“A pornografia é a máquina de propaganda do patriarcado”
Entrevista com a socióloga feminista Gail Dines sobre a indústria pornográfica e masculinidades violentas e os impactos na sexualidade de jovens.
Savannah é o nome artístico de Shannon Michele Wisley Longoria. Começou a trabalhar aos 20 anos como atriz na Vivid Entertaiment, produtora situada na Califórnia, uma cidade dos Estados Unidos onde reside o núcleo da produção mundial de pornografia. Shannon destacou-se rapidamente pela beleza do seu rosto. Rapidamente também começou a se envolver com drogas e, mesmo tendo uma renda substancial, nunca deixou de ter problemas financeiros. Finalmente, e com somente quatro anos de carreira dentro da indústria, e após ter visto seu rosto desfigurado como consequência de um acidente de carro, Savannah atirou em seu rosto com um revólver que guardava na sua casa, colocando um fim na sua vida, aos vinte e três anos.
No filme “Real Women, Real Histories”, Bree Oslon, atriz pornográfica e ex namorada do ator Charlie Sheen diz “Quero mandar uma mensagem forte para os jovens, não façam pornô. Vão abraçar sua sexualidade e vão pensar, Eu posso fazer o que eu quiser com meu corpo. Porém, terão uma vida de merda pela frente. Nunca poderão trabalhar com crianças. Tem vezes em que fico trancada muito tempo na minha casa, me decepciona encontrar um amigo na rua e perceber que mudou seu comportamento em relação a mim”.
“Os únicos milionários são os produtores”, diz Shelley Roben, conhecida como “Roxy”. Ela relata sua vivências no documentário “Trafic Control”: “As pessoas que assistem esquecem que temos família, que tentamos escapar desse mundo do qual fazemos parte. Um vídeo editado não mostra quando uma atriz precisa sair do set porque não aguenta a violência física da cena ou está chorando porque não tem a estrutura psicológica para continuar. O vídeo não mostra que para os produtores só somos vadias na busca de sexo e dinheiro.”
A partir de 2014, em Los Angeles, se tornou obrigatório o uso de preservativos nas cenas de filmes pornôs. A resposta dos produtores foi a de mudar as produtoras para Las Vegas e Miami. “Os homens viciados em pornografia que conheci tem uma visão desalmada e inumana do sexo”, relata Shelley.
Gail Dines é uma socióloga feminista especializada no estudo da mulher e da pornografia. Ela é co-autora do livro “Pornography: The Production and Consumption of Inequality (1997)” e autora do “Pornland: How Porn Has Hijacked Our Sexuality (2010)”. Ela também é membro fundadora da “Stop Porn Culture” – uma organização feminista anti pornografia com braços nos Estados Unidos, Noruega e Reino Unido -, e uma das editoras-chefe da publicação “Sexualization, Media and Society”.
Dines afirma que a pornografia é uma potente máquina propagandística do patriarcado, criando estereótipos e padrões normativos de masculinidade e feminilidade. Ela responsabiliza a indústria pornô pela distorção da figura da mulher, jogando nela o peso de ter que ser magra, sarada, sem pelos, hipersexualizada e cirurgicamente aperfeiçoada. No caso dos homens, a socióloga alega que o pornô reforça o padrão de masculinidade violenta e autoritária, afetando a sexualidade dos meninos desde bem cedo.
“Eu acho que uma das coisas interessantes sobre como meninas e mulheres jovens são afetadas pela cultura pornográfica é que elas saem com homens que foram moldados pela pornografia. O que eu descobri em minhas entrevistas com mulheres jovens foi que muitos destes homens queriam fazer sexo pornográfico nos corpos delas. Eles queriam sexo anal, queriam toda sorte de outras coisas que viram na pornografia. E muitas mulheres não querem isso, mas não possuem o vocabulário para expressar porque não querem, porque em todo lugar na sociedade dizem a ela ‘se você não faz isso, você é uma puritana’. E que jovem ou adolescente quer ser definida como uma puritana? Então os garotos estão pressionando, insistindo, persuadindo meninas a fazer sexo pornográfico.” Declarou em entrevista à jornalista Sonali Kolhatkar, em 2010.
Sendo a pornografia a principal fonte de informação sobre sexualidade que existe entre a juventude nos dias de hoje, Dines considera que é urgente tratá-la como uma problemática de saúde pública, já que isto gera problemas a longo prazo. A principal ferramenta de educação sexual promove um sexo baseado, exclusivamente, no prazer e no gozo masculino, com um rol marcante de submissão e subordinação por parte da mulher.
