A pós-graduação brasileira e o BBB
À medida que as políticas de austeridade e de destruição do Estado são colocadas em prática, o quadro da pós-graduação se deteriora ainda mais, uma vez que os cortes orçamentários na Educação impactam diretamente a oferta de bolsas, editais e demais recursos
Uma nova onda tomou o Brasil no início de fevereiro. Ou melhor, uma velha onda que se apresenta como nova a cada começo de ano, ao longo das duas últimas décadas. Na virada para o século XXI, a Rede Globo apostaria em um reality-show de magnitude tal que, com um formato muito bem-sucedido, mas incorporando novas ideias a cada ano, chegou a sua vigésima primeira edição. Os números são estratosféricos: cerca de 150 milhões de pessoas acompanham o programa, um grande evento midiático que atende pelo slogan “a casa mais vigiada do Brasil”.
Não pretendo entrar na disputa do elogio ou da condenação do programa, muito embora, acho de bom tom algumas considerações que dizem respeito ao lugar de onde eu parto para escrever esse texto: o dentro da academia, uma vez que sou uma pesquisadora vinculada a um programa de Pós mas, paradoxalmente, também o fora da academia, visto que minha posição é tão instável quanto a de qualquer pesquisador ou pesquisadora que ainda não tenha garantido uma vaga permanente em um concurso. Como bolsista de uma agência de fomento que me permite realizar um pós-doutorado em um programa de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) até o ano que vem, meu interesse é específico, mas também atento ao que meus colegas e pares têm a dizer sobre o assunto.
Experimentei um certo incômodo em reiterar falas recentes sobre a questão da alienação promovida pela Rede Globo e o BBB, um discurso requentado que esteve muito em voga na boca de certa intelectualidade de esquerda do século passado, ao criticar fenômenos da cultura de massas como o futebol, o carnaval ou as novelas. Recair nessa velha seara, de quem olha para o mundo a partir de um olhar que se supõe superior e esclarecido – aliás, o velho esclarecimento – não está em questão nesse texto. Uma colega filósofa escreveu no ano passado: a crise é a hora da filosofia. E se a filosofia não tem algo a dizer sobre um problema da cultura, talvez ela não possa ser chamada de pensamento filosófico. Para contribuir com esse debate, penso então que esta edição do BBB, além de suscitar muitas reflexões, pode ajudar na discussão sobre a situação da pós-graduação no Brasil.
Nas últimas edições, o BBB mesclou pessoas “comuns” e pessoas que já gozavam de uma vida pública. No programa atual, entre rappers famosos, atrizes, atores, comediantes e influencers, foi selecionado para compor o grupo de brothers e sisters um doutorando do curso de Economia da Universidade Federal de Pernambuco. Nascido em Jaboatão dos Guararapes, Gilberto Nogueira é um homem negro e gay. Com sua participação na casa, já arrematou um séquito de fãs, bolsistas em programas de pós-graduação como ele, para apoiá-lo a chegar na final e levar o prêmio.
Não há um só dia em que o grupo de Facebook “Bolsistas Capes” – comunidade com 71 mil membros – não esteja abarrotado de postagens sobre a participação de Gilberto no BBB. De memes, passando por discussões sobre o modo que o doutorando está conduzindo seu personagem dentro da casa – porque trata-se, antes, de uma performance, uma fabulação sobre si – até as razões que levam uma pessoa, no meio de um doutorado, a ficar confinada por três meses sem qualquer possibilidade de lidar com a pesquisa a qual se dedica depois de passar por um concorrido processo seletivo. Porém, a intenção não é discutir apenas um caso singular, mas ampliá-lo para pensar um problema geral. Há algo mais subterrâneo quando o assunto é entender o contexto sócio-político e econômico da pós no Brasil, sobretudo no período de um governo abertamente contra a educação, a ciência e a pesquisa. E o candidato do BBB, assim como o que se escreve no grupo de bolsistas, é um sismógrafo.
Atualmente, parece haver um desencanto generalizado com a pós-graduação brasileira que vem sendo noticiado por esse grupo enorme de indivíduos que se encontra no caminho entre a Iniciação Científica e o Pós-doutorado: problemas financeiros e desemprego; medicações, doenças psíquicas e pensamentos suicidas; ausência total de horizontes e perspectivas, com o desmonte das universidades, o sucateamento dos programas de pós-graduação e a diminuição criminosa do orçamento das pastas de Educação e Ciência e Tecnologia que, desde o governo Temer até a gestão Bolsonaro, se materializam em cortes drásticos de verba. À medida que as políticas de austeridade e de destruição do Estado são colocadas em prática, esse quadro se deteriora ainda mais, uma vez que os cortes orçamentários na Educação impactam diretamente a oferta de bolsas, editais e demais recursos. Aliás, muitos trabalham sem receber nada. Mesmo diante desse cenário tenebroso que nada tem a ver com a competência deste ou daquele pesquisador em particular, a sensação de que se é um impostor que nunca está fazendo o suficiente ara evitar o próprio fracasso faz parte do dia-a-dia de muitos indivíduos.
