A nova velha política de drogas em debate
Apesar do esforço em compilar diretrizes a serem adotadas por uma política estadual de drogas, o PL n. 676/2019 acaba incorrendo em equívocos bastante graves
No dia 6 de novembro aconteceu a segunda audiência pública para discutir o Projeto de Lei n. 676/2019, que dispõe sobre a criação de uma Política Estadual de Drogas para o estado do Rio de Janeiro. Coordenada pela deputada estadual Mônica Francisco (PSOL), esse encontro, assim como o primeiro, contou com a participação de outros parlamentares, principalmente ligados às Comissões de Ciência e Tecnologia, de Combate às Discriminações, de Prevenção ao Uso de Drogas e de Educação, bem como de pesquisadores e especialistas sobre a temática.
O projeto, que é de autoria dos deputados estaduais Márcio Pacheco (PSC) e Alexandre Librelon (REP), busca se consolidar como uma regulamentação ampla e que incide sobre as diversas dimensões do que considera como uma “política de drogas”. Em seus artigos constam as propostas e estratégias de prevenção, tratamento, recuperação, reinserção social de usuários, de repressão de traficantes, de pesquisas sobre o tema, dentre outras coisas.
A primeira audiência pública aconteceu em 16 de outubro de 2020, atendendo a demanda por maiores debates sobre o conteúdo e a forma do referido texto. Por tratar de um assunto extremamente complexo e delicado, o PL, que já havia passado pela Comissão de Constituição e Justiça, foi retirado de pauta a pedido do próprio autor, para que fosse amplamente debatido.
Apesar do esforço em compilar diretrizes a serem adotadas por uma política estadual de drogas, o projeto de lei fluminense acaba incorrendo em equívocos bastante graves. Durante as audiências públicas, convidados de diversos setores da saúde, da assistência social, do direito, da sociedade civil etc., vinculados a várias instituições, se dispuseram a confrontar, de forma minuciosa, cada um dos pontos apresentados no texto.
No campo da saúde, os pontos que provocaram mais objeção foram a legitimação da abstinência como a principal forma de tratamento, o papel das comunidades terapêuticas (CTs) como instituições de tratamento de usuários de álcool e outras drogas, e a possibilidade de investimento de recursos públicos em pesquisas de instituições privadas – que não fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e que não integram o Sistema Único de Saúde (SUS).
A ênfase na abstinência cria uma barreira moral entre usuários e serviços, e desmobiliza políticas que privilegiam uma metodologia de redução de danos. Na verdade, a oposição entre esses recursos é um falso dilema, uma vez que cada usuário demanda uma estratégia diferente, individualizada e modulada na forma de um projeto terapêutico singular (PTS).
Também foi criticada a criação dos Centros de Referência sobre Drogas (CRDs), que competiriam em atribuições com os CAPSad, equipamento já existente e integrante da RAPS. Um dos principais receios é de que esses serviços funcionem como facilitadores, como principal “porta de entrada”, da internação em comunidades terapêuticas.
Ainda que alguns dos convidados presentes tenham defendido a legitimidade dessas instituições funcionarem como espaços de atendimento de usuários de álcool e outras drogas, a maioria dos pesquisadores e especialistas se posicionou de forma contrária ao repasse de recursos públicos para as comunidades terapêuticas, e de forma favorável ao fortalecimento do SUS.
As CTs estão longe de promover o efetivo acolhimento e tratamento dos usuários. Orientadas por uma metodologia pautada no trabalho árduo, na abstinência e na religião, a maioria delas sequer conta com uma equipe de saúde. Violam princípios básicos como a laicidade e a vedação do trabalho forçado. Casos de tortura e outras formas de violação de direitos humanos foram amplamente divulgados na mídia, na forma de reportagens, em relatórios oficiais, como os do Conselho Federal de Serviço Social (CFSS), do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT), e em pesquisas, como a que viabilizou a Nota Técnica n. 21/2017, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Conforme a Nota Técnica elaborada pela linha de pesquisa Trabalho, Serviço Social e Saúde Mental do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Serviço Social e Saúde (NUEPESS/UFF/CNPq), os argumentos de que a política de saúde mental e drogas tem deixado lacunas no atendimento à população deve considerar que, mesmo contrariando os princípios fundamentais da reforma psiquiátrica, as comunidades terapêuticas já fazem parte da RAPS há quase dez anos, não fazendo sentido apresentá-las, neste momento, como uma panaceia na resolução de problemas (cuja origem é orçamentária e vincula-se à vontade política).
No que diz respeito aos aspectos relacionados à área da assistência social, especialistas chamaram a atenção para a forma absolutamente equivocada que o tema é tratado, subestimando a centralidade do SUAS e reforçando um caráter meramente assistencialista, que tem sido combatido e rechaçado por profissionais do serviço social.
No que diz respeito às estratégias de segurança pública, o PL não só repetiu, como reforçou, em seu artigo 7º, o modelo repressivo já previsto na Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006). Esse paradigma, marcadamente seletivo e racista, e já bastante criticado, ganhou algumas atualizações no PL n. 676/2019, como o investimento em “recursos de última geração” para investigar e coibir o tráfico (inciso V), e o “caráter reservado das operações” policiais voltadas para a apreensão das substâncias (inciso VI).
