A PEC do “equilíbrio entre os poderes” e a decadência da democracia
A “PEC do equilíbrio entre os Poderes” não é simplesmente inconstitucional, é de inconstitucionalidade ululante, acachapante e está inserida em um outro tema mais relevante que é a decadência da democracia
O Centrão, conforme veiculado na pela imprensa, está na iminência de apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) chamada de “PEC do equilíbrio entre os Poderes”, de autoria do deputado Domingos Sávio (PL) . O projeto autoriza o Congresso Nacional a revogar julgamentos do Supremo Tribunal Federal sempre que a decisão judicial não for unânime e houver uma alegada extrapolação dos “limites constitucionais”. Conforme delineado na justificativa da PEC, não existe poder “supremo” em um Estado democrático de direito. A ideia do presente artigo é analisar a PEC no âmbito estritamente jurídico constitucional.
O Supremo Tribunal Federal, portanto, exercendo suas funções de justiça Constitucional e, sendo assim, ultrapassando a ideia de que exerce apenas a função de controle, possui extrema relevância para assegurar a defesa da ordem democrática, pois, nas palavras de André Ramos Tavares[1], “estamos diante de uma instituição que se distanciou, há muito, do mero e simples controle, previsto nos modelos originais-históricos, para exercer outras funções de governo, legislativas, superlegislativas, de proferir a palavra final (interpretação) e, certamente, de defesa da estrutura do ordenamento jurídico (controle da hierarquia do sistema), além da arbitral”. E, em outro trecho, assim dispõe: “Assim, em épocas de negacionismo, o Supremo Tribunal Federal no Brasil intensificou (aumentou a carga) de sua função governativa. Em épocas de absoluta inércia no legislador, ampliou a função legislativa.”
Nota-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal exerce funções de Poder Judiciário e de Justiça Constitucional, logo, ainda que exista e seja necessário um diálogo institucional entre os Poderes da República, quem dá a última palavra acerca da interpretação da Constituição é o seu guardião, isto é, o Supremo Tribunal Federal e não o Congresso Nacional. Sendo assim, a justificativa apresentada, ou seja, a possibilidade de “sustar” decisão que for não unânime e que “extrapole os limites Constitucionais” subverte todo o sistema Constitucional.
O professor Lenio Streck, aduz que esse tipo de interpretação é paradoxo-suicidal, porquanto o Direito não admite uma interpretação que ofende o próprio Direito. A “PEC do equilíbrio entre os Poderes” seria um suicídio do próprio Direito.
Em uma Constituição onde o Poder emana do povo e é regido por um Estado Democrático de Direito (artigo 1º da CF/88); onde os Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo são independentes e harmônicos entre si (artigo 2º da CF/88); na qual o Supremo Tribunal Federal compete, precipuamente, a guarda da Constituição (Artigo 102 da CF/88) e onde estabelece proibições de emendas Constitucionais tendente a abolir a separação de Poderes (Artigo 60, §4º, III da CF/88), não existe nenhuma possibilidade do Congresso dar a última palavra acerca da interpretação da Constituição, pois o Congresso, como visto, não é o seu guardião precípuo, ainda que, em tese, deveria defendê-la.
Todavia, o exemplo acima traz, em um aspecto mais amplo, um golpe, ainda que não fatal, à democracia. Georges Abboud, argumentando sobre a degeneração do Direito e a influência do regime nazista, afirma que “durante o regime nacional-socialista, o direito produzido democraticamente foi manejado para fins diversos, subordinado aos interesses do partido de Hitler e à sua agenda genocida e totalitária.” [2]
E em outro trecho o autor continua “preservar o direito, encará-lo como um produto democrático pelo qual todos temos de zelar, é preservar, sempre, a democracia em si mesma. Sob esse ponto de vista, vilipendiar por pouco que seja a ordem jurídica é intolerável”. E conclui “toda degeneração da democracia é uma degeneração do direito e vice-versa”. Sendo assim, este artigo abordará, a partir de agora, como o projeto de emenda Constitucional aqui analisado, relatado apenas como uma discordância de opiniões de agentes políticos se enquadra, na verdade, em um espectro mais amplo e perigoso da derrocada da democracia global.
