O principal risco do PL n. 2.016/2015, já aprovado no Senado e à espera de votação na Câmara, está em achar que a lei atinge apenas o “terrorista”, e não os “cidadãos de bem”, como se essa divisão fosse clara. Ora, o que se tem em mãos é justamente a possibilidade de colocar esse rótulo em qualquer um de nósMarta R de Assis Machado e Guilherme Leite Gonçalves
Marta R de Assis Machado e Guilherme Leite Gonçalves
O uso de casos dominados pelo clamor público para justificar medidas de endurecimento da política criminal não é nenhuma novidade. Reforça-se a cultura do medo e vende-se como solução o aumento do controle da população pelos aparelhos repressivos do Estado. As reações ao atentado de Paris confirmam essa regra. Na França, o presidente François Hollande resolveu intensificar ações militares contra a Organização do Estado Islâmico (OEI) e propôs uma reforma na Constituição para dar mais poderes ao Executivo. Não obstante a distância desses acontecimentos em relação à nossa realidade, a grande mídia, o governo e a bancada parlamentar conservadora, em suas últimas manifestações, aproveitaram o trágico episódio para exigir que a votação do projeto de lei antiterrorismo (PL n. 2.016/2015), já em regime de urgência no Congresso Nacional a pedido da presidenta da República, seja acelerada. Não há tempo para nada. Muito menos para refletir sobre aquilo que Robert Kurz chamou de processo de personificação do mal como meio usado pela sociedade para não se questionar e se transformar.1
Não é o caso de discutir aqui os dilemas da sociedade europeia, e sim de apontar os danos sociais e os riscos de restrição de direitos que a adoção da linguagem de “guerra ao terror” pode ter no Brasil.
O texto substitutivo do senador Aloysio Nunes Ferreira ao PL n. 2.016/2015 aprovado no Senado e enviado para votação na Câmara nos dá uma clara noção desses danos e riscos. Tal substitutivo não apenas retirou o parágrafo que excluía a aplicação da nova legislação à “conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou categoria profissional”, mas também acrescentou a expressão “extremismo político” para a determinação da figura do “terrorista”. O mesmo senador, para justificar sua intervenção, afirmou que “o país precisa de uma lei precisa, uma regra clara, que garanta segurança jurídica, especialmente em períodos de grandes eventos como as Olimpíadas de 2016”.2
Comoditização da cidade, Olimpíadas e movimentos de resistência
Desde os Jogos Olímpicos de Barcelona, megaeventos esportivos têm sido valorizados como estratégias de inclusão de cidades em novos fluxos financeiros internacionais.3 Como demonstrado por David Harvey, tais eventos exigem um projeto urbano de reestruturação das cidades-sedes que confere valor de mercado a áreas até então descomoditizadas.4 Fundamental para a acumulação financeira, o efeito social desses projetos tem sido a deflagração de um conjunto de violências materiais e simbólicas: expulsão de população pobre, apropriação de áreas públicas, eliminação do comércio local, apagamento da memória da cidade etc.
Nos últimos anos, o Rio de Janeiro tem se transformado em um laboratório dessas experiências. Dossiês elaborados pelo Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas afirmam que pelo menos 10 mil famílias foram removidas ou sofrem ameaça de remoção. A especulação imobiliária tem tomado todas essas áreas que são alvo de reestruturação. Na zona portuária, uma região marcada pela história da escravidão, onde se localizava o mercado de escravos e o cemitério dos pretos novos, ergueu-se o Museu do Amanhã.
A liderança assumida por diversos movimentos sociais e políticos nos protestos contra os gastos públicos com a Copa do Mundo e contra as recentes remoções – por exemplo, a da Vila Autódromo – mostram que eles são, se não o único, o principal fator de resistência à nova marcha de comoditização da cidade promovida pelos Jogos Olímpicos. Dessa perspectiva, fica claro qual é o tipo de segurança jurídica que o senador Aloysio Nunes pretende assegurar. Não é aquela que garante as liberdades fundamentais de associação e manifestação, mas a que impede qualquer fonte de riscos para os novos negócios.
