A performance fúnebre de um autoritário empoderado
Brasileiros e o mundo assistem enquanto presidente se aproveita de poderes exclusivos para comandar uma catástrofe
Uma das principais características da resposta do Brasil à Covid-19 é a estratégia do presidente Jair Bolsonaro de transferir a culpa da crise sanitária e econômica para os governadores e chamar para si o crédito pelo auxílio emergencial. Paradoxalmente, o presidente abusa do poder de centralizar em si a resposta à Covid-19. Ora alinhando essa resposta a interesses eleitorais, ainda que prejudiciais ao controle da doença, ora tomando para si os créditos de medidas bem-sucedidas.
A atuação autoritária e controversa nos rumos da pandemia se torna possível porque o sistema político brasileiro permite que o cargo presidencial seja um dos mais poderosos do mundo em relação a outros setores da sociedade. O presidente tem poder constitucional para escolher e exonerar livremente ministros, emitir medidas com força de lei instantânea e vetar leis propostas pelo congresso.
E é disso que Bolsonaro se aproveita. O presidente tem interferido nas ações do Ministério da Saúde de forma nunca vista na história pós-redemocratização, obstruído as tentativas do Congresso de financiar estados e municípios e usurpado a popularidade de medidas como a do auxílio emergencial.
O rodízio de ministros da saúde, cargo que se supõe fundamental em um momento histórico de crise sanitária, tem sido um exemplo marcante do efeito de ações presidenciais na crise atual. O atual recém-nomeado, Marcelo Queiroga, assume a pasta já declarando que a “política de saúde durante a pandemia é de Bolsonaro, não do ministro”. A dança das cadeiras e desmandos no Ministério é apenas uma das ações de Bolsonaro que contribui para o descontrole da doença.
Outros exemplos incluem o decreto 10.282 20 de março de 2020, que confere ao presidente a competência de definir “atividades essenciais” na pandemia, o veto da liberação de 8,6 bilhões de reais para estados e municípios na aquisição de materiais de prevenção à propagação do vírus e o veto à trechos de lei que previa a obrigação do governo em garantir à populações tradicionais, o acesso à água potável, leitos hospitalares e máquinas de oxigenação sanguínea. A isso soma-se a utilização de espaços na mídia para subestimar a gravidade da doença e para desincentivar medidas de controle recomendadas pela OMS, além de defender medicações sem eficácia comprovada.
Além da saúde, a intervenção presidencial durante o período de pandemia se faz evidente também em outras áreas, como na recente interferência na Petrobrás, que agradou a base eleitoral dos caminhoneiros, mas que teve efeito imediato na desvalorização da estatal e na perda de credibilidade do país no exterior. O resultado foi a saída de mais de 6 bilhões em investimento estrangeiro no país.
A investidura de tais poderes na figura presidencial tem raízes na Constituição Federal de 1988. Os constituintes tinham como objetivo garantir a capacidade do poder executivo de ser resolutivo e de dar respostas rápidas às demandas da sociedade, portanto se atentaram em evitar conjunturas de paralisia decisória. O Poder Executivo é o centro de gravidade de sistemas políticos presidencialistas, apesar dos contrapontos oferecidos pelo poder judiciário e pelo Congresso.
Com este arranjo, não só do ponto de vista das relações entre Executivo e Legislativo, mas também da governança regulatória, o país vinha demonstrando certa estabilidade. Até agora. O que estamos vivendo agora sugere que o sistema político brasileiro é especialmente vulnerável a uma figura populista-negacionista. O presidente é o elo mais forte das instituições e tem com isso nas mãos os instrumentos que precisa para exercer seu autoritarismo.
Assim, além de conduzir o Brasil na lista dos lugares com maior taxa de mortalidade pela pandemia no mundo, nosso presidente lança o país também na lista dos regimes a experimentar uma guinada em direção ao autoritarismo. E os brasileiros, assim como o resto do mundo, assistem atônitos e impotentes aos efeitos catastróficos.
Andreza Davidian, Elize Massard da Fonseca e Laura Segovia Tercic são da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas