A nova força da Índia
Com mais de 1,3 milhão de homens e mulheres a serviço da nação, a Índia possui a terceira maior força militar do mundo em termos de efetivo. Contudo, o estado geral dos equipamentos é preocupante: os materiais estão envelhecidos e os veículos obsoletos. Com investimentos astronômicos, essa situação precária deve mudar
Com mais de 1 bilhão de habitantes, status de nação nuclear e uma expansão econômica extraordinária, a Índia atingiu o nível de potência mundial. Gigante em plena ascensão, o país conseguiu modificar sua imagem de simples “ator regional” ligado a uma “diplomacia moral”1 herdada dos anos de governo de Jawaharlal Nehru.
Os atores globais já não ousam fazer declarações como a do então secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld, em 2001, que frustrado pelas fortes ligações nucleares entre Moscou e Nova Deli, disse que a Índia “é uma ameaça para os outros povos, no entender dos EUA, Europa ocidental e países da Ásia ocidental”2.
Cortejados por todos os grandes países do mundo, com exceção da China, os indianos podem hoje se dar ao luxo de escolher seus aliados. Tendo em mira o objetivo de se tornar membro permanente do Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas), eles esperam impacientemente alguns passos mais animadores da administração Barack Obama, que é percebida a priori como menos pró-indiana que a anterior, notadamente com relação à eterna disputa entre Nova Deli e Paquistão, envolvendo a região da Caxemira. Para Christophe Jaffrelot, a mudança cultural é profunda: “De grande intermediária da ética, a Índia tende a se transformar em arauto da aproximação realista entre países no âmbito das relações internacionais”3.
Para consolidar esse status, a Índia busca se sustentar sobre três pilares. Em primeiro lugar não pode permitir que a crise econômica mundial arruíne seus projetos de desenvolvimento. Em segundo, é necessário capitalizar o formidável sucesso diplomático que representou o acordo nuclear civil negociado em 2005 com Washington e ratificado pelo Congresso americano em 2008. Esse pacto desafia as regras do sacrossanto Tratado de Não Proliferação (TNP) e volta a apontar a Índia como poderosa nação nuclear militar “responsável”.4 Já o terceiro pilar pode ser resumido em três palavras: Bhãratiya Sasas Senaem ou Forças Armadas. Dentro de uma Ásia em pleno rearmamento, o poderio militar convencionalmente representa para o país um cacife tão importante quanto os dois primeiros pilares.
Acelerando a evolução
A Índia tem ainda outra vantagem: parece bem mais aberta às mudanças. Comparando-se aos exércitos ocidentais e a uma China que moderniza suas forças a passos rápidos, desde as comunicações táticas aos sistemas espaciais, Nova Deli busca voz própria para impor credibilidade. Ainda dependente de um modelo operacional da Guerra Fria e de suprimentos de armas russos, ela busca acelerar sua evolução. Tanto é assim que em menos de 15 anos a revolução tecnológica de sistemas de controle e de comunicação, a emergência da “arsenalização” do espaço e o desenvolvimento de programas de segurança interna (Homeland security) transformaram profundamente o país.
A partir daí, as elites civis e militares indianas se empenharam em teorizar em cima de um “modelo” seguro e adaptado: elas esperam revolucionar as Forças Armadas que alguns afirmam não ter deixado completamente as tradições do exército indiano. Recursos não faltam: para o ano fiscal 2009-2010, o orçamento militar aumentou inéditos 23,7%, chegando a mais de US$ 29 bilhões.5
Com mais de 1,3 milhão de homens e mulheres a serviço da nação, a Índia possui a terceira maior força militar do mundo em termos de efetivo, atrás apenas da China e EUA. O exército em terra fica quase todo de sobreaviso, à espera de uma ordem para entrar em ação. Mas, ainda que o país possua unidades de elite, o estado geral dos equipamentos terrestres é relativamente preocupante: os materiais estão envelhecidos, os veículos obsoletos e há dificuldade para manter em condições operacionais os parques militares. Essas são as principais chagas que nutrem o sentimento de frustração do pessoal “de terra”, menos favorecido pelo orçamento em comparação a seus colegas da aviação e da marinha.
