A praga da arbitragem internacional
Julgada em 19 de janeiro em última instância como fraudulenta, a arbitragem criada para beneficiar o empresário francês Bernard Tapie deixa sob suspeita tais mecanismos judiciais. Porém, na escala do comércio internacional, esses procedimentos impõem-se no mundo todo, em favor exclusivamente das transnacionaisMaude Barlow e Raoul Marc Jennar
O que é metilciclopentadienil manganês tricarbonil (MMT)? Um aditivo utilizado pela indústria petrolífera na gasolina sem chumbo a fim de aumentar o desempenho de motores de combustão interna. A empresa norte-americana Ethyl (que em 2004 ganhou o nome de Afton Chemical) produz esse composto nos Estados Unidos e em seguida o exporta para uma de suas instalações canadenses, onde é misturado e depois vendido para as refinarias do Canadá e do resto do mundo. No início de abril de 1997, em Ottawa, o Parlamento canadense examinou um projeto de lei que visava proibir a importação e o transporte desse produto – uma neurotoxina proibida em muitos países, incluindo os Estados Unidos. De acordo com diversos especialistas, o manganês concentra-se no cérebro e pode causar doenças neurodegenerativas graves; já segundo vários fabricantes de automóveis, o MMT danifica os motores, entupindo-os.
Avaliando que o debate parlamentar ameaçava sua reputação, a Ethyl declarou a intenção de processar o Canadá, com base no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), em vigor desde 1994. O tratado oferece a qualquer investidor a possibilidade de submeter a um mecanismo de arbitragem privado um Estado cuja decisão afete seu investimento. O Parlamento ignorou a ameaça e aprovou a lei, em junho de 1997. Quatro dias depois, a Ethyl exigiu US$ 251 milhões por “desapropriação indireta”. Em julho de 1998, o governo canadense preferiu transigir e pagar US$ 13 milhões à companhia. Ele revogou a lei, explicando que a nocividade do aditivo não está demonstrada. A vontade de um Parlamento eleito e de um Executivo nacional foi reduzida a nada pelo poder conferido a uma empresa privada, nos quadros de um procedimento que escapa ao direito comum, e confiado a juízes “externos”.
Como se opera tamanho passe de mágica? A arbitragem é um método de resolver litígios privados fora das jurisdições oficiais. Em geral, há três árbitros: um representa o requerente, um segundo representa o réu e, de comum acordo, as partes escolhem o terceiro. Este é muitas vezes proposto por uma das instâncias arbitrais privadas, nacionais ou internacionais, que acolhem o procedimento, como a Câmara de Comércio de Estocolmo, o Centro Internacional para a Resolução de Conflitos sobre Investimentos, estabelecido em Washington – ligado ao Banco Mundial –, e a Câmara de Comércio Internacional (CCI), sediada em Paris. Um mesmo árbitro pode assumir sucessivamente os três papéis. A arbitragem geralmente não está sujeita a apelação.
Serão em breve as comunas francesas, ou as regiões alemãs, os alvos de empresas norte-americanas movidas por intenções tão humanitárias como as da Ethyl? Com certeza é o que desejam os negociadores do Grande Mercado Transatlântico (GMT, também conhecido pelas siglas inglesas TTIP e Tafta), atualmente em discussão.1 O artigo 23 do mandato conferido pelos governos da União Europeia à Comissão de Bruxelas para negociar esse tratado de livre-comércio com os Estados Unidos esclarece: “O acordo deve almejar a inclusão de um mecanismo de resolução de litígios entre investidor e Estado eficiente e moderno, garantindo a transparência, a independência dos árbitros e, tal como previsto pelo acordo, incluindo a possibilidade de as partes aplicarem uma interpretação vinculativa do acordo”. O artigo 32 estende a competência de tal mecanismo para as áreas sociais e ambientais; o artigo 45, a todas as matérias abrangidas pelo mandato. Além disso, o artigo 27 precisa: “O acordo será obrigatório para todas as instituições que tenham poder de regulação e outras autoridades competentes de ambas as partes”. Desse modo, decisões tomadas por comunas, departamentos e regiões, cujo poder de regulação é garantido pelo artigo 72 da Constituição da República Francesa, poderiam ser contestadas em câmaras de arbitragem.