A sugestão pela criação de celas específicas para traficantes nos presídios (inciso VII), reforça o caráter seletivo e racista da “guerra às drogas”, já em curso desde a década de 1980 e repactuado com a Lei n. 11.340/2006, que encarcera principalmente os pequenos traficantes. As unidades prisionais brasileiras, que refletem a segregação social e racial, não possuem qualquer capacidade estrutural de criação dessas “novas alas” separadas.
Outro problema desse PL é a sugestão pela criação de um “depósito judicial” para o armazenamento de substâncias apreendidas em operações ligadas a inquéritos policiais (inciso VIII). Em termos técnico-jurídicos, houve um uso equivocado da expressão – que está relacionada ao depósito do devedor antes da finalização do processo, para que não haja risco de inadimplência.
De qualquer forma, entende-se o que os autores fizeram referência à criação de um espaço físico de armazenamento das substâncias apreendidas. Em relação a isso, já há previsão legislativa que disponha sobre esses espaços. De acordo com a nova Lei n. 13.964/2019 (Lei do Pacote Anticrime), esse conteúdo deve ficar armazenado em central de custódia (art. 158-E, do Código de Processo Penal) até a incineração (art. 50 e 50-A, da Lei n. 11.343/2006). Na prática, isso varia de um estado para o outro, e esse conteúdo pode ficar armazenado nos próprios fóruns ou em depósito da polícia civil (art. 158-F, parágrafo único, do CPP).
Por fim, questiona-se ainda a legitimidade e a legalidade de um PL estadual dispor sobre ações de repressão ligadas à política de drogas. Ainda que a segurança pública seja responsabilidade dos estados, as regras da Lei de Drogas estão previstas em norma federal. Seria necessário um extenso debate sobre a manutenção desse ponto, sob pena do texto estadual incorrer em inconstitucionalidades.
As audiências públicas foram os únicos espaços de discussão ampla do PL n. 676/2019. De certa forma, isso revela que a participação direta e popular da sociedade civil ainda é pouco considerada, mesmo que o conteúdo dos textos normativos atinja diretamente os cidadãos.
Além disso, as audiências públicas foram marcadas por compreensões bastante distintas sobre a forma como a questão das drogas deve ser enfrentada na contemporaneidade. Ao final do primeiro encontro, descontentes com as críticas ao PL, entusiastas e defensores das CTs e de uma política de drogas repressiva, manicomial e segregacionista, solicitaram a presença mais expressiva de convidados alinhados a esse posicionamento.
Entretanto, a segunda audiência foi igualmente marcada por um corpo de especialistas que se posicionou criticamente, reforçando os interesses políticos que estão por trás do conteúdo e da forma do PL, que prestigia as comunidades terapêuticas em detrimento da RAPS, o investimento na iniciativa privada em detrimento dos serviços e das instituições públicas, a abstinência em detrimento da redução de danos, a repressão em detrimento do acolhimento e acompanhamento multidisciplinar.
Se por um lado, a disponibilidade para esses debates sobre o PL é considerada um movimento positivo, democrático, que acena para a pluralidade de ideias, por outro, o próprio projeto é insustentável. O problema do PL n. 676/2019 não está apenas na redação de um ou outro artigo, mas em toda a ideologia que está por trás dessa proposta de Política de Drogas para o estado do Rio de Janeiro.
Substancialmente, ele não passa de “mais do mesmo”, reforçando o modelo racista e genocida já vigente, que atinge privilegiadamente os pequenos traficantes, manicomial e segregador, afetando especialmente os grupos de usuários mais vulneráveis, como as pessoas em situação de rua. Com algumas novas roupagens, materializadas no uso de “novas tecnologias” como garantia de eficácia e sucesso, o velho modelo continua vigente.
É urgente que trilhemos outros caminhos, radicalmente desvinculados dessa política perversa, destrutiva, segregadora, e que não nos contentemos com pequenos ajustes em um projeto de lei problemático em sua totalidade, do começo ao fim de seus artigos. Precisamos garantir que o atendimento, acolhimento e tratamento dos usuários de álcool e outras drogas seja abordado como uma questão de saúde pública, dentro da estrutura do SUS e do SUAS, e com uma metodologia antimanicomial. A liberdade e a individualidade dos usuários devem ser respeitadas, e as estratégias de atenção precisam ser pensadas de forma interdisciplinar, privilegiando políticas e práticas de redução de danos.
Precisamos ser radicalmente contrários à internação compulsória, ao repasse de verbas públicas para as CTs, e à privatização do SUS. O fomento às pesquisas realizadas em universidades e institutos públicos deve ser priorizado, como forma de produzir, sobre a temática, mais conhecimentos que impactem positivamente a sociedade.
Precisamos seguir disputando essa narrativa, destruindo a concepção de “guerra às drogas”. Esse modelo já mostrou sua ineficácia em relação ao combate do tráfico, e já deu todos os sinais dos seus fundamentos marcadamente seletivos e racistas, ao incidir quase que exclusivamente sobre jovens, negros, pobres, moradores das periferias, das favelas e das comunidades.
Bruna Martins Costa é advogada, mestra (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ) e bacharela (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC) em Direito.
Luciana Boiteux é professora associada (Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – FND/UFRJ), doutora em Direito Penal e Criminologia (Universidade de São Paulo – USP) e mestra (Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ).