A pandemia e a possibilidade de resgate do senso de coletividade

Efeitos do neoliberalismo

A pandemia e o senso de coletividade

por Flávia Andrade Almeida
28 de março de 2020
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A racionalidade neoliberal nos constrói, nos atravessa subjetivamente para que façamos de nós microempresas, empresários e negociantes de nós mesmos. Nosso modo de nos relacionar é individualista porque é competitivo. E a competitividade é um valor generalizado e naturalizado a tal ponto que não percebemos isso.

Atualmente fala-se com muita frequência sobre modos egoístas de relações humanas. E na superficialidade dos discursos sobre nossa postura e nossas ações individualistas, não é comum serem considerados os atravessamentos políticos desse fato social.

A racionalidade neoliberal nos constrói, nos atravessa subjetivamente para que façamos de nós microempresas, empresários e negociantes de nós mesmos. Nosso modo de nos relacionar é individualista porque é competitivo. E a competitividade é um valor generalizado e naturalizado a tal ponto que não percebemos isso.

Esses modos de relações constroem desde nossas constituições físicas, psíquicas e os modos como nos relacionamos em sociedade. Podemos inferir, de pronto, o quanto isto implica na rarefação do senso do que é coletivo, do bem comum e das ideias semelhantes ao sentimento de solidariedade ao próximo. Produz rarefação ainda da sensação de bem-estar, de amparo. O sujeito moderno é sobretudo, um sujeito solitário, abandonado, está em desamparo.

Senso político

A disponibilidade integral altera totalmente nossa relação com o tempo; atendemos às demandas do mundo 24 horas por dia sem nos atentarmos ao nosso desejo criativo. Ao mesmo tempo, preocupados em atender eficazmente, não enxergamos o outro com senso de alteridade; enxergamos o outro com senso de rivalidade. Estamos integralmente envolvidos na tarefa de sermos os melhores, os mais bem posicionados, os mais bonitos, mais saudáveis etc. E não nos perguntamos pelo sentido estético desses valores: eficácia, equilíbrio, saúde, beleza etc. Menos ainda pelo sentido político de nossa forma de constituição psíquica e social.

Racionalidade neoliberal não é necessariamente sinônimo de políticas neoliberais. Michel Foucault nos mostrou esse fato de modo assustadoramente brilhante em seus escritos do fim da década de 1970. A racionalidade neoliberal produz sensação e gere liberdades ou pseudo liberdades.

Não há constituição psíquica sem o outro, desde nosso nascimento, somos apresentados ao mundo por um outro, primariamente aquele que nos recebe em nosso nascimento. No entanto, sob a racionalidade neoliberal nos iludimos com a ideia da autonomia e da autossuficiência.

Os tempos de pandemia mundial nos feriram enquanto humanos em muitos pontos. A ferida narcísica que essa pandemia abriu ataca a sobrevivência e nosso senso de onipotência. Tecnologias e dinheiro não são suficientes no enfrentamento a um ente invisível e resistente ao tempo, aos produtos químicos.

Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Controle

Construímos, enquanto humanos, pontes para nossas indigências perante a natureza. Para nos iludir e nos adaptar a sua soberania. E durante anos esquecemos de nossa falta de controle. O coronavírus veio nos refrescar a memória a respeito do controle que achamos ter, o qual não é absoluto. O senso de coletividade, já esvaziado de sentido, praticamente inexistente, numa fase de pandemia faz emergir nossa aparente animalidade: esvaziamos prateleiras de álcool e de máscaras cirúrgicas. Deixamos o Outro frágil, vulnerável. O que se esquece nesse aspecto é que nossas vidas dependem das ações coletivas, nossa sobrevivência depende da ciência do outro a respeito de nossa co-dependência. Quando limpo a prateleira, facilito a contaminação de milhares, facilito a minha própria. Meu estoque de álcool não vai me salvar da minha atitude egoísta.

Em época de pandemia o esvaziamento da coletividade nos faz assistir às tristes cenas dos pacientes crônicos (oncológicos, soropositivos, dialíticos etc) desesperados, sem meios de proteção, com medo das ruas desprotegidas, receosos de sair para seus medicamentos de sobrevivência, sem as máscaras (que estão no armário de alguém saudável). Assistimos os xingamentos públicos aos profissionais de saúde, quando estes estão a caminho de seu trabalho, arriscando o próprio pescoço. Assistimos a diversas manifestações de aparência de animalidade, com o fundo constitutivo da racionalidade neoliberal: pensar apenas em si. A ideia nem sempre declarada, é a de “preciso sobreviver, independente do contexto social em que vivo”. Autorreferência, atitude umbilical.

Ao mesmo tempo que traz a possibilidade de total descontrole e caos, o coronavírus nos confronta com nossa incapacidade de estarmos sós, o tempo todo. As relações virtuais, tão costumeiramente preferidas em detrimento das reais e corporais, agora, transformadas em obrigatórias, nos fazem ver nossa necessidade de contato, de corpo. Estamos nos ressentindo do abraço e do toque de mãos. O contraste traz a falta.

O coronavírus nos traz uma oportunidade única, talvez a última que teremos nesse sentido: repensar nossa relação com o tempo, reconstruir nosso espaço de existência conjunta. Já que existir, não pode se dar de outro modo. O coronavírus pode nos ajudar a reerguer nossos muros de proteção, e eles necessitam da reconstrução da coletividade. E essa reconstrução não é apenas uma questão de bem-estar social, mas de sobrevivência.

Flávia Andrade Almeida é psicóloga clínica e hospitalar, especialista em Psicologia da Saúde, Psico-oncologia e Prevenção do Suicídio. Mestre em Filosofia e pesquisadora dos temas da subjetividade e do suicídio nas perspectivas da psicanálise e de Michel Foucault. Administradora da página Psicologia e Prevenção do Suicídio.



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