A PEC da transição e a moralidade das elites no Brasil
Um indicador do que teremos que enfrentar podemos ver na discussão da chamada “PEC da transição”. O desmonte da máquina pública e das práticas republicanas foi tamanho que não podemos sequer combater em terreno favorável: o poder de Artur Lira e daqueles que apoiaram o Governo Bolsonaro no Congresso é tão grande que teremos que lutar de forma a conter e limitar os conservadores e a extrema direita progressivamente, mas com firmeza
Passados quatro anos de descalabro do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, o país tentará retomar o rumo progressista adotado a partir de 1995 e intensificado entre 2003 e 2016. Essa foi a escolha da maioria da população, apesar da evidente utilização, em proporções provavelmente nunca vistas, da máquina pública a favor do governo na campanha de 2022.
Não será fácil, tamanho foi o crescimento da extrema direita desde 2013 e o desfazer das instituições democráticas e republicanas que se iniciou após o golpe de 2016 e assumiu dimensões absurdas durante o mandato do Capitão do Baixo Clero. Trata-se de tarefa hercúlea e fundamental caso queiramos transformar o Brasil num país de fato para a maioria de sua população, e não apenas para o 1% do topo da pirâmide. É sempre bom lembrar, para início de conversa, a verdadeira jabuticaba brasileira: estamos entre os dez países do mundo que mais produzem riquezas, mas, ao mesmo tempo, entre os dez países mais desiguais do mundo.
Para levar a sério a tarefa de construção desse país para a maioria de seu povo devemos aprender com o passado e ter todos os cuidados possíveis. É preciso ter claro que o Golpe de 2016 contra Dilma Roussef foi dado por conta dos acertos daquele governo, que aprofundava o combate ao capital financeiro e intensificava o desenvolvimento nacional como estratégia. A reação ao governo Dilma foi tanto externa – principalmente do império americano, receoso de concorrência no ‘seu’ continente – quanto interna, por parte de nossas elites receosas de terem o seu apartheid ameaçado (os aeroportos começaram a ficar muito cheios; as empregadas domésticas começaram e exigir direitos trabalhistas; os negros e os pobres entrando nas universidades públicas…).
O governo Lula terá que lutar muito para conseguir impor sua pauta e realizar seu programa. A situação no Congresso é pior do que aquela que os governos Lula 1 (2003-2006) e 2 (2007-2010) e Dilma 1 (2011-2014) encontraram (mas não do que no governo Dilma 2, que com estratégia equivocada abriu o caminho para Eduardo Cunha), com extrema volatilidade.
É claro que temos que nos livrar do teto de gastos, medida implementada em atendimento aos ditames dos interesses do capitalismo predatório internacional e que só limita as políticas sociais e de transferência de renda, enquanto permite que as isenções e alívios tributários recompensem os ricos. Isso só poderá ser feito, no entanto, a medida em que formos acumulando forças e revertendo as políticas nefastas que se iniciaram após o golpe. Isso vale para a política trabalhista e a previdência social também: é preciso desfazer o rol de maldades que se abateu sobre os mais pobres e necessitados.
Um indicador do que teremos que enfrentar podemos ver na discussão da chamada “PEC da transição”. O desmonte da máquina pública e das práticas republicanas foi tamanho que não podemos sequer combater em terreno favorável: o poder de Artur Lira e daqueles que apoiaram o Governo Bolsonaro no Congresso é tão grande que teremos que lutar de forma a conter e limitar os conservadores e a extrema direita progressivamente, mas com firmeza. No Congresso, especialmente, não há que ter ilusões. A taxa de renovação relativamente alta não é garantia de nada, como pudemos ver em 2018, uma vez que aos mecanismos viciados de um processo eleitoral que mantém as práticas plutocráticas do passado se somaram agora os desmandos do universo internet, não regulado de fato.
“Muito dinheiro”, “licença para gastar”: essas foram as críticas vocalizadas pelos grandes meios de comunicação, dos conservadores e da extrema direita. Afora o cinismo desses últimos, que se utilizaram do “Auxílio Brasil” – uma versão piorada e incompetente do “Bolsa Família”[1], propositalmente aberta a fraudes – apenas para tentar ganhar o processo eleitoral, teremos que enfrentar o consenso conservador, tão característico de nossa história. É importante combater esses argumentos, os primeiros a fazer frente ao governo Lula que sequer se instalou ainda. Vejamos.
De quanto “muito dinheiro” estamos falando para a tal “PEC da Transição”? Incluindo a elevação da Bolsa para seiscentos reais e o acréscimo de cento e cinquenta reais para crianças, os números oscilam em torno de 175 bilhões de reais. Com que esse número deve ser comparado? Com o Produto Interno Bruto (PIB), evidentemente. Afinal, a partir do total de riqueza que o país produz discute-se e se elaboram as principais políticas públicas que devem ser efetivadas. O PIB do Brasil em 2021 (ainda sofrendo intensamente as consequências da pandemia de Covid-19, lembremos) foi de 8,9 trilhões. Um rápido exercício elementar nos mostra que um por cento do PIB é um valor em torno de 90 bilhões. Estamos falando, portanto, de um número que não é maior do que três por cento do PIB. É esse valor que a grande mídia, os conservadores e a extrema direita querem nos convencer que é muito. Note-se que estamos falando de um programa social que tem irá atingir quase quinze milhões de famílias, mais de um terço da população total do país.
A moral das elites e classes dominantes é, como sempre, relativa. De um lado o ‘rigor fiscal’, a parcimônia nos gastos. Do outro lado da moeda, os ricos e os grandes empresários pagam cada vez menos impostos. Somente a isenção fiscal concedida aos empresários (através da diminuição do IPI e outros expedientes) significou uma perda de 71 bilhões de reais em 2021 e 2022. Outro tanto foi concedido às empresas exportadoras brasileiras, especificamente, através da suspensão do Imposto de Importação e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) que vale desde 2020. Os exemplos poderiam ser multiplicados, mas não é nosso objetivo fazer uma análise sistemática das políticas do governo Bolsonaro, o que deve ficar para outro lugar.
Terminemos lembrando um último exemplo interessante da moral particular dos ricos. O mesmo Congresso Nacional que hesita e cobra caro a aprovação desse programa de governo ‘muito caro’ aprovou no início de 2016 e renovou por mais um ano no início de 2017 uma lei – o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária, Lei 13254, de 13 de janeiro de 2016 e Lei 13428, de 30 de março de 2017 – que abriu duas janelas temporais para que dinheiro mantido no exterior e não declarado fosse repatriado pagando uma taxa ridícula de 15% e um câmbio extremamente subvalorizado. A justificativa para tal legislação incluía a ‘compreensão’ para com a atitude de empresários e agentes econômicos que, durante o período pós Ditadura Militar, entre 1985 e 1994, teriam sido prejudicados pela instabilidade dos diversos planos econômicos e resolveram levar o seu dinheiro para fora do país sem notificar as autoridades competentes nem pagar os impostos devidos para tal. O RERCT garantiu que todos os delitos tributários e financeiros desses agentes fossem perdoados. Nesses dois anos cerca de 190 bilhões de reais foram repatriados. Estima-se, no entanto, que outros duzentos bilhões tenham permanecido ainda no exterior. Tal é a moral dos ricos e dos seus inúmeros defensores no Congresso Nacional.
Sérgio R. R. Castilho é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense.
[1] Para dados gerais e introdutórios acerca do Bolsa Família conferir https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59099166. O site do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas, IPEA – https://ipea.gov.br – possui uma série de textos, análises e relatórios sobre o Programa Bolsa Família.