A pandemia do confinamento: políticas de morte nas prisões
O projeto Infovírus tem como objetivo verificar e contrastar as declarações e informações existentes sobre a pandemia de Covid-19 no sistema prisional. Trata-se de uma iniciativa conjunta e voluntária de grupos de pesquisas de diversas universidades brasileiras
Desde o anúncio da pandemia do novo coronavírus, várias camadas de crises são construídas pelo Poder Público, muitas delas com efeitos letais. Na política criminal, tais crises traduzem-se no aprofundamento da exposição à morte da população prisional, já vulnerabilizada pela precariedade de suas vidas geridas pelo hiperencarceramento.
O Brasil possui uma população prisional de 757.170 e 170% de déficit de vagas, de acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Nas unidades prisionais, 4 de cada 10 não possuem consultório médico. Com mais de 10 mil casos de tuberculose, a doença atinge 35 vezes mais as pessoas presas do que a população em liberdade.
Este é o contexto, já muito grave, de chegada do novo coronavírus nas prisões brasileiras. Apesar da gritante subnotificação, em 31 de maio, os dados do Depen apontam 1.362 detecções, 888 suspeitas e 44 óbitos no sistema penitenciário nacional. Mesmo segundo as subnotificadas informações oficiais, as mortes pela Covid-19 aumentam em ritmo veloz: em 17 de abril foi registrada a primeira morte e, em 17 de maio, já constavam 29 mortes.
Tal quadro tem preocupado organizações da sociedade civil, familiares e amigos de pessoas privadas de liberdade e grupos de pesquisa que, de diferentes formas, buscam colaborar com o debate público, visando a aprimorar formas de denúncia e de controle social sobre as ações que vêm sendo desenvolvidas pelo Poder Judiciário e pelas administrações prisionais.
Infovírus
Nesse cenário, resolvemos dar vida ao projeto Infovírus, que tem como objetivo verificar e contrastar as declarações e informações existentes sobre a pandemia de Covid-19 no sistema prisional. Trata-se de uma iniciativa conjunta e voluntária, animada por grupos de pesquisas de diversas universidades brasileiras (Centro de Estudos de Desigualdade e Discriminação (CEDD/UnB), Grupo Asa Branca de Criminologia (UFPE/UNICAP), Grupo de Pesquisa em Criminologia (UEFS/UNEB) e Grupo Poder Controle e Dano Social (UFSC/UFSM), agregando também pesquisadores autônomos, para monitorar dados públicos sobre a crise no sistema prisional.
Em mais de dois meses de atividade, constatamos que a gestão dos números pelo Ministério da Justiça não tem como finalidade informar ou prestar contas sobre os impactos da pandemia no sistema prisional. Trata-se de uma política de reforço de estratégias de confinamento e de exposição à morte das populações prisionais, por meio da produção de dois discursos públicos. No primeiro, produz-se a imagem de um Estado eficiente diante da pandemia, capaz de gerir a política prisional como uma política pública de saúde. No segundo, invocam-se as representações sociais do medo e da periculosidade, fundadas no racismo, para produzir a imagem do Estado intransigente, purificador e armado.
O discurso do Estado eficiente, que aciona o sistema prisional como política pública de saúde, tem sido formulado com base nas informações produzidas pelo painel de acompanhamento de números de contágio no sistema penitenciário nacional, lançado no início da pandemia pelo Depen e alimentado pelas secretarias estaduais. O Infovírus tem constatado que, em primeiro lugar, sua produção é extremamente a-sistemática e apresenta graves problemas metodológicos. Não há informação sobre os modos de coleta dos dados nos estados e a produção das categorias de enquadramento “suspeitos” e “infectados”, tampouco explicam as variações cotidianas dos números no painel.
Mais recentemente, em 22 de maio, o painel do Depen passou a incluir o número de “recuperados”. Com menos de 0,7% da população prisional testada, dados irregulares e subnotificados, a construção dessa nova categoria no painel alinha a gestão da informação do sistema prisional à política negacionista do governo federal. Essas condições impedem tanto a construção de uma série histórica quanto a compreensão do risco de contágio dentro das prisões brasileiras.
Mesmo com todas as deficiências do painel, o Depen baseou-se nele para afirmar, em informativo de 5 de abril, que a contaminação do sistema prisional brasileiro era inferior à média dos outros países e que a letalidade era 14,2 vezes menor na população prisional do que na população em geral. Essa invenção oficial foi repetida à exaustão pelo então Ministro da Justiça, Sergio Moro.
Desinformação
No mesmo sentido, várias secretarias estaduais de administração prisional passaram a publicar informações e produzir discursos públicos que garantiam que as pessoas presas tinham acesso à saúde e a medidas de prevenção, por vezes até melhores do que a população geral.
