A pedagogia das águas
As lições de “Rios DesCobertos” e de “Graffiti Contra Enchente” elevam ao CEU a sabedoria de quem mergulha nessas águas
Acabo de sair de uma imersão no documentário Graffiti Contra Enchente, sobre um dos maiores eventos de grafitagem do mundo, que acontece há anos entre os municípios de Taboão da Serra e de São Paulo. Ainda com os pensamentos umedecidos pela experiência com a produção audiovisual, rememoro, em águas passadas, algumas braçadas no Projeto Rios DesCobertos, que ocorreu a ligeiras remadas do Graffiti Contra Enchente, no CEU Cantos do Amanhecer, no transcorrer de 2023.
DesCobertos X Rio Cantos

Navegando em diversas águas de São Paulo, o Rio DesCobertos é uma intervenção educacional desembocada pela Fundação S.O.S Mata Atlântica (por meio da proposta de ação Observando os Rios), que, nessas margens de Sampa, em parceria com a Biblioteca CEU Cantos do Amanhecer, fez embarcar na viagem do aprender-ensinar estudantes do Grêmio e da Imprensa Jovem CEU EMEF Cantos do Amanhecer por mares nunca antes vistos.
Em paradas diferentes do cruzeiro do conhecimento – no trabalho didático que se fez fluir no ano passado entre CEU e Rios DesCobertos –, os discentes da EMEF navegaram em palestras, surfaram no território, fizeram análises das águas do Córrego Pirajussara, um dos afluentes do Rio Pinheiros (um dos mais importantes da Capital paulista), bem como das águas subterrâneas do CEU Cantos do Amanhecer.
O sugestivo nome “DesCobertos” causou a sede de aprendizado no alunado da EMEF, que caiu de cabeça quando soube que há um rio sob o CEU onde estudam, cujo desaguamento se dá no Córrego Pirajussara. Assim como outros rios da Grande São Paulo, o que tem nascente no subsolo do CEU Cantos do Amanhecer foi encoberto, desaparecendo dos olhos das pessoas, nem por isso deixando de existir.

