A opção pela paz
Proibida até a véspera de participar das eleições espanholas de 22 de maio, a esquerda nacionalista terminou por emplacar 25,5% dos votos nas 3 províncias bascas do país. Uma vitória que contou c/ a participação dos mediadores do Grupo Internacional de Contato, interlocutores imparciais do conflito, que objetivam a pazBrian Currin
A posição oficial do governo espanhol sobre o conflito basco é clara: não se trata de uma questão política. Madri apresenta o ETA (Euskadi Ta Askatasuna − “Pátria Basca e Liberdade”) como um bando de criminosos e terroristas e associa à organização grupos de esquerda abertzale1 que, embora não condenem explicitamente as ações do ETA, jamais cometeram qualquer ato de violência ou fizeram apologia à resistência armada. Assim, ao longo da última década, essa instância política foi praticamente proibida na Espanha, aproximação desconcertante e, sem dúvida, infrutífera.
Desconcertante porque, apesar das posições públicas de Madri, governos de outras províncias espanholas – tanto de esquerda (liderados pelo Partido Socialista Obreiro Espanhol, PSOE) como de direita (com o Partido Popular, PP) – buscam, desde 1998, negociar algum acordo com o ETA. E infrutífera porque a recusa em admitir publicamente que se trata de uma controvérsia de ordem política faz com que a população espanhola desacredite as tentativas governamentais de resolver o conflito. Resumir o movimento separatista basco ao ETA implica considerar uma única solução: terminar com as violências etarras e fazer que os ativistas “se rendam”.
No entanto, segundo os abertzale, o problema é muito mais complexo: a constituição pós-franquista de 1978 viola os direitos culturais, sociais, cívicos e políticos do povo basco e notadamente seu direito à autodenominação.2 A esse argumento, Madri responde que a Espanha é uma democracia constitucional e que o estatuto de comunidade autônoma do País Basco está circunscrito nessa Carta. O governo nacional não teria, portanto, qualquer razão para modificar a situação, e mais: não disporia de mandato para isso. É a oposição dessas duas perspectivas que está na base do conflito político basco, e não a violência do ETA.
Os atentados da organização clandestina já mataram mais de oitocentas pessoas e feriram outras tantas. Entre as vítimas, estão políticos, membros das forças armadas, juízes, jornalistas, universitários e civis. Por outro lado, dezenas de membros do ETA e da esquerda abertzale foram assassinados por grupos paramilitares e pela polícia. Os maus-tratos sofridos pelos ativistas na prisão muitas vezes contribuíram para radicalizar os jovens bascos nacionalistas. Nesse círculo vicioso, a violência do ETA também contribui para desnaturalizar os aspectos políticos do conflito, o que permite ao governo espanhol tachá-los de “terroristas”, reivindicação negociável que ele prefere ignorar.
É necessário, evidentemente, fazer uma distinção entre questão política e violência. O ETA se recusa a pôr fim à luta armada, e as forças armadas têm o direito de, dentro da lei, tomar as medidas necessárias para contê-la. Contudo, somente o engajamento de diferentes partidos políticos das comunidades bascas em negociações para uma solução democrática conseguirá fazer o ETA renunciar ao ativismo armado. Para grande parte das pessoas, principalmente aqueles que sofreram violências (seja do ETA ou do Estado), a paz pode parecer um objetivo impossível, leia-se fantasia. Ora, talvez seja necessária certa inocência e confiança para se opor à lassitude, à agressividade e ao cinismo das posições beligerantes e das vítimas para sair do impasse.
Os membros do Grupo Internacional de Contato (GIC) pelo País Basco representam novos interlocutores no conflito: imparciais, sem outros objetivos a não ser a paz e a normalização da situação política conflituosa. Nessas condições, é surpreendente que a participação do GIC no processo provoque tanta hostilidade entre constitucionalistas espanhóis. A única explicação possível parece ser o temor da instauração de uma democracia global no País Basco, da qual participariam o conjunto dos nacionalistas favoráveis à autodeterminação. Um dos desafios do Grupo é dissipar esse medo.