Essas afirmações contrastam com dados produzidos pelo próprio Depen, ao longo dos anos anteriores, dando conta de que cerca de 250 mil presos já eram pacientes de doenças como tuberculose, HIV e sífilis em dezembro de 2019. Além disso, em 28 de abril de 2020 havia 208 mulheres gestantes e 44 em pós-parto encarceradas no Brasil, contrariando a recente recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça e também decisão do ministro Ricardo Lewandowski que, nos autos do HC 143.641/2018, determinou a conversão das prisões provisórias em domiciliares para mulheres gestantes ou com filhos de até doze anos.
A gestão de uma política de negação e de desinformação, pautadas pela inconsistência e contradição de dados, visa a sustentar a imagem de Estado eficiente na prevenção à pandemia nos sistemas prisionais. Essa força imagética inova no discurso público ao localizar a administração prisional e as próprias unidades prisionais como espaços de proteção e de saúde das populações. O confinamento ganha status de política pública em defesa das populações prisionais, em contraste com um cenário histórico de graves violações de direitos, aprofundados com a crise e deliberadamente negados pelas gestões atuais frente à pandemia.
O outro recurso imagético formulado pelo discurso público do governo federal é a de um Estado intransigente, purificador e armado. Nele, o alvo não é mais a eficiência da administração prisional, mas as representações sociais de medo e periculosidade que se ancoram na imagem do criminoso e no racismo.
Estado intransigente
Diante da contestação dos dados produzidos pelas administrações prisionais estaduais e federais, por parte de organizações da sociedade civil, defensorias públicas e de projetos como o Infovírus, aciona-se uma nova face do discurso público: a imagem do Estado eficiente é substituída pela do Estado intransigente, formando um duplo que, embora aparentemente contraditório, amplia no discurso público as frentes de defesa do confinamento da população prisional diante da pandemia.
O passo inicial da manifestação da imagem do Estado intransigente, purificador e armado foi uma notícia falsa verbalizada pelo ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, em coletiva de 31 de março, dizendo que um homem libertado em razão da pandemia, no Rio Grande do Sul, teria sido preso em flagrante com drogas e armas. Em 01 de abril, a agência Lupa verificou que a soltura tinha decorrido do fim do cumprimento da pena.
Para garantir que a narrativa se mantivesse, porém, desta vez sem o risco de ser desmentida futuramente, a postura passiva do Depen em receber dados das secretarias estaduais sobre infectados e suspeitos deu lugar, neste plano, a um agente formulador de políticas e de informação. Em 05 de abril, o órgão solicitou das secretarias estaduais o envio de informações sobre pessoas que receberam progressão de regime ou prisão domiciliar em razão da pandemia. A produção e gestão dessas informações pelo governo federal, replicadas pelas administrações estaduais, não se destinam a produzir dados de referência para a formulação de políticas públicas. Ao contrário: buscam dar visibilidade a casos de soltura ou aplicação de medidas alternativas ao cárcere, nos quais os ex-detentos tenham cometido algum crime, ou descumprido as condições impostas. Esses casos, quando eventualmente noticiados, são trazidos à tona como força imagética que circula em notícias de jornais e intensifica os medos racistas das populações urbanas em relação ao crime.
O medo, assim mobilizado, legítima a imagem do Estado intransigente, purificador e armado, disposto a suspender direitos das populações prisionais para garantir a “defesa da sociedade”. Em tempos de pandemia, isso significa a disposição das administrações prisionais e do próprio poder judiciário para deixar morrer a população prisional, negando-lhe o acesso à saúde e o direito à vida, em nome de uma sociedade que tem a imagem dos que estão no poder.
No limiar entre as duas imagens, do Estado eficiente e do Estado intransigente, o Depen lançou mão, ativamente, de três tecnologias de poder: a proposta de construção de contêineres para abrigar detentos recém-chegados às unidades e detentos com suspeita de contaminação, a ampliação da política de monitoração eletrônica e a compra de armas não letais para serem usadas dentro das unidades prisionais.
Em 19 de abril, o Depen encaminhou uma solicitação de flexibilização das Diretrizes Básicas da Arquitetura Penal (Resolução n 09/2011 do CNPCP/Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária). A proposta buscava relaxar os parâmetros de regulamentação de arquitetura penitenciária, a fim de investir em novas vagas, obtidas em estruturas de contêineres, para abrigar hospitais de campanha, lugar de quarentena de novos presos e de presos sintomáticos. Na proposta, o Depen flerta com a imagem de Estado eficiente ao formular um discurso público de que é possível construir condições de acesso à saúde dentro das unidades. Mas também se organiza em torno da imagem do Estado intransigente, ao recorrer ao uso de estruturas comprovadamente violadoras dos direitos dos presos, caracterizadas pelo calor excessivo, pela impossibilidade do distanciamento social, do acesso permanente à água e de ventilação. Não por acaso, no documento formulado pelo Depen, as maquetes dos contêineres projetavam imagens de pessoas negras dentro de suas estruturas. Tais violações, quando vêm à tona na mobilização discursiva das organizações da sociedade civil, passam a servir à imagem do Estado intransigente, purificador e armado, aquele que se mostra pronto a lançar mão de qualquer ação necessária para garantir uma sociedade livre de criminosos.