A decadência da democracia
A queda da democracia anda, lado a lado, com a ascensão da extrema direita e de regimes autoritários. No caso Brasileiro, a queda do padrão democrático inicia-se – ainda que contraditório – com as manifestações de 2013, pois, a partir desse momento, a tensão entre os poderes começa a aumentar de maneira veemente. O ápice das disputas ocorre quando a eleição de 2014 é atacada, sem nenhuma prova, com insinuações de uma possível fraude, pelo candidato perdedor e posteriormente com o impeachment de Dilma Roussef, conforme demonstrado por Boaventura de Souza Santos. Após, uma grave crise econômica se fortalece ainda mais a tensão entre os Poderes e resulta em uma população ávida por mudanças.
A “PEC equilíbrio entre os Poderes” está inserida em uma moldura de maior relevância. Esse contexto é chamado pelo professor Tom Gerald Daly de Democratic decay [decadência da democracia] ou, mais especificamente, as afrontas ao Poder Judiciário podem ser enquadradas no que o autor chama de death by a thousand cuts, que culmina em uma erosão democrática.
Segundo o relatório Fredom in the world 2022, de meados de 2005 para frente há uma queda no nível de democracia em todo o mundo. Atualmente, de 195 países avaliados, apenas 42% deles são considerados livres – o que equivale a apenas 20% da população mundial.
Para o professor Tom Gerald Daly, o conceito de democracia deve ser mais estrito, logo, um Estado apenas será uma democracia se houver mecanismos eficientes de controles Constitucionais, eleições livres, amplas e justas, além de respeitar o democratic minimum core. Isto é, as minorias devem ser respeitadas para que o Estado seja considerado uma democracia[3], além de ser protegido outros direitos fundamentais essenciais, como a liberdade de imprensa, liberdade de expressão e o direito de protesto.
Há um declínio democrático mundial e, essa queda se dá, em alguns Estados, de maneira mais sutil, pois ataques aos pilares das democracias e das Constituições acontecem com aspecto de “legalidade”, por exemplo, reformas institucionais, reformas no Poder Judiciário, pressões veladas à mídia, mudança nas regras eleitorais, disseminação de ideias golpistas, proliferação de fake news. Logo, eleições são apenas uma parte de um amplo e complexo sistema democrático.
Não seria um devaneio pensar em um possível golpe, pois, na analogia citada pelo professor Daly, esses cortes na democracia são a mesma coisa que um sapo em uma panela com água fervendo, quando ele percebe já é tarde e não dá mais tempo para pular.
A PEC em tela, além dos diversos outros exemplos citados, são ataques “sutis” – pois, concedem um aspecto de que a discussão é apenas uma diferença de opinião e interpretação à Constituição, ao Poder Judiciário e ao próprio Direito. Contudo, possui efeitos nefastos à ordem democrática, pois corroem as instituições e a credibilidade dos Poderes perante a população.
Essa constatação é importante para ressaltar a necessidade de conscientização e de adoção de um pensamento crítico da população para as próximas eleições já que as instituições – embora demonstrem força e resiliência[4] – não foram forjadas com o intuito de proteger o país, de forma perene, de um golpe, mas sim de atuar em prol da consecução dos objetivos Constitucionais, tendo o Supremo Tribunal Federal, a função de “curadoria constitucional”[5], ou seja, mediante o exercício da Justiça Constitucional e de suas funções implementar os objetivos Constitucionais.
Logo, a “PEC equilíbrio entre os Poderes” deve ser rechaçada pelos operadores do Direito, doutrina e academia. Reforçando a ideia que o que parece apenas inofensivo tem espaço em um contexto global de ataque à democracia, sendo dever de todos contestar e resistir a tal empreitada, pois, se trata de um projeto inconstitucional, teratológico e uma aberração jurídica.
Vinicius Marinho Minhoto é procurador jurídico. Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de São Paulo e em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestrando em Direito Constitucional pela PUC/SP
[1] TAVARES, André Ramos. Justiça Constitucional: Superando as teses do “legislador negativo” e do ativismo do caráter jurisdicional. Revista direitos fundamentais e justiça. n° 7, p. 167 – 181, abr./jun. 2009.
[2] ABBOUD, Georges. Direito constitucional pós-moderno. São Paulo: ed. Thomsom Reuters Brasil, 2021.
[3]O chefe do Poder Executivo brasileiro afirmou em entrevista que: “as minorias devem se curvar às maiorias”
[4] VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens. Populismo Autocrático e Resiliência Constitucional. Interesse Nacional. São Paulo: ano 12, n.47, p.66-76, out/dez.
[5] TAVARES, André Ramos. Justiça Constitucional: Superando as teses do “legislador negativo” e do ativismo do caráter jurisdicional. Revista direitos fundamentais e justiça. n° 7, p. 167 – 181, abr./jun. 2009.