Naturalmente, a confiança não vem de antemão – é preciso ser construída. Mas o engajamento internacional é de bom agouro. O cessar-fogo atualmente respeitado pelo ETA é uma resposta direta à Declaração de Bruxelas, assinada em março de 2010 por uma série de personalidades, entre as quais cinco ganhadores do Nobel da Paz (Desmond Tutu, Frederik Willem de Klerk, John Hume, Betty Williams e Mairead Corrigan Maguire);3 a antiga alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Mary Robinson; e a fundação Nelson Mandela. A experiência mostra que a mediação de terceiros, sobretudo se respeitados, pode ajudar a conter comportamentos desviados das duas partes.
Quando o GIC se reuniu oficialmente no País Basco em janeiro deste ano, o ambiente sociopolítico era profundamente diferente daquele que prevaleceu ao longo da década anterior. As mudanças observadas decorrem, em primeiro lugar, da decisão dos dirigentes políticos da esquerda abertzale de participar ativamente da vida política institucional nas comunidades autônomas bascas e de Navarra.
Para a direita espanhola, trata-se de uma iniciativa do ETA para promover o reagrupamento da organização e consolidar-se diante de uma derrota política e militar iminente. Outro ponto de vista, menos cínico, considera que a esquerda abertzaletomou consciência da necessidade da participação legal e transparente no processo de paz por meio da inserção nas estruturas democráticas, sem a qual o projeto político da autodeterminação não teria nenhuma chance de se concretizar.
A direção de Batasuna entendeu perfeitamente que o mais estratégico e racional nesse momento é escolher a via legal e democrática. O movimento por um novo partido político, observador da legislação, cresceu progressivamente, o que exigiu uma estratégia prudente para construir argumentos sólidos – especialmente por meio de consultas prolongadas aos partidários da causa – e ganhar o apoio de partidos políticos do País Basco e da comunidade internacional.
Em janeiro de 2011, a esquerda nacionalista deu um passo a mais ao criar uma nova organização: Sortu (“nascer”, em basco), comprometida a usar apenas meios pacíficos para alcançar seus fins políticos. Dissociou-se de qualquer outra organização que usa ou usou o recurso da violência e garantiu posicionar-se contra as violências cometidas no futuro, em particular as do ETA (em conformidade com a exigência da lei espanhola para a criação de partidos).
Paralelamente, a Sortu se associou à Declaração de Bruxelas no pedido unilateral ao ETA para um cessar-fogo permanente e verificável, ao qual a organização clandestina respondeu positivamente em 10 de janeiro de 2011.
O governo espanhol se manteve reticente em relação a essas evoluções e apresentou um recurso judiciário contra o estatuto de legalidade da Sortu, examinado pela Corte Suprema. Em março, quinze de seus juízes decidiram por maioria (nove votos contra sete) que a Sortu deveria ser proibida. Um apelo à decisão foi feito imediatamente ao conselho constitucional. Enquanto isso, os partidos nacionalistas existentes (Eusko Alkartasuna, Alternatiba, Herritarron Garaia e Araba Bai) se aliaram para constituir um novo, o Bildu (“unir-se”, em basco), e convidaram pessoas independentes, porém próximas à esquerda abertzale, a figurar entre seus afiliados.
Madri conseguiu outra vez, com o aval da Corte Suprema, proscrever a nova agrupação. As razões invocadas foram praticamente as mesmas usadas contra a Sortu: o partido continha, entre seus membros, indivíduos relacionados a Batasuna e portanto poderia ser enquadrado como emanação do ETA. No dia 5 de maio, reunido em caráter de urgência, o conselho constitucional considerou que a acusação contra essas organizações de formarem um complô por parte do ETA não tinha provas. A interdição do Bildu foi revogada.