A Indian Navy representa uma das marinhas mais importantes do mundo. Dois porta-aviões são os símbolos do novo status, um deles comprado da Rússia e “reabilitado”, o outro construído por estaleiros indianos. Além disso, o programa do submarino nuclear nacional, Advanced Technology Vessel (ATV), atingiu em julho de 2009 uma etapa fundamental, com o lançamento oficial do submarino de ataque INS Arihant, primeiro de uma série de cinco unidades.
A Indian Air Force (IAF) é, sem dúvida, o setor mais prestigiado e paparicado das Forças Armadas. Produto britânico criado em 1933, ela foi prudentemente restrita a missões táticas pelo colonizador. Após a independência, subiu de patamar, adquirindo alguns F-104 americanos. Porém, com a parceria Washington-Islamabad, o país acabou se jogando nos braços da indústria armamentista russa por longo tempo, o que levou a aviação indiana a adotar a cultura mais defensiva da aviação soviética – os Mig-21 simbolizam essa herança. Agora, aspirando uma dimensão estratégica “de ataque com profundidade”, os aviadores exigem de Moscou equipamentos mais modernos. A pressão é tanta, que as Forças Armadas indianas são o único cliente para quem os russos aceitam vender seus sistemas de ponta, disponibilizados somente para seu próprio exército.
Como se isso não fosse suficiente, Israel, França e até mesmo os EUA começam também a cooperar, malgrado um antiamericanismo tradicional ainda forte na Índia. Um exemplo: a Força Aérea indiana abriu concorrência para 26 programas de equipamento, sendo o mais emblemático, hoje, o Medium Role Combat Aircraft (MMRCA, aeronave de combate multitarefa de quarta geração). A encomenda é de 126 unidades, algo em torno de US$ 12 bilhões.6 Este “contrato do século” reuniu empresas europeias do porte da Dassault, Saab, EADS, a russa MIG, além das americanas Boeing e Lockheed Martin.
O trauma que o general da Força Aérea, V. K. Verna, denominou de “o apartheid tecnológico” dos anos de Guerra Fria, fez com que os indianos estabelecessem, em longo prazo, uma indústria aeronáutica totalmente autônoma. Claro, eles ainda não desejam trocar suas lig
ações com os russos, que já conhecem tão bem, por uma dependência dos ocidentais, famosos por sua inconstância. Seja qual for a empresa vencedora, o programa MMRCA envolve condições rígidas de transferência de tecnologia: os 18 primeiros aviões serão liberados até 2012, e os 108 restantes serão construídos na Índia pela Hindustan Aeronautical Limited (HAL). Dessa forma, a empresa escolhida deverá reinvestir dentro da economia indiana pelo menos metade do montante do contrato.
Obsessão com Pequim
No domínio aéreo e marítimo esta ambição de equipamentos e reformas reflete a atração de Nova Deli por uma capacidade de intervenção a longa distância. Em 1999, na obra Defending Índia,7 Jaswant Singh, então ministro das Relações Exteriores, já se mostrava defensor desta nova opção. Mas quaisquer que possam ser suas ambições de “exportador de segurança”, a Índia não pode negligenciar suas brigas de vizinho com o Paquistão e a China.
Embora os estrategistas indianos tentem mostrar o Paquistão como um comparsa menor de Pequim, a obsessão indiana continua forte contra o irmão inimigo. “A realidade geopolítica asiática mostra-se difícil, por vezes impossível, para se obter uma ‘relação fraternal’, no futuro, entre esses países. Mas se a Índia e a China continuarem a se fortalecer nos próximos anos, um projeto de segurança terá que ser elaborado, inevitavelmente”, afirma o juiz M. Pant.8
A recente decisão indiana de excluir, em 2009, as Forças Armadas chinesas da segunda edição do Indian Ocean Naval Symposium (IONS)9 confirma essa crescente desconfiança. Para Nova Deli, parece inaceitável ver Pequim interferir num fórum que reúne os chefes de estado-maior das marinhas de países rivais do oceano Índico, criado em fevereiro de 2008 sob sua égide. Os protestos chineses foram eloquentes e os jornais oficiais exibiram expressões pejorativas como “oceano dos indianos”.
