A nova lei antiterrorista
Uma agenda que não deve tardar, mas que falhará (e muito) na preservação da democracia
O segundo semestre de 2021 tem sido marcado por debates legislativos de grande impacto na economia e na política brasileiras. Voto impresso, reformas administrativa, eleitoral, trabalhista e tributária, precatórios, improbidade administrativa e Auxílio Brasil são alguns dos temas que movimentam a agenda da Câmara dos Deputados nos últimos meses, com processos de tramitação caracterizados pelo atropelo do regimento interno da casa, bem como pela falta de transparência e participação, elementos caros ao processo legislativo democrático.
A gestão de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, tem sido eivada de controvérsias sobre esses dois aspectos em particular. Aliado do presidente Jair Bolsonaro, Lira se dedica a pautar projetos importantes para o governo, abrindo mão, estrategicamente, da subserviência que lhe é característica quando a temperatura do debate na Câmara exige recuo e negociação, mas também fazendo uso de recursos excessivamente centralizadores para conduzir os trabalhos quando a negociação tende a produzir resultados divergentes dos seus próprios objetivos.
Essa forma de governar do presidente da Câmara está expressa em diversos projetos em tramitação na casa. A nova proposta de lei antiterrorista é mais um exemplo de seu modus operandi, embora tenha recebido menor atenção da mídia, dado que, findo o debate sobre reforma eleitoral, a pauta econômica tem se sobreposto às demais em função da aceleração da inflação e do debate sobre o Auxílio Brasil.
O texto de uma nova lei antiterror, proposta por aliados de Bolsonaro, foi aprovado em Comissão Especial da Câmara no final de setembro e merece atenção. O projeto, de número 1595/2019, pode ser votado no plenário a qualquer tempo e tende a ter a sua tramitação concluída assim que forem destravadas as proposições econômicas que hoje mobilizam os parlamentares e, particularmente, a bancada governista.
Em resumo, a proposta modifica leis importantes sobre o assunto para ampliar a tipificação de terrorismo, na medida em que garante a prevenção e a punição de atos que também sejam “ofensivos à vida humana ou efetivamente destrutivos em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave”. Além disso, cria uma estrutura de prevenção e repressão diretamente vinculada à presidência da República, a ser constituída pela Política Nacional Contraterrorista (PNC), pelo Sistema Nacional Contraterrorista (SNC), pela Autoridade Nacional Contraterrorista (ANC) e por dois grupos especiais destinados à resolução de crises específicas – o Comando Conjunto de Operações Especiais e o Grupo Nacional de Operações Especiais – ambos subordinados ao presidente e formados por militares e civis indicados especialmente para a missão. Por fim, cria salvaguardas para o agente público que disparar arma de fogo com a finalidade de resguardar eventuais vítimas, mas que obtiver, por erro dito escusável, resultados diversos desse objetivo.
No que diz respeito à tipificação, vários críticos, dentre os quais organizações sociais brasileiras e os próprios relatores da ONU, que já se manifestaram sobre o assunto em carta destinada ao governo brasileiro, alertaram para o risco de responsabilização política e indevida de movimentos sociais e atores políticos. Quanto à nova estrutura administrativa, juízes e procuradores pronunciaram-se sobre a inoportunidade, bem como sobre os problemas associados à centralização de competências no governo federal, à usurpação de atribuições de outras unidades federativas e ao mau enquadramento jurídico das novas instituições. Por fim, sobre as salvaguardas a agentes contra “terroristas”, a adoção de uma espécie de excludente de ilicitude é objeto de enorme preocupação geral – tende a resultar em aumento expressivo da violência policial.
O projeto, de autoria do deputado Major Hugo (PSL-GO), líder do governo até agosto de 2020 e aliado leal do presidente, foi apresentado em 2019, mas seu texto é semelhante a outra proposta, de 2016, de autoria do próprio Bolsonaro (então deputado), arquivada no final da última legislatura. A nova proposta não teve qualquer movimentação durante a gestão do deputado Rodrigo Maia, mas, sob a presidência de Lira, uma manobra regimental conferiu agilidade à sua tramitação. O projeto foi despachado pela Mesa Diretora para três comissões permanentes, mas o autor solicitou que ele fosse analisado por uma quarta. De acordo com o regimento, projetos encaminhados a mais de três comissões simultaneamente têm tramitação reduzida – passam a tramitar em uma única Comissão Especial. A Comissão Especial formada para análise do projeto aprovou um substitutivo ao texto, por 22 votos favoráveis a 7 contrários. Esse substitutivo, rapidamente negociado, é, no entanto, muito próximo à ideia original.
Ressalta-se que o parecer da Comissão Especial foi aprovado em 16 de setembro, depois das manifestações do dia 7, em momento de forte reação institucional aos preocupantes arroubos autoritários de Bolsonaro e seus apoiadores. A aprovação do projeto, desse modo, pode ser lida como uma antecipação de possíveis recursos a serem usados contra adversários em 2022. A rigor, o número de condenações e casos de terrorismo no Brasil é irrisório nos últimos anos e não justificaria uma alteração legislativa dessa monta, muito menos por meio de um processo conduzido com pressa, sem transparência e em meio à pandemia de Covid-19. A Câmara não tem dado sinais de que se somará aos poucos que permanecem incitando algum tipo de ruptura institucional, mas ainda é de se esperar, dada a correlação de forças atual, que engendre esforços para desenhar instituições que melhor se adequem às expectativas políticas da maioria conduzida por Lira e Bolsonaro.
Fechada a agenda econômica e orçamentária de 2021, as atenções da base governista tendem a se voltar para uma desejada “pacificação” dos ânimos durante o ano eleitoral. Essa “pacificação”, no entanto, especialmente se resultante da aprovação, em plenário, da nova lei antiterrorismo, representará enorme perda para a democracia.
Debora Gershon, doutora (IESP/UERJ) e mestre em Ciência Política (IUPERJ), com pós doutorado pela University of California, San Diego (UCSD), é pesquisadora do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB).
*Artigo produzido no âmbito do projeto Ciências Sociais Articuladas, que integra as iniciativas promovidas pela articulação entre a Associação Brasileira de Antropologia, Associação Brasileira de Ciência Política, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais e Sociedade Brasileira de Sociologia em defesa das Ciências Sociais brasileiras, e é desenvolvido em parceria com o Observatório do Legislativo Brasileiro.