Cessar fogo seguido de desarmamento
Construir uma organização como a Sortu e fazer que as exigências da legislação, e todas suas implicações, fossem respeitadas não teria sido possível sem apoio estratégico e estímulo. Parte desse apoio veio do engajamento internacional a favor de uma solução pacífica para o conflito no País Basco, após o cessar-fogo do ETA. De fato, existe a possibilidade de o governo espanhol proclamar a vitória da luta contra o “terrorismo” se a organização clandestina renunciar definitivamente à violência e depor suas armas.
A constituição do GIC tem como objetivo, em parte, impedir esse tipo de atitude do governo espanhol. A missão da organização internacional, negociada em 2010 com os principais partidos, é “acelerar, facilitar e favorecer a normalização política no País Basco”.
Conforme acordado na reunião de Bruxelas, a partir do momento em que o ETA anunciasse um cessar-fogo unilateral, permanente e verificável, o GIC poderia dar início a seus trabalhos. Na ocasião da reunião, foi estabelecido e publicado um objetivo mais específico, que inclui ações para “permitir a legalização da Sortu; superar as medidas especiais de restrição da ação política; adaptar a política penitenciária a esse novo contexto político; estimular e assistir os partidos, se assim o quiserem, na preparação e elaboração de um programa que favoreça o diálogo político por meio de discussões e negociações globais multipartidárias não submetidas a condições ou a objetivos pré-determinados, além de estarem conforme os ‘princípios de Mitchell’;4 em caso de impasse, desempenhar o papel de mediador se as partes assim o desejarem; e, de maneira geral, ajudar a convencer a população sobre a possibilidade real de uma solução pacífica para o conflito”.
Essa missão é apoiada pela maioria dos partidos políticos do País Basco, inclusive por membros do Partido Socialista, pelos três principais sindicatos − ELA (Euskal Langileen Alkartasuna), CCOO (Comisiones Obreras) e LAB (Langile Abertzaleen Batzordeak) − e por associações de empreendedores. O GIC considera que a condição essencial da normalização reside na integração política e no compromisso de todos os partidos de recorrer exclusivamente, e de forma irreversível, aos meios pacíficos e democráticos. O Grupo tem boas razões para considerar que esse objetivo não está longe de tornar-se realidade, nem o do ETA de abandonar definitivamente a violência armada.
A organização clandestina não tem outra alternativa senão seguir e apoiar a Sortu, e deve levar em conta que muitos de seus próprios simpatizantes se expressaram a favor desse novo projeto político. A Sortu se impôs e formalizou alianças com outros partidos nacionalistas até então refratários ao Batasuna. O cessar-fogo anunciado é unilateral e responde ao apelo de homens e mulheres de envergadura internacional, militantes da paz; não é condicional ou negociado com o governo espanhol. O ETA aceitou a mediação da comunidade internacional e sabe que, se romper com o acordo, será condenado pela Sortu. Sabe também que um cessar-fogo verificável significa, em última instância, o anúncio formal de desarmamento.
Há uma prova sólida da mudança protagonizada pelo ETA: a suspensão do pagamento do “imposto revolucionário” (extorsão de dinheiro de empresários), prática levada a cabo durante anos e fonte essencial da luta armada. O GIC realizou um trabalho de investigação e confirmou publicamente essa dimensão do cessar-fogo.
Observar se o ETA respeitará os outros elementos do cessar-fogo é a primeira das prioridades do Grupo. Trata-se de um ponto sensível e complexo que, para ser eficaz e confiável, exige a cooperação do Estado. O GIC está realizando contatos com as partes interessadas e consultando especialistas com a esperança de ver o objetivo dessa missão concretizado. A imensa maioria dos atores políticos e sociais do País Basco compreendeu que as chances de alavancar um processo de paz são reais. Da forma como começou, e pelos novos elementos em cena, há motivos para ter esperança.
Assim como os partidos do País Basco estão demonstrando autoridade e coragem, o governo espanhol precisa aceitar e reconhecer a existência de um conflito político para além da violência etarra. A situação precisa ser resolvida por negociações globais em escala regional e, em última instância, em escala nacional.
Brian Currin é advogado, especialista em direitos humanos e na trasnformação de conflitos em processos de paz, além de coordenador do Grupo Internacional de Contato pelo País Basco.