A nouvelle vague que não passa
Depois de exatos 40 anos de Truffaut e Godard terem dado os primeiros passos em direção ao cinema autoral francês, seu legado tornou-se, ao mesmo tempo, sombra e inspiração para os jovens que pensam em seguir sua trilha. Superar este momento é um dos maiores desafios da sétima arte no país
A nouvelle vague nasceu simbolicamente em 1959 – quando Os incompreendidos, primeiro filme de um diretor de 27 anos chamado François Truffaut, teve acolhida triunfal no Festival de Cannes – e se tornaria, em seguida, um evento histórico de fundamental importância. Representava, ao mesmo tempo, a anunciação de todas as contestações dos anos de 1960, a invasão das telas por jovens talentos, revolução estética e o início da modernidade pós-industrial.
Em 1959, enquanto Godard filmava O acossado, seus amigos cinéfilos, François Truffaut e Claude Chabrol, lançaram sucessivamente Nas garras do vício, Os primos e Os incompreendidos. Um feito e tanto para um punhado de novos diretores ainda pouco conscientes de que faziam parte de um único movimento.
Nesse momento, a significação sociológica e o porte de suas obras ainda não eram questões evidentes. Eles tinham outra ambição: modificar o olhar do espectador. Iriam aproveitar as novas câmeras, mais leves, e as películas adaptadas à luz natural para liberar o cinema dos estúdios, onde até então os diretores ficavam enfurnados, e oferecer o espetáculo das ruas parisienses e o ar fresco daqueles tempos.
Se a nouvelle vague tem uma dimensão histórica, é porque certamente foi a primeira construção midiática moderna. Quando, em 1959, o termo inventado por Françoise Giroud para definir a juventude dos anos de 1950 recaiu sobre o cinema, tornou-se imediatamente argumento publicitário para vender filmes que tinham em comum, além do baixo orçamento, o fato de serem realizados por jovens, dos quais Alain Resnais, com seus 39 anos, seria o precursor. Desde então, tudo passou a ser “nouvelle vague” no cinema francês, sem que, necessariamente, houvesse fidelidade ao significado do rótulo.
Truffaut, Godard, Chabrol e outros cineastas oriundos da revista Les Cahiers du Cinéma evitavam protestar. Embora até então fossem críticos ferozes, favoreceram essa “ambiguidade que abarcava tudo” ao não produzirem um texto com diretrizes sobre o movimento. Muito pelo contrário: deixaram-se levar pela onda até o refluxo de 1962, gerenciando taticamente a chegada e o desaparecimento de jovens concorrentes sem experiência que tomavam emprestados, em vão, seus passes. Ao privilegiar o lado de fora dos estúdios, o trabalho com equipes reduzidas, sem grandes roteiristas e com atores da nova geração em vez de vedetes confirmadas, a nouvelle vague se tornou um grande filão para os produtores, que multiplicaram seus projetos de baixo custo.
É também o momento em que o novo ministro de Assuntos Culturais, André Malraux, passa a chefiar o Centro Nacional de Cinematografia (CNC). Ele aumenta as receitas para essa área e vê nos novos cineastas ótima oportunidade de exibir a face positiva do regime gaullista, enquanto outra parte da juventude francesa patrulhava as ruas da Argélia.
Primeiros filmes
Nesse contexto, dezenas de desconhecidos se lançariam de cabeça na nouvelle vague. Seriam os primeiros de uma longa lista – aberta até hoje – a contribuir para transformar o cinema autoral em “cinema de primeiro filme”, que privilegia, paradoxalmente, a inexperiência profissional e o narcisismo autobiográfico como garantias de autenticidade artística. Esses jovens vão levar ao pé da letra as declarações de Godard e Truffaut que afirmam – sem necessariamente assinar embaixo – que, para fazer um filme, não é preciso um roteiro, e que a técnica não é importante. Pouco a pouco, esses novos cineastas quebraram a cara e decepcionaram o público popular, para quem esses filmes passaram a ser sinônimo de amadorismo e tédio.