EMEF Cantos do Amanhecer, acompanhando técnicos do projeto, estudantes e educadoras(es) em atividade de campo no Córrego Pirajussara.
Além de todos as rotas educativas no CEU Cantos e em seu entorno, se aventuraram (Grêmio e Imprensa Jovem da EMEF, professores, professoras e bibliotecárias envolvidos) na exposição Rio DesCobertos no SESC Interlagos, na qual, em cachoeiras de saberes, interagiram com equipamentos de multimídia e com monitores do projeto, saindo do raso e aprofundando seu repertório sobre a geografia e a historiografia dos rios – especialmente – da Grande São Paulo.
Para finalizar a expedição do conhecimento, os discentes mergulharam nas profundidades oceânicas do saber e do saber fazer. Primeiro, após eles receberem uma chuveirada de treinamento para fazer a monitoria de uma exposição, com material digital preparado pela equipe do Rios DesCobertos, na Biblioteca CEU Cantos, de modo a assumirem o timão da nau, compartilhando os conhecimentos sobre a hidrografia da região; em especial, do rio que tem seu nascedouro no CEU Cantos do Amanhecer.
Por fim, o derradeiro da circum-navegação dos adolescentes das instituições escolares (grêmio e imprensa) consistiu em sugerir uma lista de nomes para que todos os estudantes da EMEF, os profissionais que ali trabalham, toda a comunidade interna e, também, externa (os frequentadores do CEU) pudessem eleger um nome para o rio que tem nascente e passa debaixo daquele equipamento educacional. O povo elegeu: Rio Cantos!
A expressão “só é lembrado quem é visto” é interessante para compreender os objetivos da proposição da Fundação S.O.S Mata Atlântica. Ao saber que existe um rio, nomeando-o, a população toma ciência de que detém uma riqueza hídrica: o Rio Cantos! E, assim, passa a ter responsabilidade sobre o que com ele acontece!
Se, de fato, a grande descoberta (ou melhor: achamento; para não ser colonialista) do Rio Cantos irrigou mentes e corações, faz-se necessário entoar a canção antiga, segundo a qual “navegar é preciso”. Mas uma navegação que almeje repartir (não conquistar) narrativas sobre as águas que a todos pertencem, para que outras viagens sem naufrágios – como o fim do planeta Terra (ou de sua água potável, né?) – singrem as consciências humanas!
Graffiti Contra Enchente
Remando contra a maré, o audiovisual Graffiti Contra a Enchente me fez viajar na nau do tempo! Em um retrocedimento cronológico, velejei por lembranças, para além das águas de dezembro de 2013, quando, abrindo o Verão, as chuvas da década passada inundaram lares, marejaram olhos, afundaram sonhos, afogaram uma vida no Pirajussara, na altura do Jardim Maria Sampaio, nas margens de São Paulo, e do Jardim Sílvio Sampaio e do Jardim Leme, nas margens do Taboão da Serra, deixando a todos sem direção!
A memorabília atracou nos anos de 1990, nas ruas e casas de pessoas queridas da Avenida Luiz Santos Silva (margeando o Pirajussara, na ponte que interliga o Leme de taboanenses, de um lado, com o de paulistanos, de outro) e da rua Júlio César Acosta Chimenez, da sede do Fortaleza (um dos times mais vitoriosos da várzea, não só de Taboão, mas de toda a região – Embu e São Paulo). Ano após ano, moradores dessas vias (assim como de outras) tinham suas casas submersas pelo transbordamento do Córrego Pirajussara.
Aqueles e aquelas que não residiam nesses perímetros no final do século passado, tomando ciência das cheias do córrego apenas pelos relatos dos antigos moradores, infelizmente, vivenciaram a enchente de 2013 para, por meio de traumática experiência, conhecerem o pesadelo das águas turvas do Pirajussara levarem mato, lixo, ratos, esgoto, fezes, doenças, destruição, enfim, para seus lares.
Ainda escaldado pelo banho de água fria de dezembro de 2013, Gamão (como é conhecido o grafiteiro e produtor cultural Rodrigo de Souza Dias), mais uma vez passando pelo ciclo das cheias, recebe um telefonema de um parceiro da arte de rua: Mirage (como é conhecido Agnaldo Porto Rodrigues). Preocupado com Gamão, após ver as imagens da enchente pela TV, Agnaldo liga para ter notícias e oferecer ajuda (como tantas outras pessoas que se mobilizaram para prestar apoio às vítimas daquela fatal inundação).
Alguns dias depois, seu amigo Agnaldo, que havia matutado muito sobre o assunto após o primeiro contato telefônico liga novamente, e o incentiva a protestar contra o descaso do poder público por meio de uma grafitagem: o “Graffiti Contra Enchente” – em suas palavras. Inicialmente contrariado, Gamão abraça a ideia do amigo Mirage: “a maior ferramenta, a maior arma que nós temos pra essa situação” (fala de Mirage, retirada do documentário homônimo, Graffiti Contra Enchente).
Nadando contra a correnteza – sem apoios governamentais ou empresariais –, Gamão não deixa o projeto morrer na praia: em 2015, a primeira edição do Graffiti Contra Enchente deixa o estaleiro das ideias e desliza pelo oceano das ações, capitaneada pelo Raxa Kuka Produções, coletivo idealizado pelo grafiteiro Rodrigo de Souza Dias. Como uma arca (não de Noé), Gamão e Mirage buscam (não casais de animais, mas) feras nas artes visuais do Hip-Hop pelo Brasil afora; extrapolando, inclusive, as fronteiras do país.
Grafiteiros de vários estados brasileiros remaram com seus recursos. Também por conta própria, de suas terras natais no estrangeiro, aportaram aqui artistas do Graffiti do Chile, da Argentina, do Paraguai, do Uruguai, dos EUA (dois de Nova Iorque) e da Polônia. Quer dizer, muita gente de todo o mundo se mobilizou para embarcar em um dos maiores projetos do Museu a Céu Aberto do planeta, dividindo seus talentos para multiplicar os protestos por meio da arte!
Como mensagem em garrafa lançada ao mar, o Graffiti Contra Enchente atravessou os oceanos da ignorância, demonstrando como o Hip-Hop pode somar com as causas sociais e ambientais para que ninguém seja diminuído por quem não se preocupa com o próximo: a ação do RAXA KUKA ganhou as ondas da mídia (impressa, audiovisual, no jornal, na TV e na Internet) e, como tsunami, levou o descontentamento da população, além da potente mensagem ambiental!
Os educandos do CEU EMEF Cantos do Amanhecer foram desembarcar no Graffiti Contra Enchente também! Prestigiando várias edições do evento promovido pelos artistas de quebradas espalhadas pelo mundo, concentradas no território taboanense do Leme e do Sílvio Sampaio, os discentes (assim como os docentes) submergiram no conhecimento da rua para não boiar na desinformação da falta de consciência ecológica de variados poços de desinteligência.
Em mais de uma oportunidade, adolescentes da EMEF refrescaram-se na chuvarada de palavras de Gamão, bem como tomaram banhos de ideias nas cascatas de pensamentos de grafiteiros de outros países, como o chileno Ismael Alejandro; inclusive, um dos encontros de educadores dessa unidade ocorreu no Graffiti Contra Enchente, para, por meio do cais da aprendizagem, pudessem intercambiar saberes com Gamão.

Sem seca nem tampouco aguaceiro
Água pode ser sinônimo de vida; mas, também, de morte. O que diferencia um oposto de outro é a ação humana sobre o recurso natural mais importante do planeta. Algo entre as distâncias semânticas de matar a sede e de morrer afogado (se quiser figurativização de linguagem). Dar uma barrigada em águas poluídas ou dar um salto ornamental em águas cristalinas (em figuras da linguagem, de novo): a escolha depende de nós (ou de como a espécie humana pretende conduzir as pautas concernentes ao precioso líquido).
Rios DesCobertos e Graffiiti Contra Enchente são intervenções que não deixam a sociedade entrar em canoa furada; ao contrário, conduzem os envolvidos (a começar pelos estudantes e profissionais da educação da EMEF) a cruzar os mares bravios da ignorância e da ganância humana, em inesquecíveis viagens pela consciência ecológica.
Ambas as intervenções (Rios e Graffiti), consoante a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), possibilitam aos estudantes “vivenciar experiências significativas com práticas de linguagem em diferentes mídias (impressa, digital e analógica), situadas em campos de atuação social diversos, vinculados com o enriquecimento cultural próprio” (p.485).

De alma lavada pela sabedoria de Rios DesCobertos e Graffiti Contra Enchente é mais fácil despoluir ações, rios, para nadar – senão de costas, ao menos tranquilamente – na resolução de problemas ambientais da Terra (ou água, né?). A ciência e a arte, como sempre, de gota em gota, dissolvendo problemas e, ao mesmo tempo, irrigando soluções!
Fábio Roberto Ferreira Barreto é professor da rede municipal de ensino e mestre em literatura pela USP.