Uma vontade tão ostensiva de esmagar os tribunais oficiais sob o martelo dos interesses privados não pode passar despercebida. Assim, a perspectiva de ver os procedimentos da Resolução de Diferenças entre Investidores e Estados (RDIE, também conhecida na sigla em inglês como ISDS) definirem o direito no lugar dos tribunais provocou ampla mobilização europeia.2 A dúvida assaltou até os defensores do GMT. Em muitos países, resoluções parlamentares – sem efeitos jurídicos – exigiram a retirada da RDIE da negociação. Preocupada que os parlamentos nacionais se recusem a ratificar o acordo a fim de evitar as câmaras de arbitragem, em setembro de 2015 a Comissão Europeia propôs um novo mecanismo.3
Esse sistema seria composto por uma câmara de primeira instância e um tribunal de apelação. As decisões seriam definidas não por árbitros, mas por juízes “altamente qualificados”, como os magistrados do Tribunal Internacional de Justiça. A capacidade de os investidores acionarem essa corte seria alvo de definições precisas, e o direito de regulação dos Estados seria consagrado e protegido. Mas o viés fundamental permanece: somente os investidores podem abrir processos, não as coletividades.
Essa inflexão de última hora é surpreendente. Foi a própria Comissão que propôs introduzir os artigos sobre a RDIE no mandato europeu. Antes de perceber sua toxicidade, Bruxelas estava tão encantada com a arbitragem que a exigiu – sem que ela estivesse lá no princípio – na negociação do tratado de livre-comércio com o Canadá e fez o mesmo em relação ao projeto de acordo sobre o comércio de serviços, uma negociação secreta em curso.4 A reviravolta mostra a que ponto a exposição pública dos detalhes do GMT, tornada possível por meio da mobilização, atrapalha as instituições europeias.
Para ir além de um verniz formal, a proposta apresentada pela comissária europeia do Comércio, Cecilia Malmström, deveria receber o aval dos Estados Unidos, que está longe de ser alcançado, e de todas as organizações privadas envolvidas nesse sistema. Isso implicaria a convocação de uma conferência internacional reunindo todos os atores da arbitragem. Esse mecanismo privado não diz respeito apenas ao GMT, mas a todos os acordos de comércio e investimentos celebrados pela União Europeia com países terceiros, a começar por aquele assinado – mas ainda não ratificado – pelo Canadá.
Não faltam argumentos para uma revisão completa do sistema. Em primeiro lugar, as decisões dessa “justiça” arbitral não respeitam a legislação nacional normalmente aplicável em um tribunal estatal. É precisamente o desejo de escapar aos tribunais nacionais que fundamenta o recurso a essa justiça privada. Segundo o professor de Direito Emmanuel Gaillard, a arbitragem confere às partes “a liberdade de preferir uma forma privada de resolução de litígios à justiça estatal, de escolher seu juiz, forjar o procedimento que lhes parecer mais adequado, determinar as regras do direito aplicáveis ao litígio – inclusive normas alheias a um sistema jurídico determinado – e a liberdade de os árbitros pronunciarem-se sobre sua própria competência, fixar o desenrolar do processo e, no silêncio das partes, escolher as normas aplicáveis ao mérito do litígio”.5
“Os Estados nunca vencem”
É compreensível que esse procedimento tenha se tornado o instrumento preferido das empresas privadas que desejam manter seus investimentos em segurança. Ele ganhou forma em diversas convenções internacionais adotadas pelos Estados desde 19236 e sobretudo por uma série de regulamentações elaboradas no âmbito de organizações privadas, como o Tribunal Permanente de Arbitragem em Haia, o Tribunal de Arbitragem Internacional de Londres, a Câmara de Comércio Internacional e as câmaras de comércio nacionais.
