A política do ódio e a resistência do povo nas ruas e nas redes
A era Bolsonaro impulsionou a violência como dispositivo político, sobretudo em 2022, ano eleitoral no país, mas não sem enfrentar ações de resistência
Durante o governo Bolsonaro, e particularmente em 2022, o ódio cimentou a plataforma política do então candidato à reeleição, com discursos e ações que incitaram a violência simbólica e material contra adversários ideológicos. A política do ódio recriou inimigos, resgatando o fantasma de um suposto comunismo latino-americano, e se valeu do ideário colonial, ainda vigente no imaginário social, que aponta seus canhões contra a diversidade, os grupos historicamente excluídos e os movimentos sociais. Falamos também de um perverso e multifacetado processo que ressemantizou a palavra “liberdade”, tornando-a, paradoxalmente, aliada da subjugação humana, econômica, política e religiosa.
Para o antropólogo e professor Roberto Éfrem, no cerne do que se intitula de política de ódio estão as relações desiguais de poder produzidas e reproduzidas por agentes políticos. “Isso que estamos chamando de ódio consiste em um momento de relações de poder muito desiguais, profundas e perversas com as quais convivemos há muito tempo e nos constituem historicamente. O ódio teve bastante capilaridade no contexto eleitoral de 2022. Nele, as relações de poder muitíssimo desiguais, que nos formam como nação, que limitam a nossa experiência democrática, puderam se expressar a partir de certos sujeitos que vinham operando para produzir e reproduzir essas relações. Não estou dizendo que estamos apenas observando a reprodução do velho. Tudo isso tem algo novo que tem a ver com o modo como essas relações de poder estão sendo reviradas e reinventadas a partir de novas estratégias, tecnologias e com a constituição de novos agentes políticos”, afirma.

Em uma arena pública ampliada, em que as vidas on e offline têm fronteiras cada vez menos definidas, as redes sociais e os aplicativos de mensageria foram espaços por excelência de disseminação dos discursos de ódio. Segundo a organização SaferNet, 2018, 2020 e 2022 foram os anos eleitorais em que as denúncias de discursos de ódio aumentaram significativamente em relação aos anos anteriores. Entre 1º de janeiro e 31 de outubro de 2022, foram recebidas 39,3% mais denúncias do que no mesmo período de 2021.
Os três tipos de crime de discurso de ódio mais denunciados em 2022 foram xenofobia (ódio aos imigrantes estrangeiros ou pessoas de algumas regiões do país), cujo aumento foi de 821% em relação a 2021, seguido de intolerância religiosa, com crescimento de 522%, e de misoginia, ampliada em 184%. Os outros quatro crimes de discurso de ódio na internet mais denunciados foram: apologia a crimes contra a vida, LGBTQIA+fobia, neonazismo e racismo. Excetuando o neonazismo, que apareceu fortemente no ano passado, a pesquisa da Safernet identificou um padrão semelhante de crescimento dos demais discursos de ódio nas últimas três eleições.
As redes sociais e os aplicativos de mensageria, pelas suas estruturas e gramáticas, possibilitaram o compartilhamento de discursos de ódio, assim como a criação e o fortalecimento de grupos identificados com ideais antidemocráticos. “Eu fico pensando naquela cena de pessoas com celulares para cima pensando que estão falando com extraterrestres. Falou-se em surto coletivo, mas como aquilo é possível? Aquilo é possível porque é compartilhado. Aqueles sujeitos não estão sós, existe uma unidade, uma coesão, a produção de uma identidade política. A fé, a crença absoluta só é possível quando é compartilhada. A internet, as redes sociais garantem esse compartilhamento”, avalia Éfrem.
O ódio enquanto política se valeu das novas estruturas comunicacionais também para criar seus representantes, lideranças que disputam a política institucional a partir de uma agenda neoconservadora e, em diversos pontos, fascista. “A mobilização de pânicos morais e de narrativas conservadoras constitui sujeitos a ponto de eles se fazerem sujeitos a partir delas. Não à toa, durante as eleições, Jair Bolsonaro o tempo inteiro leva seu discurso à direita, porque a extremização é uma forma de constituição de sujeitos. No limite, pode significar que o que se está chamando de ódio é uma forma de constituição de sujeitos políticos”, destaca o antropólogo.
Entre falácias e performances
É fato que houve o uso das estruturas comunicacionais para a desdemocratização. A vigilante economia informacional movida pelas plataformas digitais e os dispositivos simbólicos empregados para desinformar aparecem no centro das estratégias desdemocratizantes. As narrativas que ancoraram os discursos antidemocráticos, ao longo do ano de 2022, não se colocaram como tal. Falaciosamente, se valiam de performances e jargões salvacionistas, patrióticos, de defesa da família tradicional heteronormativa e pela liberdade de mercado como garantidora de melhorias para a população. Não à toa o lema do bolsonarismo nas eleições girou em torno da tríade Deus-Pátria-Família.