Você acha que a pornografia é um reflexo da dominação de gênero?
A pornografia não apenas reflete o domínio dos homens sobre as mulheres, mas também ajuda a normalizar, legitimar e tornar invisível a violência sexual que os homens causam às mulheres. A pornografia atua como a máquina de propaganda do patriarcado, fornecendo imagens de misoginia ao cérebro dos homens através do pênis. Um sistema muito poderoso!
Você poderia descrever brevemente o processo pelo qual a pornografia cria masculinidades violentas?
Os artistas masculinos da pornografia convencional são retratados como desprovidos de empatia, compaixão e outras emoções, além da raiva. Quando os meninos assistem pornô, aprendem o que significa ser um “homem de verdade” em um estágio muito importante do desenvolvimento de gênero. Na pornografia, os homens não amam, mas odeiam as mulheres e agem como “modelos” de comportamento sexual. Há muito pouca educação sexual nas escolas, de modo que a pornografia se tornou a principal fonte de informação sobre o que é o sexo, treinando meninos em todo o mundo para que ajam como se as mulheres fossem depósitos de sêmen e descartáveis.
Por que você acha que existem tantos casos de suicídio de atrizes que ganham tanto dinheiro?
A maioria das artistas pornôs femininas não ganha muito dinheiro. Você tem um punhado das chamadas estrelas pornôs, mas a média de mulheres na pornografia dura três meses porque o corpo dela não consegue suportar a violência. Ela é paga por cena, sem benefícios. Além disso, como a maioria dos usuários acessa pornografia gratuita, as únicas pessoas que ganham dinheiro são aquelas que estão no final da distribuição da cadeia de valor. A “Amazon” do pornô é a MindGeek e eles estão ganhando dinheiro, não os artistas.
Slavoj Zizêk considera a pornografia um gênero conservador, ao contrário de outros que a consideram um gênero transgressor. Como você vê isso?
Absolutamente. As mensagens e ideologias incorporadas ao pornô são profundamente conservadoras. As mulheres existem para serem fodidas e depois descartadas. As mulheres não têm nenhum papel a desempenhar fora de serem fodidas. A pornografia não inventou essa ideologia, apenas a aperfeiçoou.
Podemos dizer que a pornografia contribui para prejudicar a imagem das mulheres, quando cria estereótipos sob corpos apropriados para a diversão?
As mulheres são bombardeadas todos os dias com imagens da mídia de mulheres tecnologicamente aperfeiçoadas. Da cultura pop ao pornô, essas imagens dizem às mulheres que nunca são boas o suficiente. Nunca são magras o suficiente, brancas o suficiente, malhadas o suficiente ou jovens o suficiente. Nenhuma mulher, nem mesmo modelos ou artistas pornôs, pode atender a esses padrões impossíveis e estudos mostram que isso causa ansiedade, depressão, auto-mutilação, ódio ao corpo e auto-sexualização.
O cenário está piorando devido às novas tecnologias?
O consumo de pornografia se tornou uma crise de saúde pública devido à maneira como a tecnologia incorporou essas imagens. Sempre tivemos pornografia, mas as novas tecnologias permitem uma normalização da pornografia e um nível de consumo nunca antes experimentado. A indústria pornográfica tem sido uma das principais motivadoras de novas tecnologias, investindo grandes quantias em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, porque quanto mais acessível e anônima for a pornografia, maior será o nível de consumo e, principalmente, o lucro.
Você acha que existem semelhanças na maneira como a pornografia e as religiões monoteístas veem as mulheres?
Sim! Ambos veem a sexualidade das mulheres como algo a ser policiado, monitorado e perigoso. A religião diz que os homens precisam ser protegidos da sexualidade das mulheres, enquanto a pornografia diz que precisa ser monetizada e mercantilizada. Ambos veem as mulheres como sexo.
Por que as feministas deveriam se envolver no debate sobre pornografia?
A questão precisa ser: por que uma feminista não se envolveria no debate sobre pornografia? O feminismo é sobre a libertação das mulheres, todas as mulheres. E desde que tenhamos um grande número de pornôs que socializam os homens, acreditando que as mulheres são putas fodíveis, não seres humanos com plenos direitos humanos e civis, então nunca seremos vistas como verdadeiramente humanas, e, portanto, dignas de direitos humanos.