Pouquíssimo utilizada até a segunda metade do século XX, essa justiça privada desenvolveu-se após o grande movimento de descolonização das décadas de 1950 e 1960, à medida que os países ocidentais foram estabelecendo acordos de livre-comércio com suas ex-colônias. Segundo o Instituto Jacques Delors, trezentas das 568 queixas identificadas desde a criação do primeiro tribunal arbitral até 2013 são de países europeus.7
Com a criação, em 1995, da Organização Mundial do Comércio (OMC), surgiu uma nova geração de acordos de livre-comércio. Sob as regras da OMC, tratava-se não apenas de aplainar tarifas aduaneiras, mas também de derrubar as “barreiras não tarifárias”: tudo aquilo que, na Constituição ou na legislação de um Estado, pudesse ser visto como um “obstáculo desnecessário” à concorrência.
Retomadas em todos os tratados de livre-comércio desde 1994, as regras da OMC impõem ao Estado que venha a receber um novo investidor estrangeiro a obrigação de tratá-lo da mesma forma como se tratam os investidores – estrangeiros ou nacionais – que gozem do tratamento mais favorável. Isso significa colocar em pé de igualdade investidores privados e empresas ou serviços públicos. Qualquer companhia privada deve receber o mesmo tratamento, por exemplo, que um operador público atuante na área da saúde, da educação, da cultura, da agricultura, do meio ambiente. Para resolver eventuais litígios, os tribunais oficiais são despojados de suas competências em favor de uma RDIE. Dos 3,2 mil tratados bilaterais de investimento, 93% incluem um capítulo que dá acesso à justiça privada.8
Segundo seus defensores, a arbitragem seria um procedimento independente, discreto, rápido, barato, vinculativo e definitivo. A proteção assim concedida aos investidores estimularia poderosamente a “atratividade” da economia. Mas esses benefícios não são assim tão evidentes. Em primeiro lugar, há fortes suspeitas de conflito de interesses que mancham as decisões: os árbitros não estão sujeitos a nenhum código de ética. Quanto à discrição do procedimento, melhor seria falar em opacidade, inclusive e sobretudo quando a questão afeta diretamente o interesse público.9 A rapidez da decisão não se observa na prática: a queixa da Philip Morris contra a Austrália em 2011, a da Vattenfall contra a Alemanha em 2012, a da Lone Pine Resources contra o Canadá em 2012 e a da Veolia contra o Egito em 2012 ainda não tinham sido resolvidas em outubro de 2015.10 E há muita gente apostando que a decisão arbitral vai demorar vários anos! Já falar em vantagens financeiras da arbitragem em comparação à justiça convencional é uma piada, tão elevados são os honorários dos árbitros (em média US$ 1 mil por hora) e o custo dos procedimentos – o que tem o efeito de reservar esse mecanismo às grandes transnacionais. Por fim, o caráter definitivo da decisão tomada faz da RDIE uma instituição arbitrária, uma vez que não é possível corrigir erros de direito nem erros de fato.
Ao contrário do mito de que essas instâncias costumam dar razão aos Estados, 60% dos casos julgados sobre o mérito (e não sobre a competência do tribunal) nos quadros de uma RDIE deram resultado favorável às empresas privadas. “Como reconhecem muitos observadores, os Estados nunca vencem. Eles podem, na melhor das hipóteses, não perder. Apenas os investidores recebem indenizações por perdas e danos, enquanto os Estados recebem no máximo um reembolso dos custos.”11
Além de tudo isso, vários estudos – entre eles os do Banco Mundial e da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) – já demonstraram que não é possível estabelecer uma ligação estatística entre os tratados bilaterais que contam com um mecanismo de arbitragem privado e o aumento do volume de investimentos. Simetricamente, a ausência desse mecanismo também não provoca uma transferência de investimentos para os Estados que o aceitem.12 Assim, desmorona o argumento liberal de que a arbitragem reforçaria a atratividade de um país aos olhos dos investidores estrangeiros.
*Maude Barlow e Raoul Marc Jennar são, respectivamente, presidenta do Council of Canadians (Canadians.org/fr) e autora do relatório “Fighting TTIP, CETA and ISDS: Lessons from Canada” [Lutando contra TTIP, Ceta e RDIE: lições do Canadá]; e ensaísta e autor de Le Grand Marché transatlantique. La menace sur les peuples d’Europe [O Grande Mercado Transatlântico. A ameaça aos povos da Europa], Cap Bear, Perpignan, 2014.