“O chamado discurso do ódio parte de uma consideração totalmente inversa. Toma-se como pressuposto, absolutamente irreal, que a sociedade capitalista é justa e pacífica e que alguns indivíduos e grupos são violentos e querem excluir direitos de minorias”, analisa Renata Rolim, professora de Sociologia Jurídica do curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
A docente destaca o papel central dos monopólios e oligopólios midiáticos, não só enquanto meios de fortalecimento da política do ódio e de seus agentes, mas como seus produtores. No pano de fundo desse processo estão os interesses de mercado perpetrados por empresas do setor, as quais incidem no imaginário social e na política institucional, como forma de reproduzir lógicas capitalistas as quais, em países como o Brasil, retroalimentam as desigualdades estruturais de classe, gênero e raça.
“Além de ter partidos políticos, a burguesia controla os principais monopólios da comunicação no país e no mundo. Com esse monopólio, ela procura convencer a maior parte da população a aderir à sua política. Durante a campanha eleitoral, vimos esse monopólio [da mídia tradicional] agir para defender a ampliação das privatizações, o controle dos gastos públicos em benefício dos banqueiros e a autonomia do Banco Central”, afirma Rolim.
As redes sociais, por sua vez, não romperam com essa lógica concentradora de poder. “As plataformas digitais são poderosos monopólios que acumulam grandes fortunas a partir da violação dos direitos de privacidade dos usuários e mantêm articulações políticas estreitas com a espionagem dos países imperialistas. Edward Snowden e Julian Assange denunciaram corajosamente essa articulação e até hoje pagam muito caro por isso”, complementa.
A pesquisadora reforça, ainda, que os discursos de ódio, disseminados na rede mundial de computadores, fazem parte de um modus operandi histórico dos grandes conglomerados da mídia tradicional nacional, aliados ao capital na defesa do Estado Mínimo. “Para enfrentar o ódio como política teríamos que começar cassando as concessões públicas dos principais monopólios de imprensa do país. São eles que apoiam e buscam legitimar a matança de nossos jovens, negros e pobres, pela polícia militar. Não existe discurso de ódio mais potente que esse! Talvez o que considere que as pessoas precisam morrer de fome para garantir o pagamento de uma dívida aos banqueiros especuladores. E essa é uma pauta da qual a imprensa monopolista não abre mão”, pontua.
Apesar do rolo compressor antidireitos, Renata Rolim também destaca as vitórias nas disputas simbólica e institucional vivenciadas ao longo do ano passado. “Tivemos uma grande vitória contra a imprensa monopolista e as forças repressivas que em 2016 perpetraram um golpe de Estado e, em seguida, colocaram na prisão o líder mais popular que o país já teve nas últimas décadas, Luiz Inácio Lula da Silva. A ascensão política da extrema direita foi o resultado dessa política reacionária e também derrubamos, até o momento, essa tendência. Somos, sem dúvida, um grande exemplo para o restante da América Latina e para todos os países do mundo que estão passando por questões semelhantes com o avanço político da extrema direita. Essa força política só pode ser superada com as amplas massas e com uma política que as mobilize”, avalia.
Contra o ódio e o medo, as resistências nas ruas e nas redes
Na mira do arsenal bélico (simbólico e material) da política do ódio, lideranças políticas de esquerda e movimentos sociais articularam ações nas ruas e nas redes para enfrentar o ideário antidemocrático e fortalecer a luta por direitos e o respeito à diversidade. Rud Rafael, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e integrante da Frente Povo Sem Medo, avalia que a ativação do medo foi um dos principais recursos usados pelos agentes da política do ódio ao longo de 2022.
“O elemento que mobiliza a política da extrema direita é o ódio, que tem o medo como sua principal interface. Eles mobilizaram o sentimento de medo de destruição da família, da propriedade e de Deus, assim como foi na ditadura, para justificar a eliminação dos seus adversários políticos. Foi com essa lógica que eles foram produzindo inimigos num contexto de crise social e política expressiva na nossa sociedade, difundindo as mentiras mais escabrosas nos meios de comunicação que eles dispunham. Esse discurso foi ganhando diversas formas políticas. Desde a elevação da violência contra defensores de direitos humanos, como nos diversos casos de violência política que vivenciamos nos últimos anos, e tem no assassinato de Marielle Franco um dos seus principais símbolos, até o fortalecimento de militarização das periferias e de uma política armamentista”, articula Rud.

Representantes de segmentos da população historicamente excluída presentes nos espaços da política institucional sentiram na pele o projeto de aniquilação da diversidade. “Em relação às eleições de 2022, nós percebemos um aumento da violência política racial e de gênero contra mulheres negras. É importante destacar que, logo após as eleições de 2018 e 2020 também, houve vários casos de parlamentares eleitas, cis e trans negras, ameaçadas de morte por Whatsapp ou e-mail, de parlamentares que tiveram suas casas atingidas por tiros ou pichadas, recebendo mensagens que descrevem seu cotidiano, que horas saem de casa, onde as crianças estudam, onde mora a família dela”, relembra Mônica Oliveira, integrante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco.