A obsessão indiana concernente ao “colar de pérolas”, uma série de bases navais chinesas instaladas desde o mar da China meridional até as costas da África, passando pelo oceano Índico (ver mapa), está no centro dessa insistência de manter Pequim distante da região oceânica claramente reivindicada por Nova Deli.10 Contudo, a intensidade dos fluxos marítimos internacionais dentro dessa área, bem como o apoio de outros países costeiros contrários à Índia (a começar por Paquistão, Sri Lanka e Birmânia), comprovam que esse não é o “oceano da Índia”. Atualmente, a corrida entre as marinhas da China e da Índia para lançar suas forças contra a pirataria somali tem ressaltado ainda mais essa emergente rivalidade oceânica.
A essa questão marítima juntam-se os permanentes pontos de atrito em terra. Mais do que nunca, os generais do Exército indiano estão em constante alerta nas diferentes fronteiras. A Caxemira continua sendo a principal dor de cabeça do noroeste. A mais importante força terrestre indiana, o Comando do Norte, gerencia essa linha de frente. No nordeste do país, o conflito com a China, envolvendo Arunachal Pradesh, não está resolvido. De maneira geral, os oito estados dessa região, ligados à península indiana apenas pelos 21 km de fronteira do corredor de Siliguri, representam uma eterna inquietação para Nova Deli. Parte dessa área foi fechada aos estrangeiros durante quase 40 anos. As rebeliões separatistas abundam no local e as principais culturas foram radicalmente eliminadas da península. A Frente Unida pela Libertação de Assam está sempre contestando a autoridade indiana, que desconfia que Pequim esteja dando uma “mãozinha” aos inimigos.
Mais ao sul, Bangladesh, enclave muçulmano localizado no centro do delta do Brahmaputra e confrontado por uma situação demográfica e econômica difícil, gera um fluxo de imigração altíssimo para a Índia. Esta, por sua vez, utiliza as Forças Armadas para tentar frear a movimentação maciça de pessoas na fronteira e, apesar dos protestos internacionais, constrói um muro de separação com 4 mil km de arame farpado. O controle da passagem é reforçado por postos de observação. Essa situação faz lembrar que, apesar da ajuda decisiva que a Índia deu a Bangladesh em 1971, durante a separação do Paquistão “ocidental”, nunca houve uma relação de afetividade entre os dois países. Chittagong, principal porto de Bangladesh, agora também serve de parada para a Marinha chinesa.
Em pé de igualdade com os grandes espaços oceânicos, esses entraves de fixação terrestre formam o contexto em que se organiza a Defesa indiana. As opiniões em torno do tema são inflamadas. Dessa forma, o número de revistas acadêmicas e de reflexão (think tank de Defesa) explodiram na última década, envolvendo desde o Centre for Air Power Studies da IAF até o Strategic Foresight Group ou o South Asis Analysis Group, sendo o antigo responsável pelo contraterrorismo indiano, Bahukutumbi Raman, considerado um partidário da linha dura, tanto externa como internamente.
Adaptações necessárias
Com frequência, os especialistas dissecam os “retornos de experiências operacionais” indianas do passado. Eles utilizam como objeto de reflexão as estratégias e modelos de guerras convencionais (como a campanha da Caxemira de 1947-48, guerras indo-chinesas de 1962 e indo-paquistanesas de 1965 e 1971); as “limitadas” (como as operações da ONU no Congo, em 1961-62); as operações de manutenção pela paz (Indian Peace Keeping Force (IPKF) no Sri Lanka, em 1987, e a operação “Cactus” nas Maldivas, em 1988); e as operações “mistas” (guerra de Kargil, conhecida como “as geleiras”, em 1999, na Caxemira). Se, culturalmente, a herança histórica e os graves problemas nas fronteiras favorecem o modelo de divisões pesadas, as Forças Armadas indianas estão fazendo o jogo da adaptação, dando vez à tecnologia e à tática. Assim, a Aeronáutica, confrontada pela insurreição naxalita11 da Índia central ou pelos movimentos separatistas do nordeste,12 está estudando minuciosamente a campanha aérea de 2008 no Sri Lanka, buscando receitas para aplicar em matéria de contrarrevolta.13 Da mesma forma, os exercícios Hind Shakti do Exército, realizados em maio de
2009 no Pendjab, simularam um ataque por terra ao Paquistão, experimentando uma forma bem mais flexível de blitzkrieg, inspirada nas táticas mais audaciosas da escola de blindados russos.
