento.” As mãos se levantam, os ritmos se multiplicam. As letras das canções salientam a responsabilidade, mas é na própria música que se acha a lição: pelo sistema de demandas e respostas, pela alternância de unissonâncias, heterofonias e polifonias, de acelerações e desacelerações, trabalha-se a escuta e a reflexão, a participação e a distribuição.
A mesma metodologia é utilizada por músicos em estúdio, tais como Mitchell ou o baterista Hamid Drake, que recentemente foram parar nos bairros mais renomados do North Side para gravar dois discos pelo selo Rogue Art, um nome apropriado da designação pela qual George W. Bush identificava o que ele denominava de “Estados Falidos” (rogue states. O produtor Michel Dorbon explica o conceito por trás do trocadilho: “existem, hoje, formas de arte marginalizadas, ‘degeneradas’ no sentido em que a censura econômica pode ser tão eficaz quanto a censura política. Cada vez mais, o único critério de qualidade reconhecido é o econômico: o que se vende bem ou por um preço caro é ‘admirável’, enquanto o que se vende mal ou nada é visto como ‘duvidoso’.
O jazz, que jamais se integrou a nenhum sistema e nunca flertou com nenhum poder, foi uma das mais importantes revoluções artísticas do século passado, criada por indivíduos que buscavam ‘simplesmente’ exprimir quem eram. Os discos produzidos pela Rogue Art defendem o que está vivo no jazz atualmente, e que não tem lugar nos ambientes fechados, conservadores, em que a arte é utilizada como imagem que valoriza uma serenidade do poder.”
O baterista pode estabelecer e fixar uma estrutura melódico-rítmica antes de oferecê-la à capacidade de cada membro de seu grupo para que cada qual possa interpretar e transformar as informações que ela contém. Ele pode confiar o desdobramento de uma composição às improvisações individuais, duplas ou coletivas, e reafirmar a direção coletiva da música. Pode continuar a tocar em tempo diferenciado, associando dessa vez o engenheiro de som ou os produtores à sua tomada de decisão, gravando algumas partes separadamente para se dedicar, em seguida, a um trabalho de colagens e mixagens e a novas alterações. De qualquer forma, e independentemente do que faça, o músico criador confirma o valor coletivo da atividade. Essa criatividade e essa responsabilidade compartilhadas, das formas e das estruturas, fazem da experimentação musical uma experimentação social. Ligada à história, ao tempo presente – e aos dias que virão.
*Alexandre Pierrepont é poeta. Recentemente gravou junto com o MC e produtor musical Mike Ladd o álbum Maison Hantée.