Assim, em 1962, a “pós-nouvelle vague” se reduziu novamente aos pioneiros da revista Les Cahiers du Cinéma, aos quais se juntam alguns companheiros de estrada – Jacques Demy, Agnès Varda, Chris Marker e Jean Rouch. Quase todos conheceriam carreiras de longevidade excepcional e assegurariam a perenidade da nouvelle vague. Essa ocupação do espaço cinematográfico seria merecida, à medida que faria o cineasta passar de artesão a artista, mas também fragilizaria sua existência.
Totalmente responsável por sua criação, muito mais onerosa que um livro ou um quadro, o cineasta está à mercê do fracasso de público. Frequentemente é a solidão e a marginalidade quem os aguarda, não importa seu talento. Após a nouvelle vague, é possível contar nos dedos de uma mão os cineastas que fariam uma obra com o rótulo de “autor”. E os raros que conseguiriam mantê-lo, como Maurice Pialat, se contentaram com uma filmografia reduzida.
O discurso erudito dos acadêmicos da “política de autores” usará como justificativa para a defesa da nouvelle vague o classicismo de Truffaut e os happenings de Rivette. Os rebuscamentos lúdicos de Rohmer nunca se tornarão obsoletos; os mergulhos de Chabrol na burguesia serão sempre muito pertinentes; e as lições de cinema de Godard jamais serão criticadas.
Há um consenso geral, para não dizer absoluto, sobre o cinema de autor como o modelo que deve ser buscado e defendido, e que não está longe de ser a cópia dos primeiros filmes da nouvelle vague.
Não conseguir superar esse momento é um dos maiores problemas do cinema francês. Ao homenagear Laurent Cantet com a primeira Palma de Ouro desde 1987, Sean Penn, presidente do júri de Cannes, o definiu como “um realizador que manifesta sua consciência do mundo em que vive” e que se tratava do “retorno da ficção de esquerda”, tão rechaçada pelos críticos Truffaut e Godard na época em que escreviam na revista direitista Arts.
Com mais de 280 filmes lançados em 2007 – contra apenas a metade nos dez anos anteriores – a produção francesa nunca foi tão abundante. Ela se polariza entre algumas grandes produções – os blockbusters à francesa – e uma miríade de pequenos filmes de baixo orçamento, cada vez mais distantes do modelo “arte e ensaio” e cuja função principal é se adequar às exigências dos canais de televisão que contribuíram com a produção para, depois, serem formatados para telefilmes.
Pascale Ferran e seu Clube dos Treze se opõe a essa divisão. Para “tecer os laços entre as famílias do cinema”, o grupo reivindica atenção especial aos “filmes do meio”, produções de médio orçamento em vias de desaparecimento. O que parece uma atitude de bom senso pode se revelar a primeira máquina de guerra contra a herança “nouvelle vague”, já que Ferran insiste na necessidade de aumentar o investimento nos roteiros para amenizar, segundo ele, a baixa na qualidade
das produções.
Sabe-se que a questão do roteiro é a pedra angular da nouvelle vague. Os antigos críticos de Les Cahiers du Cinéma, adeptos da “câmera caneta”, desprezavam os roteiristas e se apoiavam na “política de autor”, que teorizava esse desprezo ao transformar o realizador no mestre do olhar, no único autor do filme. No pensamento dominante, voltar à primazia do roteiro em nome da qualidade é voltar ao cinema criticado pela nouvelle vague.
A nouvelle vague favoreceu, dessa maneira, a fragmentação do cinema francês em cooperativas rivais e contribuiu para a criação de um novo personagem, o cineasta à flor da pele, que convive mal com o ostracismo do qual é vítima (Maurice Pialat) ou desenvolve hábitos de artista maldito (Jean Eustache). Sem o passe que abre as portas dos auxílios financeiros e mídias influentes, querer fazer um filme será constantemente uma missão impossível. Cinquenta anos após sua explosão, a nouvelle vague se tornou, talvez, uma sombra de chumbo sobre o cinema francês.
Como escreveu Serge Daney, “a nouvelle vague, esse momento lendário no qual jovens iconoclastas puderam, instantaneamente, alcançar a glória universal ao filmar sua própria geração, fascinará ainda por muito tempo”. Mas esses horizontes se fecharam.
Para um estudante de cinema, sonhar ser parte de uma hipotética “próxima nouvelle vague” é certamente mais motivador do que aceitar a forte probabilidade de seu primeiro filme ser o último.
*Philippe Person é escritor.