Esses mesmos treinamentos também beneficiaram de forma inovadora os meios espaciais: em abril de 2009, a Índia colocou em órbita um satélite de observação contínua, o RISAT-2, de origem israelense, destinado a monitorar a fronteira paquistanesa. Como Pequim, Nova Deli procura capitalizar os seus avanços para tirar vantagem da militarização espacial crescente.
De acordo com os militares, gerenciar essa estratégia implica investir em um dispositivo ofensivo de defesa espacial, porque “dentro de um possível cenário de conflito limitado, a China não hesitaria em desligar ou danificar seus satélites de observação, de maneira seletiva, para enfraquecer as capacidades indianas, nos negando assim o conhecimento indispensável do campo de batalha”, prevê o tenente-coronel Kaza Lalitendra, da IAF.14 Levando em consideração esses debates internos sobre as formas de combate de alta e baixa intensidade, da guerra nas montanhas até o domínio espacial, apresentam-se ainda dois outros pontos polêmicos, resultantes dos questionamentos geopolíticos da nova Índia.
O primeiro concerne ao dilema entre um modelo defensivo concentrado nas prioridades de fronteira, e o outro, mais ambicioso, de “projeção de imagem de poder” mundial, cujos partidários, estimulados como já se viu pelos avanços chineses – marítimos, em particular, com o “colar de pérolas” – impõem cada vez mais seus argumentos aos estados-maiores. Essa dicotomia teórica é particularmente visível na Marinha. Algumas pessoas, influenciadas pela escola soviética, consideram a frota um mero coadjuvante que contribui para o equilíbrio nuclear regional; ao passo que outros, que vivenciaram academias americanas, desejam bloquear a expansão chinesa por meio de uma estratégia oceânica antinavio mais agressiva.15
O segundo ponto é a tentativa de persuadir o poder público sobre a fragilidade da Índia multicultural face ao terrorismo. Com base nos ataques islâmicos de Bombaim (174 mortos em 26 de novembro de 2008), ele advoga uma melhor convergência entre defesa e segurança. Para o ministro da Fazenda, Pranab Mukherjee, que apresentou em 7 de julho de 2009 o novo orçamento da União, “os ataques terroristas em Mumbai nos deram uma dimensão inteiramente nova sobre o terrorismo de fronteira. Nossa segurança foi consideravelmente deteriorada”. Essa tendência é dominante, hoje em dia: o país se prepara para adquirir, nos próximos três anos, mais de US$ 10 bilhões em equipamentos de segurança de fronteiras.16 Quanto às forças especiais indianas, seu contingente deverá aumentar consideravelmente, um reequilíbrio que acontece entre as tropas de elite do Ministério do Interior e as unidades militares, em benefício destas últimas. Os objetivos: a luta antiterrorismo e as intervenções urbanas. Centro desses debates estratégicos e culturais, as Forças Armadas indianas, apesar dos exageros tecnológicos cada vez mais difundidos, não são mais um lento paquiderme em transformação. Poderia a conjuntura financeira pesar sobre a ambição de Defesa de Nova Deli? O discurso oficial exclui essa opção. Para Pradeep Kumar, responsável pela produção militar antes de ser nomeado ministro da Defesa, em julho de 2009, “a modernização das Forças Armadas indianas seguirá em frente, e a crise financeira não terá nenhum efeito sobre os projetos”.17
*Olivier Zajec é encarregado de estudos da Companhia Européia e Inteligência Estratégica (Paris).