Assim, motivada pelo caso de Gilberto, a pergunta não é, portanto, porque um doutorando resolve se inscrever no BBB, mas porque ninguém tinha pensado nisso antes. Ou ainda: por que alguém resolve apostar na carreira acadêmica, com seu mínimo de 10 anos de formação, no Brasil de 2021? Um tweet foi comentado por centenas de bolsistas: “O cara fez doutorado e a chance dele mudar de vida era entrar no BBB21”. Talvez, em uma hipótese, poderemos pensar que o BBB metaforiza e espelha o próprio percurso egocêntrico e individualista do jogo acadêmico, onde são cada vez mais raros os indivíduos que, após passar por sucessivas etapas, conseguem vagas, aprovações ou bolsas de produtividade. Não à toa, foi também comum ler que Gilberto já estaria preparado, fazendo referência ao livro de Paula Sibilia sobre a relação entre intimidade e espetáculo, para o tal “show do eu” do confinamento, já que estaria acostumado com a rotina narcisista da academia.
Diante do contexto desesperador que estamos vivendo, entrar em uma seleção anual para disputar um prêmio com 20 pessoas parece, aos olhos de muitos que estão sendo estrangulados por um processo desgastante e por uma instituição que não os ama nem os acolhe, uma solução mais sensata do que enfrentar os anos na academia, com sua lógica neoliberal e exigências absurdas de produtividade sem qualquer garantia, financeira ou emocional.
Sem vínculos em instituições, muita gente se vê à deriva, sem qualquer proteção, mesmo por parte dos maiores beneficiadores do trabalho desenvolvido nas universidades brasileiras. A pandemia veio para mostrar com clareza esse vínculo insuspeito entre o que se produz para além dos muros da universidade e o fora. Uma vacina é, certamente, parte desse mesmo aparato e podemos afirmar que: se alguma substância está chegando hoje na pele da população, isso também se deve ao trabalho de milhares de pesquisadores de Iniciação Científica, mestrado, doutorado, pós-doutorado que trabalharam e acompanharam os estudos ao redor do globo, muitos deles em laboratórios privados, mas dependentes da associação com instituições de ensino ou de pesquisa. No Brasil, o Instituto Butantã e a Fiocruz são fundamentais para produção desses insumos e, se ainda é possível uma vacina gratuita, isso se deve também à existência das universidades públicas que, a despeito de inúmeros problemas estruturais, ainda mantem uma vocação ética por zelar.
A precarização é tal que, para perseguir a vontade de integrar um quadro universitário, nos enfiamos cada vez mais em seleções penosas e extremamente concorridas, processos custosos, disputados por centenas de candidatos, muitos dos quais continuarão desempregados. São pessoas cuja qualificação é altíssima e mesmo com um currículo robusto, permanecerão sem vínculo empregatício, nenhuma garantia de sustento ou possibilidade de definir planos e pensar em estabilidade.
Não sabemos quem será o ganhador do BBB21. Há quem aposte alto no doutorando, sorridente e feliz, Gilberto. Há quem se espante como alguém inscrito em uma pós-gradução brasileira esbanje saúde mental, como alguns colegas do grupo de bolsistas escreveram. Há quem, como eu, teme encontrar Gilberto daqui a cinco anos, caso ele não leve o prêmio pra casa, diante da sensação sufocante de que a escolha pela carreira universitária não valeu a pena. Ainda que as notícias recentes sejam, inclusive, de que ele teria sido laureado com uma bolsa no exterior, para estudar em importantes instituições dos Estados Unidos. Para além dessas celebradas oportunidades, que se tornam cada vez mais raras e inatingíveis, o discurso da angústia com as agruras da Pós, sobretudo para aqueles que jamais poderiam chegar até ali até algumas décadas atrás, vem se tornando cada vez mais audível. Pesquisadores deprimidos, ansiosos, presos em um círculo infernal de culpa e punição, não são mocinhos ou vilões de um reality. Na dinâmica da rotina acadêmica, em sua implacável realidade, é preciso que as universidades e instituições de pesquisa escapem das amarras do neoliberalismo, comprem essa briga e comecem a se responsabilizar por todos aqueles que trabalham incansavelmente para mantê-la de pé.
Juliana de Moraes Monteiro, pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ como bolsista FAPERJ Nota 10.