Diante das múltiplas facetas e sujeitos da política do ódio, as estratégias dos movimentos também foram multifacetadas. Mônica destaca que as mulheres negras se organizaram em coletivo, desenvolvendo campanhas para redes sociais e outras mídias, a fim de sensibilizar e denunciar a violência contra esse segmento da população. Elas também desenvolveram parcerias estratégicas com os tribunais eleitorais como forma de fortalecer as mulheres negras candidatas.
O MTST aliou ações de escracho, mobilizações nas periferias e produção de conteúdo de forma criativa e estratégica. “As ações de escracho realizadas na Bolsa de Valores, na mansão de Flávio Bolsonaro, em shoppings e em lugares de referência dos golpistas, produziram efeitos simbólicos importantes. A imagem de sem-tetos dentro da Bolsa com a bandeira do Brasil escrito ‘Fome’ ilustrou várias matérias e artigos que colocavam em debate questões sensíveis para a população brasileira. A experiência do ‘Gabinete do Amor’, que surgiu no contexto das eleições de 2020, para criar um contraponto ao ‘Gabinete do Ódio’ bolsonarista também foi uma experiência que rendeu bons frutos em relação à disputa das redes sociais, assim como a formação de grupos de ação no Whatsapp”, destaca Rud.
O Movimento Sem Terra (MST), historicamente criminalizado pela mídia tradicional, sofreu severos ataques aos seus acampamentos e assentamentos. Um deles aconteceu no final de 2022, quando o Centro de Formação Paulo Freire, localizado no assentamento Normandia, no agreste pernambucano, foi invadido, depredado e pichado com suásticas e com a palavra “mito”. O MST, que vem ampliando suas ações de comunicação em rede, apostou na solidariedade e no trabalho de base como meios de resistência.
“O MST, por mais que tenha sido atacado, saiu fortalecido porque foi um bastião da esperança, sendo quase um farol da resistência. O MST girou a sua vida para o que chamamos de isolamento produtivo. A orientação era que cada assentado fosse para dentro dos seus lotes e produzisse comida saudável durante a pandemia e durante esse período de ódio. Chegamos a mais de 12 mil toneladas de alimentos doados, produzidos pelo MST, e quase três milhões e meio de marmitas e tantas outras ações de solidariedade que foram acontecendo durante o ano. Então, mobilizamos gente, mobilizamos esperança para essa luta e para a construção da solidariedade”, afirma Paulo Mansan, da direção do MST-PE.
Os povos indígenas, alvos de diversos ataques de caráter genocida desvelados mais fortemente desde o ano passado, fizeram história mobilizando ações de pressão junto aos poderes do Estado. “Os povos indígenas estiveram em Brasília, em 2021 e em 2022, impulsionando o maior movimento de mobilização já feito pelos indígenas no Brasil. Nenhum direito foi retirado. Essa mobilização, inclusive, proporcionou colocarmos em pauta o julgamento do recurso extraordinário que discute a nefasta tese do Marco Temporal [no STF]. Fizemos uma articulação permanente com vários organismos internacionais e nos somamos a outros movimentos aqui no Brasil, que permaneceram atentos e lutando junto com os povos indígenas. Fruto disso foi a nossa vitória, em termos [no novo governo Lula] um Ministério dos Povos Indígenas e os povos indígenas administrando a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] e a Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena]. Isso vai fazer com que os povos indígenas sejam protagonistas na política indigenista oficial do governo”, avaliou Eduardo Cerqueira, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

A juventude indígena também fez história nesse processo, articulando, em rede, a produção e circulação de conteúdos a partir de seus territórios para se opor ao massacre dos povos indígenas e à política do ódio. “A juventude indígena, com maior conhecimento sobre os meios de comunicação, as novas tecnologias, se fez protagonista nesse processo de repercutir a luta dos povos indígenas a partir das suas aldeias, dos seus locais. Diariamente recebíamos, por parte desses comunicadores indígenas, conteúdos importantes e impactantes com relação ao dia a dia dessas comunidades. A resistência da juventude esteve presente em todos os processos de mobilização, tanto em nível local, como regional e nacional”, lembra Cerqueira.
O ódio como política desvelou, por um lado, os mecanismos presentes na cultura política do país que o permitiu existir e se espraiar, e o agravamento da utilização do ódio como dispositivo político nos quatro anos de governo Bolsonaro, coincidindo com retrocessos que fragilizaram o estado democrático de direito no país.
Por outro lado, também lançou luzes para a comunicação como elemento político central de intervenção sobre o real. Em um país com marcantes brechas digitais, fragilidades democráticas e flertes de grupos conservadores com projetos extremistas, o caminho da resistência em 2022 enlaçou territórios e redes, acendendo o sinal de alerta em relação à necessidade de regulação das plataformas digitais e das concessões públicas de radiodifusão. A continuidade desse enfrentamento deve ser pauta dos próximos anos, sob o risco do fantasma do horror ressurgir.
Nataly Queiroz é jornalista, doutora em Comunicação, professora universitária e integra o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação.