A nova imprensa da extrema direita alemã
Impor sua agenda no debate público, levar a batalha cultural paralelamente ao combate político: na Alemanha, como em outros lugares, as formações nacional-conservadoras se aplicam em preencher essa dupla tarefa. Isso passa pela criação de revistas, editoras e jornais. É o caso do Junge Freiheit, semanário que conheceu um crescimento fulgurante nos últimos anos Rachel Knaebel
Na entrada dos escritórios do jornal semanal Junge Freiheit (“Jovem Liberdade”), em um bairro rico do oeste de Berlim, uma pintura mostra em cerca de vinte personagens em marcha uma alegoria da história alemã: camponeses e reis, soldados e mulheres a caminho do êxodo. Tem até Karl Marx e, lá no final, um manifestante antinuclear. Mas nenhum nazista. O único rastro da ditadura nacional-socialista é uma bandeira com a suástica caída no chão, amarrotada e enroscada no pé. Dieter Stein, fundador e redator-chefe do jornal, ornou a parede de seu escritório com um retrato do conde de Stauffenberg, o oficial da Wehrmacht que organizou o atentado malsucedido contra Hitler em 20 de julho de 1944.
“Há uma corrente, não muito numerosa, mas tradicionalmente presente na Alemanha, que alimenta um sentimentalismo pelo Terceiro Reich. Não é a nossa.” Stein, de 50 anos, quer ser claro sobre a linha do jornal que ele criou em 1986, enquanto ainda era estudante secundarista: nacional-conservadora, mas sem ligação com a formação neonazista Nationaldemokratische Partei Deutschlands (NPD).
Em suas cerca de trinta páginas em formato grande, com tipografia à moda antiga e estilo frequentemente pesado, o Junge Freiheit, que se apresenta como um “periódico semanal de debate”, traz poucas reportagens, mas muitas análises políticas e comentários recheados de referências, históricas e filosóficas, algumas vezes surpreendentes – como quando um editorialista cita o poeta abolicionista norte-americano Henry David Thoreau para chamar à desobediência contra a chanceler Angela Merkel (6 jan. 2017). O jornal segue os mínimos fatos e gestos e os vivos debates internos da Alternativa para a Alemanha (Alternative für Deutschland, AfD), o partido de extrema direita criado em 2013 com um discurso anti-imigração, antieuro, antifeminista e ultraliberal.1 Nas eleições legislativas de 2013, a AfD quase atingiu o limite dos 5% necessários para entrar no Bundestag. Ela tem representantes desde então nos Parlamentos regionais em doze dos dezesseis Länder alemães, com resultados que vão de 5,5% a mais de 24%.
À medida que acumulava sucessos eleitorais, a AfD descobria uma constelação de mídias amigas, vindas da cena cultural da extrema direita alemã. Esta já tinha conhecido uma retomada da visibilidade em 2010 com a obra xenófoba A Alemanha desaparece, do antigo político social-democrata Thilo Sarrazin, com mais de 1,5 milhão de exemplares vendidos. No mesmo momento, uma revista mensal conspiracionista, Compact, “revista pela soberania”, publicou seu primeiro número. A difusão do Junge Freiheit cresce rapidamente: mil assinantes em 2005, 20 mil em 2014, 25 mil em 2016. O jornal reivindica hoje 30 mil exemplares vendidos por semana. Compact e Junge Freiheit organizam também conferências e distribuem seus próprios livros ou aqueles das editoras ideologicamente próximas. Eles suscitam o interesse de simpatizantes do movimento dos “Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente” (Pegida), que, como a AfD, mas de maneira menos institucionalizada, pretende combater a hegemonia política dos partidos do governo. Instigados por ele, milhares de pessoas desfilaram semanalmente contra a “islamização da Alemanha” nas ruas de Dresden no outono de 2014; uma parte dos manifestantes gritava slogans hostis à Lügenpresse (a imprensa que mente). Compact e Junge Freiheit apresentam-se como uma garantia de pluralismo diante do resto da imprensa supostamente uniforme em relação às questões sociais. “Há um problema com o jornalismo na Alemanha”, estima Dieter Stein. “Eles tomam a tutela do leitor, como se ele fosse idiota demais para entender em que sentido vão as coisas. Eles filtram a informação para que o leitor não tenha ideias que os jornalistas consideram falsas, sobre a questão da imigração, sobre a ideia de uma sociedade multicultural.” Ele luta um “combate ideológico” e não se esconde. “Há um excesso de esquerda nas mídias”, julga, apoiando-se em uma pesquisa segundo a qual a maioria dos jornalistas alemães tenderia ao Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD).
Sem surpresa, os jornalistas do Junge Freiheit são mais inclinados à AfD. O partido, inclusive, pegou para si vários de seus autores. Dieter Stein nos garante: ele esperava havia mais de duas décadas pelo crescimento de um partido mais à direita que a União Cristã Democrata (CDU), não abertamente neonazista e capaz de conseguir resultados importantes nas urnas. Depois de uma passagem pela organização de juventude da CDU, Stein aderiu no meio dos anos 1980 a uma formação de direita radical, Os Republicanos, que derivou para a extrema direita; depois entrou para o Freiheitliche Volkspartei (Partido Popular Liberal), o qual abandonou após um fracasso eleitoral. “A grande mídia primeiro ignorou esses novos partidos de direita, ou então falou deles somente de maneira negativa, procurando escândalos”, irrita-se ainda hoje. “Não existia mídia que nos olhasse com bons olhos, como havia para os Verdes ou o Die Linke [formação de esquerda] quando esses partidos surgiram.” Foi a missão que o Junge Freiheit se deu diante da AfD.
Leitores bem de vida
Trata-se menos de celebrar o partido e seus dirigentes do que de inscrever no debate público os assuntos que lhes são caros: os refugiados, a imigração, o islã. A onda migratória em andamento na Alemanha desde 2015, o Junge Freiheit trata unicamente sob o ângulo da ameaça – terroristas, delinquência, agressões sexuais. Pouco importa se é real, potencial ou imaginária. As afinidades políticas se cruzam com os interesses econômicos. “Tivemos um salto em matéria de vendas e principalmente em visitas ao nosso site na internet quando Merkel abriu as fronteiras”, relata o redator-chefe.
Em 7 de outubro de 2016, o semanal deu como manchete: “O islã quer o poder” e continuou nas páginas seguintes com “Como a xaria avança na Europa”, citando a revista semanal francesa Valeurs Actuelles por seu suposto conhecimento detalhado das periferias francesas. O jornal também combate o feminismo, o direito ao aborto, a educação sexual nas escolas e os trabalhos sobre questões de gênero. Ele, inclusive, editou uma brochura sobre “a loucura do gênero” que “ameaça você, seus filhos e seus netos”.2 As páginas de cultura só destacam os livros de história consagrados às civilizações desaparecidas, aos imperadores, às guerras do século XX. A crítica de cinema pode chegar ao lançamento em DVD de um filme do mais célebre diretor nazista, Veit Harlan, sem mencioná-lo como tal e avaliando seu talento pela consideração que Joseph Goebbels tinha por ele (6 jan. 2017). Na última página, o leitor tem o prazer de relaxar lendo um artigo sobre o retorno dos fumantes de cachimbo como uma das tendências fortes da moda masculina.
Amador ou não dos tabacos antigos, o leitor-padrão do Junge Freiheit é homem (90%), mais velho (mais da metade dos leitores tem mais de 60 anos), com boa condição financeira e culto (46% possuem diploma superior), segundo os dados fornecidos aos anunciantes potenciais. Nós encontramos uma amostra deles, no final de março de 2017, na Biblioteca do Conservadorismo, uma estrutura criada pelo redator-chefe para abrigar um fundo de obras que lhe são caras. Nesse dia, o local acolhia uma conferência sobre “O calor social do capitalismo, a frieza social do Estado-Providência”. O conferencista do dia, fervoroso discípulo do pensador da economia neoliberal Friedrich Hayek, criticou ferozmente o princípio de redistribuição e enalteceu o capitalismo, que teria sobretudo “permitido às mulheres terem máquinas de lavar em vez de lavar a roupa no rio, o que com certeza era romântico”. Sentados no fundo da sala, Ulrike e Alf, dois alemães de cerca de 60 anos, escutavam atentamente.
Ela é médica. Ele, aposentado, antigo professor de esportes e de francês, e ativo durante quarenta anos na amizade franco-alemã. O casal lê o Junge Freiheit há quinze anos. “Muitos militantes da AfD leem”, explica ele, “pois muitos têm um nível de estudos elevado, são intelectuais.” “É um jornal de qualidade, clássico, a linguagem é bem cuidada”, acrescenta sua esposa. “Além disso, no Junge Freiheit não tem isso de politicamente correto, como nos outros jornais. Não tem discriminação contra a AfD nem contra o Pegida. Em minha opinião, o Junge Freiheit também fala de maneira mais objetiva sobre a Rússia. As outras mídias praticam uma verdadeira caça às bruxas. Todas elas dizem a mesma coisa, não fazem nenhuma crítica do governo nem do fluxo de refugiados.”
Custando 4,40 euros o exemplar e 200 euros a assinatura anual, o Junge Freiheit não é barato. Mas, para além de sua versão impressa, o semanal também atinge cada vez mais alemães por meio de seu site na internet, seu canal no YouTube e as redes sociais. Dieter Stein compara sua mídia ao site ultraconservador Breibart, fundado nos Estados Unidos por Steve Bannon, o conselheiro de Donald Trump. Com apenas uma nuance de diferença: “Nós temos a exigência de que aquilo que publicamos em nosso site sejam informações verdadeiras, se possível sobre as quais nós mesmos investigamos, e que os comentários sejam realmente classificados como tal”.
Bigode de Hitler
De fato, apesar de sua visão glorificada da história alemã, sua orientação pró-Trump, pró-Putin e sua islamofobia, o Junge Freiheit tem uma estampa moderada na nova paisagem da impressa de extrema direita, incluindo para além do Reno. A revista mensal Compact, cujo subtítulo é “A revista da soberania”, é muito mais exagerada. Criada em 2010 por Jürgen Elsässer, um antigo jornalista da esquerda radical nos anos 1990 que passou para o Pegida e para o conspiracionismo, hoje ela reivindica uma difusão de cerca de 40 mil exemplares.
Na capa do primeiro número de 2017 figurava Merkel com um bigode do Hitler. O título: “O último combate de Merkel. Fim de jogo no bunker da chanceler”. “Em vez de um nacional-socialismo, praticamos hoje um socialismo antinacional, que distribui a riqueza dos alemães ao mundo”, explicava Jürgen Elsässer em seu editorial contra a “importação maciça de muçulmanos”. Frauke Petry, ex-presidente da AfD, era, por outro lado, apresentada na edição de março de 2016 como “a melhor chanceler”. Compact manifesta também sua amizade com a Frente Nacional na França. O exemplar de fevereiro consagrava sua capa a Marion Maréchal-Le Pen, uma das “moças da Europa contra a islamização”, segundo a revista.
O quadro estaria incompleto sem a revista Sezession, editada desde 2003 por um “instituto pela política de Estado” e dirigido por Götz Kubitschek, um dos oradores do Pegida. Com apenas 2 mil exemplares impressos, a força de ataque dessa revista bimestral pode parecer completamente relativa. Mas deve-se contar com os múltiplos colóquios e conferências organizados pela estrutura, que se tornou ao longo dos anos um local privilegiado de encontro do pensamento de extrema direita, da Alemanha e de fora. Sezession e Junge Freiheit inclusive têm alguns autores em comum. Aqui, as finas barreiras colocadas por Dieter Stein se desintegram. Nos colóquios e nas conferências organizados pelo instituto editor de Sezession, instalado no interior da região de Saxe-Anhalt, responsáveis da AfD se encontram ao lado de antigos membros do partido neonazista NPD, de um masculinista norte-americano que prega o tribalismo, Jack Donovan, e de identitários austríacos. Um laboratório ideológico convencido pelo sucesso de Donald Trump de que não somente é possível sair das margens, como também ocupar o centro do debate.
*Rachel Knaebel é jornalista.
[Texto publicado na edição 120 do Le Monde Diplomatique Brasil – julho 2017]