Monitoramento
Em 15 de maio, o CNPCP proibiu a possibilidade de uso de contêineres para a produção de vagas prisionais. Se isso representa uma vitória da mobilização social, abre também uma zona cinza que permite a construção de estruturas temporárias, pouco definidas e com ampla margem de arbitrariedade para novas políticas violadoras. Com isso, o Depen garante que suas articulações sigam no sentido da ampliação do confinamento, na contramão da Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça, que aponta como principal estratégia de prevenção ao alastramento do novo coronavírus nas prisões a revisão de prisões provisórias, a antecipação das progressões de regime de cumprimento de pena e a prisão domiciliar para pessoas de grupos de risco.
A segunda tecnologia de poder é marcada pela publicação da Portaria n. 224/2020 pelo Depen, em 03 de maio, abrindo prazo para que os estados da federação formulassem, até 15 de maio, pedidos de orçamento para se investir na qualificação e ampliação da rede de monitoração eletrônica de pessoas processadas e sentenciadas pelo sistema de justiça criminal. Na contramão das diretrizes para monitoração eletrônica publicadas pelo próprio Depen, em 2015, o governo federal apostou na ampliação do controle estatal no sistema de justiça criminal. Ao invés de se orientar pela excepcionalidade e pela individualização do uso de monitoração, o Depen acena para a vinculação da soltura dos presos ao uso do dispositivo de monitoração. Dessa forma, propaga efeitos negativos, já apontados pelo documento de 2015, tais como o compartilhamento indevido de informações com a polícia e o exercício da hipervigilância, além da necessidade semanal de recarregar o dispositivo, o que obriga à mobilidade, em oposição à regra atual de confinamento social.
Nessa mesma normativa, o Depen exige como contrapartida da destinação de verbas aos estados, a contrapelo das políticas de proteção de dados, o franqueamento de acesso irrestrito aos sistemas informatizados de monitoração. Com esse acesso, o Depen poderá intensificar e informatizar a gestão do medo e da deslegitimação do desencarceramento na pandemia, por meio da divulgação de dados sobre eventuais ilegalidades cometidas por pessoas monitoradas. Produz, assim, deliberadamente, a imagem do Estado intransigente, capaz de suspender direitos da população prisional em nome da defesa da sociedade.
Na materialização final do Estado intransigente, purificador e armado, o Depen/MJ anuncia a destinação de crédito extraordinário para compra de armamentos não letais a serem usados nas unidades prisionais. Em documentos de comunicação interna, reconhece o aumento da tensão em função da precarização das vidas privadas de liberdade, em razão da suspensão de visitas e da manutenção de pessoas presas de grupos de risco.
A produção de informação e de políticas do Governo Federal no contexto da pandemia no sistema prisional promovem, assim, um vislumbre imagético que funciona, paradoxalmente, como um espelho. De um lado, o Estado eficiente em ofertar tratamento de saúde e garantir a vida da população prisional, acionando a prisão como uma política pública, fundado em dados adulterados e subnotificados. De outro, sempre que a farsa do Estado eficiente seja revelada, são acionadas as imagens do Estado intransigente com a defesa da sociedade, identificada com as características daqueles que detêm o poder; do Estado purificador, capaz de intensificar a exposição à morte de criminosos; do Estado armado, disposto a levar a política do confinamento às últimas consequências.
Seja numa ou noutra imagem do Estado, sustentadas na gestão do medo, da negação e da adulteração de informações, a política do confinamento prisional naturaliza, com novas e velhas estratégias, a produção da morte de pessoas negras e periféricas. E responde à pandemia da Covid-19 com a pandemia do confinamento prisional.
Camila Prando é professora da faculdade de direito da UnB e coordenadora do centro de estudos em Desigualdade e Discriminação. Felipe Freitas é doutor em direito pela UNB e membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da UEFS. Marília de Nardin Budó é professora no departamento de direito da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenadora do grupo de pesquisa pode controle e dano social. Riccardo Cappi é professor da Universidade Estadual de Feira de Santana e da Universidade do Estado da Bahia e coordenador do Grupo de Pesquisa em Criminologia (UEFS/UNEB).