Na verdade, essa preocupação encontra-se na base da justificativa do PL n. 2.016/2015. O fato de ter sido proposto pelo ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo, juntamente com o ministro Joaquim Levy, demonstra ser tema de interesse direto da Fazenda. Como esclarecido por ambos os ministros, a nova lei surge, entre outros motivos, da necessidade de combater o financiamento ao terrorismo, de modo a cumprir “acordos internacionais firmados pelo Brasil”. E especificam: “principalmente em relação a organismos como o Grupo de Ação Financeira (Gafi)”.5
Recomendações do sistema financeiro e legislações restritivas aos movimentos sociais
Junto com outros organismos, o Gafi integra uma rede de proteção que busca atuar em relação a padrões institucionais que possam produzir efeitos negativos sobre a “integridade” do sistema financeiro. O objetivo do grupo, como lembram os ministros em sua justificativa, é reagir às ameaças advindas da lavagem de dinheiro e do financiamento ao terrorismo. Para tanto, o Gafi desenvolve uma série de recomendações baseadas em seu julgamento a respeito de vulnerabilidades no âmbito nacional e, em seguida, monitora a aplicação dessas medidas em seus países-membros. Ao final, emite relatórios de avaliação que classificam os países como “conformes”, “parcialmente conformes” e “não conformes” às recomendações.
A recompensa pelo cumprimento é a declaração daquele ambiente como seguro para os negócios. Já o certificado de “território não cooperativo” representa um sinal vermelho para o mercado financeiro, desestimulando-o a realizar transações naquele país. Desde janeiro, o presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, ligado ao Ministério da Fazenda, tem manifestado inquietação quanto ao risco de o Brasil entrar na “lista negra” do Gafi por conta da falta de legislação que criminalize o financiamento do terrorismo.
As recomendações do Gafi, consideradas saudáveis para o sistema financeiro, têm gerado efeito completamente contrário para a liberdade de associação e manifestação de movimentos sociais. Em fevereiro de 2012, duas organizações internacionais, Transnational Institute e Statewatch, realizaram uma ampla pesquisa sobre o teor das reformas legais nacionais deflagradas pela Recomendação Especial VIII (RE VIII) do Gafi.6 A pesquisa demonstra que o sistema de avaliação desse organismo “aprovou alguns dos mais restritivos regimes regulatórios de organizações sem fins lucrativos de todo o mundo e encorajou fortemente governos que já têm caráter repressivo a introduzir novas regras capazes de restringir ainda mais o espaço político de ONGs e atores da sociedade civil”.
Países que receberam o selo “conforme a recomendação”, como Egito e Tunísia, criaram regras, leis e um aparato de segurança que coibiram largamente a ação de movimentos sociais orientados à defesa dos direitos humanos e das reformas democráticas. Se pensarmos na história recente dos dois exemplos citados, fica evidente que a adoção da RE VIII do Gafi foi um entre muitos outros instrumentos de reação à Primavera Árabe e aos processos de mudança das estruturas de poder nessas sociedades. A pesquisa incluiu ainda estudos de caso de outros dez países: Mianmar, Camboja, Colômbia, Índia, Indonésia, Paraguai, Rússia, Arábia Saudita, Serra Leoa e Uzbequistão. Em todos, afirma o documento, legislações endossadas pelo Gafi restringiram direitos de organização e manifestação de movimentos sociais.
Além disso, a pesquisa mostra que o impacto do regime da RE VIII também foi negativo mesmo nos países em que ativistas experimentam maior espaço de liberdade. No contexto recente brasileiro, marcado por ações de repressão a protestos, não é possível esperar um efeito melhor. Esse pessimismo é reforçado pelo próprio modus operandi do Gafi, cuja “falta de controle democrático, fiscalização e accountability tem permitido”, conforme conclui a pesquisa citada, “regulações que violam os direitos humanos, a proporcionalidade e a efetividade”. É com esse perfil que essas regulações passam a integrar os standards da good governance do capitalismo financeiro global.
Se o fim social último do Gafi é proteger a integridade do sistema financeiro, quando tal integridade está associada à promoção de um megaevento esportivo, seu foco de oposição – os movimentos políticos e sociais – tornam-se fatores de insegurança para os negócios. Nesse contexto, não é difícil justificar o temor por parte dos movimentos sociais de serem considerados os “terroristas”, alvo dessa lei. A análise dos aspectos técnicos e jurídico-penais do PL n. 2.016/2015 mostra que esse risco não é apenas uma elucubração conspiratória.
