Patriarcado e a cultura do estupro no Brasil
A cultura do estupro é, em termos gerais, a banalização e normalização desse crime pela sociedade que compactua e estimula essa cultura de diversas maneiras, por exemplo, quando objetifica as mulheres nos meios de comunicação
Em 21 de maio, no Rio de Janeiro, um crime brutal, cometido a uma garota de 16 anos, chocou parte considerável da sociedade brasileira. A adolescente foi estuprada por mais de trinta homens, sendo ao menos um deles conhecido da garota, pois era o seu namorado. Outros dois estupros ocorreram na mesma semana. No dia 20, uma garota de 17 anos, de Bom Jesus (PI), foi estuprada por cinco homens – segundo a investigação, um deles seria próximo da garota. O outro se passou em uma escola em São Paulo. No dia 19, três garotos arrastaram e trancaram uma menina de 12 anos no banheiro masculino onde a estupraram.
Os crimes ocorridos, é importante que se diga, são parte da cultura do estupro. A cultura do estupro é, em termos gerais, a banalização e normalização desse crime pela sociedade que compactua e estimula essa cultura de diversas maneiras, por exemplo, quando objetifica as mulheres nos meios de comunicação, culpabiliza as vítimas, não vê problemas nos assédios que as mulheres sofrem diariamente nas ruas, incentiva os meninos desde criança a serem os “pegadores” e as meninas a aceitarem serem beijadas e tocadas à força por seus colegas, afinal isso é “bonitinho”, como dizem os pais na maioria das vezes.
A cultura do estupro, por sua vez, faz parte de um sistema maior, o patriarcado. E é esse sistema maior que reforça a cultura do estupro. O sistema patriarcal consiste na estrutura de pensamento que insiste no modelo de interação baseado na dominação dos homens sobre as mulheres. Nesse sistema de pensamento, o dominador/homem crê ser superior à dominada/mulher. A crença deriva dos discursos de validação da hierarquia histórica e culturalmente estabelecida, tal como o discurso, por exemplo, que define a mulher, dentre outros, como objeto do prazer masculino. Com esses discursos de validação da hierarquia o dominador procura justificar as atrocidades cometidas pelos homens às mulheres.
Dados oficiais mostram o quanto a cultura do estupro está fortemente presente na sociedade brasileira, não nos esqueçamos da pesquisa realizada pelo IPEA, divulgada em 2014, “Tolerância social à violência contra as mulheres”, na qual 58,5% dos entrevistados colocavam a culpa na vítima do estupro justificando que, se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros. Essa tentativa de livrar os homens da culpa é intolerável. Primeiro, a culpa nunca é da vítima; segundo, o estupro não tem e não pode ter justificativa; terceiro, casos de estupros às mulheres ocorrem nas mais diversas situações, ocorrem dentro de casa, da universidade, da escola, nas ruas, em bairro ricos, de classe média ou populares. Eles ocorrem independentemente do tipo de roupa que as mulheres estejam usando ou do comportamento delas. No ano de 2014, de acordo com o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram registrados 47.646 casos de estupros no Brasil. Mas esse número pode ser ainda mais aterrorizador se considerarmos a nota técnica “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, que sugere, a partir da pesquisa do IPEA já mencionada, que somente 10% dos casos são registrados e que haja anualmente 527 mil tentativas ou caso de estupros consumados no país, o que significa que os dados apresentados. Ainda segundo a nota técnica, 15% dos estupros são coletivos, ou seja, os casos acima estão longe de serem isolados.
Diante desse quadro de extrema violência às mulheres, temos outro que é desanimador: o quadro político conservador brasileiro. O Congresso Nacional tem se mostrado extremamente misógino e avesso às políticas para as mulheres. A conhecida bancada “bbb (bancada da bíblia, boi e bala)” tem apresentado projetos de lei que são verdadeiros retrocessos em termos de políticas públicas e de direitos humanos para as mulheres. Exemplo evidente disso é o Projeto de Lei 5.069 apresentado pelo deputado Eduardo Cunha e aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, em outubro de 2015. A proposta dificulta o atendimento nos serviços públicos de saúde às mulheres que escolherem interromper uma gravidez decorrente de estupro. Isso porque os médicos serão proibidos de fornecer atendimento e informações para as vítimas. A vítima terá que provar por meio de boletim de ocorrência ou exame de corpo de delito que houve estupro. Esse projeto de lei não só retira um direito fundamental como faz coro à cultura do estupro ao culpabilizar a vítima.
Em uma sociedade conservadora como a nossa é quase certo que a mulher que sofre estupro ou tentativa irá pensar muitas vezes se vale a pena ou não denunciar. As razões pelas quais as mulheres vítimas de estupro não denunciam são inúmeras: medo por denunciar o estuprador e ter a própria vida ou de seus familiares ameaçada; medo de ouvir que é ela, a vítima, a culpada; e a sensação de impunidade e de normalização desse crime que afasta as vítimas dos órgão oficiais. Sabemos que falta no Estado estrutura tanto física quanto de pessoas preparadas para tratar o crime de estupro e das demais violências contra as mulheres. Veja-se o caso do delegado, afastado da investigação do crime ocorrido com a adolescente no Rio de Janeiro, que declarou após ouvir e ver os vídeos não ter certeza de que havia ocorrido um estupro. É a cultura do estupro presente nas declarações dos representantes do Estado.
A cultura do estupro, como um subproduto do patriarcado, não terá fim enquanto a culpa for colocada na mulher; não houver punição para os estupradores; tivermos representantes do alto judiciário conivente com o estupro e com o estuprador – como é o caso do ministro Gilmar Mendes que em 2009 livrou da prisão o estuprador Roger Abdelmassih, condenado por estuprar 52 mulheres e abusar sexualmente de outras dezenas; tivermos um ministro da Educação (Mendonça Filho) que convida para ouvir sobre a pasta o ator Alexandre Frota que declarou em rede nacional ter estuprado uma mãe de santo; tivermos um presidente misógino, como é o caso do Michel Temer, que acabou com os ministérios das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos.
Precisamos acabar com a cultura do estupro e com a cultura da violência contra as mulheres e podemos começar com a educação, um processo mais longo, sei, porém com resultados mais sólidos. Mas a educação deve ser de outro tipo. Precisamos de uma educação que ensine para os meninos, desde crianças, que o corpo da mulher não é objeto, que ele não existe para ser violado e para ser agredido. Precisamos de uma educação onde o respeito ao outro seja ensinado. Precisamos de uma educação mais amorosa.
Vânia dos Santos Silva é pesquisadora de Estudos Clássicos na Universidade de Coimbra. E-mail: [email protected].