Aspectos técnicos do projeto de lei antiterrorismo: todos somos inimigos
Se olharmos para tais aspectos, veremos uma série de problemas que caracteriza o que hoje se chama de “direito penal do inimigo”, por oposição a um “direito penal de cidadãos”.7
Em um direito penal de cidadãos, a lei penal, dada a intensidade de restrições que pode significar à liberdade individual, requer, em contrapartida, parcimônia e cuidado em sua aplicação. Para proteger o cidadão do arbítrio, de intervenções desnecessárias à sua intimidade e liberdade ou do erro judiciário, foi criado, no âmbito do estado de direito, um sistema de garantias constitucionais e processuais. Esse sistema é frontalmente atingido pelo PL n. 2.016/2015, o que nos coloca a todos justamente sob o risco da perseguição e de limitações injustas a direitos, isto é, sob o risco de nos tornarmos os inimigos “terroristas”.
A primeira garantia que nos é violada pelo projeto de lei diz respeito ao princípio da legalidade e da anterioridade da lei. Esses são dois dos princípios mais caros ao estado de direito, que garantem que nenhum cidadão será surpreendido por incriminações ad hoc, posteriores ao fato.
A nova lei antiterrorismo é composta de expressões indeterminadas e maleáveis capazes de comportar, a gosto ou conforme ideologia do intérprete, condutas e contextos dos mais diversos possíveis. Terrorismo, por exemplo, é definido como qualquer ato que provoque “pânico generalizado, mediante violência ou grave ameaça”. Não se sabe o que pode vir a ser caracterizado como pânico generalizado nem o que pode vir a ser considerado grave ameaça. Juízes brasileiros costumam fazer leituras bastante impressionistas de sentimentos sociais. Basta lembrar a “doutrina” do sentimento de insegurança da população – jargão utilizado em inúmeras decisões que decretam, sem mais, com base em percepções subjetivas e indemonstradas, a prisão provisória de cidadãos inocentes. Considerando tais expressões vagas na definição de terrorismo, a incerteza se espalha pelo PL n. 2.016/2015. Uma organização terrorista é aquela que pratica “ato terrorista” – que ninguém sabe o que é. Tem-se, assim, uma tautologia, em que a explicação não explica: é, na verdade, uma repetição falaciosa. Ainda assim, fazer parte de tal organização é crime apenado com dez a dezesseis anos. Financiar terrorismo, sob pena de doze a vinte anos de reclusão, é contribuir de qualquer modo, direta ou indiretamente, com qualquer indivíduo ou grupo que planeje, prepare ou pratique “ato terrorista”. O texto da lei também não explica o alcance dessa contribuição. A elaboração de tipos tão abertos, cujo conteúdo ninguém pode determinar, elimina as garantias jurídicas de que falamos anteriormente.
O PL n. 2.016/2015 tipifica também o crime de apologia ao terrorismo como “fazer publicamente apologia de ato terrorista ou de autor de ato terrorista”. Ora, se não sabemos o que é ato terrorista, isso significa que a qualquer momento podemos ser surpreendidos a posteriori por termos nos manifestado a favor de alguma ação ou grupo que veio a ser considerado terrorista – seja o apoio a uma greve, manifestação ou ocupação de escolas públicas. Estamos todos – manifestantes, grevistas ou simplesmente apoiadores – sujeitos a ser considerados criminosos terroristas. O efeito devastador que isso tem para a liberdade de expressão deveria por si só causar ao menos algum constrangimento à aprovação desse projeto em pleno regime dito democrático.
Irônica ou cinicamente, o senador Aloysio Nunes, em parecer que acompanha seu substitutivo, admite que “há um fundado receio, nesse ponto, quanto a condutas praticadas especialmente em redes sociais e outras aplicações da internet, quanto ao risco de enquadramento no tipo penal. Por exemplo: seria o compartilhamento de conteúdo com viés terrorista uma apologia ao terrorismo? E o que dizer do curtir ou outro recurso digital muito comum em redes sociais? Seria essa ação digital também uma conduta de apologia?”. Apesar de todas essas incertezas admitidas pelo próprio senador, ele mantém a tipificação do crime, alegando que bastaria a redução da pena – de três a oito anos de reclusão –, que, diga-se de passagem, só pode ser considerada branda se o critério de comparação for as penas excessivamente altas dos demais tipos desse mesmo projeto de lei. Em outras palavras, o senador admite que um sujeito pode ficar preso até oito anos de sua vida por ter “curtido” um post de “viés terrorista” no Facebook, seja lá o que for entendido como “viés terrorista”. Dessa forma, um senador da República abre mão expressamente de sua responsabilidade como legislador penal para dizer, no próprio texto que acompanha a lei, que todas essas questões ficam de fato em aberto e serão definidas pelo Poder Judiciário com o “amadurecimento jurídico e tecnológico”. É no mínimo alarmante ver um parlamentar praticar tão abertamente um ato de extrema irresponsabilidade e flagrante desprezo ao princípio da legalidade e da certeza jurídica.
Diante da pouca maturidade e de todos os problemas do PL n. 2.016/2015, fica claro que nem o próprio legislador sabe o alcance dessas expressões abertas. Isso significa que qualquer um de nós pode ser surpreendido por acusações vagas de ter praticado, apoiado ou ajudado o terrorismo, sob ameaça de prisão por um bom número de anos. É inegável que tal projeto é um instrumento que possibilita arbitrariedades, o que não pode ser ignorado pelo legislador, a não ser que esse seja justamente seu propósito.
Embora essa nos pareça a faceta mais perversa da lei, não é só isso que está em jogo. Não bastasse o fato de podermos ser surpreendidos por incriminações ad hoc, sem prévia definição legal, chama atenção a severidade das penas previstas por atos que não envolvem nenhuma lesividade.
Em que pese a aparente imagem simbólica de que o terrorismo é em si um ato extremamente lesivo – e que nos remete a fatos graves como os tristes episódios que levaram a mortes em massa de civis inocentes –, não é isso que vemos nos crimes trazidos pelo PL n. 2.016/2015. Nele, as condutas descritas não estão necessariamente ligadas a resultados lesivos. A maior parte delas criminaliza ações que se supõe abstrata e eventualmente estarem ligadas a um possível ato terrorista (novamente: o que quer que seja ato terrorista) e que não exigem dano efetivo para se configurar. Por exemplo, é crime o simples pertencimento a um grupo considerado terrorista – definido como aquele que se une mesmo que eventualmente para a prática de ato terrorista –, o que, repita-se, não tem definição estrita na lei. Ou seja, se você é filiado a um sindicato ou associação que, em algum momento, realiza algum ato que na cabeça de algum juiz possa ser enquadrado na nova lei, você poderá ser perseguido e punido com uma pena de prisão de no mínimo dez anos, ainda que não tenha nenhuma relação ou participação no ato considerado “terrorista”. O mesmo vale para o crime de contribuir, de qualquer modo, direta ou indiretamente, para o planejamento de ato previsto na lei. Vê-se aqui que o PL n. 2.016/2015 antecipa de modo bastante contundente a intervenção da lei penal – o crime não se consuma com uma ação que efetivamente provoque uma lesão a um bem jurídico. Basta contribuir, indiretamente, para o planejamento de uma ação que, ainda que esta nunca se concretize, já se está diante do tipo penal consumado.
Utiliza-se, assim, uma técnica legislativa de criminalização de condutas preparatórias, que prescindem do resultado lesivo, em uma tentativa de coibir no nascedouro qualquer conduta que – ainda que no futuro incerto – venha a ser lesiva. É possível que o direito regule preventivamente condutas que consideremos indesejáveis ou condutas que o legislador apenas imagine que possivelmente possam ter relação com algum dano a ser evitado. O direito administrativo normalmente faz isso – regras de trânsito, normas de construção urbana, normas envolvendo a saúde de alimentos: estabelece-se um patamar almejado de segurança por meio de um conjunto de normas que devem ser obedecidas a título preventivo. Com isso, condutas possivelmente inofensivas individualmente são proibidas para manter esse patamar, para prevenir estatisticamente o surgimento de riscos. É esse o modelo seguido pelas incriminações prévias da lei. O detalhe é que não se trata de um regulamento administrativo que, diante da ação inofensiva, sanciona, por exemplo, com multa. No PL n. 2.016/2015, ações desse tipo são tratadas com penas duríssimas de privação de liberdade – dez a dezesseis anos ou doze a vinte anos, respectivamente, para os crimes que citamos, o pertencimento a organizações e a contribuição para o planejamento. Isso representa não apenas um problema de falta de proporcionalidade, mas também de irracionalidade de um Estado que aplica uma pena que praticamente incapacita um indivíduo por toda a sua vida útil por um ato possivelmente inofensivo e – dado o caráter aberto da lei – muito fora do que nosso imaginário associa a terrorismo.
Quando olhamos para condutas mais concretas trazidas pela lei, há ainda outra perplexidade: todas são crimes já previstos pelo Código Penal (homicídio, lesão corporal, dano ao patrimônio, lavagem de dinheiro, exposição da vida a perigo etc.). A diferença é que no PL n. 2.016/2015, uma vez praticadas pelo “terrorista” (aquele que por ora ninguém sabe quem é), tais condutas recebem um tratamento bastante mais grave. É importante fazer notar isso, pois um dos argumentos equivocados utilizados para defender a nova lei sustenta que o Brasil estaria impossibilitado de cooperar internacionalmente na perseguição a terroristas, pois as condutas pelas quais eles estariam sendo procurados não seriam crimes aqui (o que é requisito, por exemplo, para a extradição). Equívoco ou má-fé, não importa, trata-se simplesmente de argumento improcedente, que, como outros, se utiliza da solidariedade e empatia das pessoas com as vítimas da recente onda de atentados para obter apoio a um projeto de lei que se pretende aplicar para fenômenos absolutamente distintos. Afinal, os próprios ministros autores originais do projeto – da Justiça e da Fazenda – admitem em sua exposição de motivos que o Brasil não é e nunca foi alvo de ações desse tipo.
Como vimos, o principal risco do PL n. 2.016/2015 está em achar que a lei atinge apenas o “terrorista”, e não os “cidadãos de bem”, como se essa divisão fosse clara. Ora, o que se tem em mãos é justamente a possibilidade de colocar esse rótulo em qualquer um de nós e, com isso, justificar a supressão de direitos. Nesse contexto, é oportuno lembrar a famosa adaptação de Martin Niemöller ao poema de Maiakovski “E não sobrou ninguém”: “Quando os nazistas levaram os comunistas, eu me calei, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu me calei, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu me calei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando eles vieram me buscar, não havia mais ninguém que pudesse protestar”.
Conclusão
A história do PL n. 2.016/2015 é tortuosa. Da recomendação de um organismo financeiro internacional se chegou a um texto de lei que se alinha à política de exceção, baseado em conceitos jurídicos totalmente abertos e indeterminados, que ampliam sobremaneira o foco dos sujeitos criminalizáveis. Na Câmara, procurou-se, de algum modo, ainda que relativo, proteger os movimentos políticos e sociais; no Senado, preferiu-se abertamente persegui-los. A atual redação é claramente desfavorável à liberdade de associação e manifestação.
Desde o início, essa iniciativa legislativa encontra-se em trânsito permanente entre os interesses econômicos globais e as elites locais. Quanto a estas últimas, a nova lei antiterrorismo mostra-se o instrumento adequado para inibir protestos contra a atual onda conservadora. Manifestações contra as novas iniciativas legislativas de aumento das restrições ao aborto, limitação da definição de entidade familiar, redução da maioridade penal, revogação do Estatuto do Desarmamento, entre outros, poderiam ser criminalizadas.
Recentemente, além de explorar de maneira sensacionalista o atentado em Paris, difundindo notícias de que “brasileiros haviam sido recrutados pelo Estado Islâmico” e “aguardariam ordens para entrar em atividade”, o senador Aloysio Nunes tem justificado a atual redação do PL n. 2.016/2015 por meio de dois casos representativos da realidade brasileira: o Riocentro e o atentado contra a sede da OAB Rio de Janeiro.8 O senador finalmente acertou no diagnóstico, mas continua a errar no alvo. Se há algum tipo de terrorismo na história brasileira, é o terrorismo de Estado. Ele não está apenas presente nos dois casos citados, mas é o padrão cotidiano de repressão estatal nas favelas e periferias. Acontece com bastante frequência, mais do que o atentado em Paris. A própria lei, que define o ato de extremismo político como aquele que atenta contra o estado democrático de direito, é o exemplo mais cabal de golpe das instituições democráticas. Ao que parece, precisamos, na verdade, em caráter de urgência, de uma lei antiterrorismo de Estado.
Marta Rodriguez de Assis Machado é professora da FGV Direito-SP e pesquisadora do Cebrap; e Guilherme Leite Gonçalves é professor de Sociologia do Direito da Uerj.
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