A prioridade da esquerda não é “voltar às bases”
As transformações contemporâneas no capitalismo estão a desafiar a luta social: a hipercentralização da propriedade capitalista em agentes financeiros
A constatação de que há uma crise na esquerda não é nova; já dura pelo menos um par de décadas, assim como a identificação de qual seria a sua principal explicação: o distanciamento e o descolamento em relação aos setores populares e à organização das lutas sociais. Sem dúvida, assistimos por toda parte, e, em particular, no Brasil, a um processo de institucionalização dos setores progressistas. A trajetória do Partido dos Trabalhadores é emblemática nesse sentido.
Porém, há que se reconhecer que o descolamento das “bases” é mais efeito do que causa do emparedamento da esquerda. A crise no campo progressista é, antes, uma crise de horizonte, de projeto político.
O “voltar às bases” depende, inicialmente, do reconhecimento dessa falta de horizonte. Ninguém ignora que são várias as formas atuais de revolta, mais ou menos organizadas, das grandes massas exploradas no Brasil. Contudo, a fim de que tais manifestações de revolta ganhem um sentido político maior, na direção do questionamento das estruturas de dominação e exploração, é importante que avancemos na compreensão sobre como o capitalismo está organizado na contemporaneidade.
O argumento aqui é o de que a carência de horizonte político se relaciona diretamente com a falta de clareza, de entendimento mesmo, sobre as formas atuais da dominação capitalista. Desde a chamada redemocratização do país, houve um vácuo na produção de conhecimento e pensamento sobre o capitalismo brasileiro, algo que somente na última década tem se buscado preencher, ainda que de modo insuficiente.
As estratégias da esquerda sempre se pautaram pela compreensão da dinâmica da acumulação capitalista e suas correlatas formas de dominação política em cada momento histórico. Basta lembrar a distinção que Antônio Gramsci faz entre “guerra de movimento” e “guerra de posição” para diferenciar as estratégias de luta pelo socialismo na passagem do século XIX para o XX, respectivamente, devido à complexidade assumida pelas “sociedades ocidentais” capitalistas.
Pois bem, o capitalismo, a despeito de continuar sustentado na intensa exploração do trabalho pelo capital, passou por profundas transformações na passagem do século XX para o XXI, que não foram, a nosso juízo, devidamente e suficientemente compreendidas. Os avanços nos diagnósticos sobre as mudanças no mundo do trabalho não ocorreram da mesma forma nas análises sobre as estruturas da propriedade capitalista e suas formas contemporâneas de dominação política.
Algo indispensável para a construção de estratégias de luta no campo da esquerda. Se a prioridade é resgatar o horizonte político da esquerda, postulamos que, para tanto, haja clareza quanto aos desafios postos pelo atual estágio do desenvolvimento capitalista, não apenas do lado do trabalho, mas também do capital.
Nos limites deste artigo, destacamos como as transformações contemporâneas no capitalismo estão a desafiar a luta social: a hipercentralização da propriedade capitalista em agentes financeiros, que estaria, paradoxalmente, desfazendo a separação, forjada pelo próprio capitalismo, entre economia e política, mercado e Estado. Estaríamos assistindo hoje a uma absorção, quase que total, da política pela economia, em que, de um lado, o Estado capitalista se estrutura e age como empresa e, de outro, grandes grupos privados assumem, abertamente, “poder de Estado”.
Exemplo disso é a atuação de grupos financeiros na prestação de serviços públicos essenciais privatizados, como nos casos da educação, saúde, saneamento, energia, transporte, previdência etc. A lógica financeira que preside tais grupos supõe o aparato estatal como garantidor da máxima rentabilidade para seus acionistas. O direito público tem aí sua validade operativa neutralizada em favor do direito corporativo.
Ao mesmo tempo, as mesmas instituições financeiras controladoras de tais grupos atuam no direcionamento do sistema financeiro nacional, seja por meio da incidência direta na política monetária e fiscal, seja pela regulação do mercado de capitais. Como é sabido, a definição da taxa básica de juros, que tem estrangulado há décadas o gasto público, pauta-se por projeções feitas por esses mesmos agentes financeiros.
Ilustrativo também do “poder estatal” assumido por tais agentes é o caso da “associação civil, sem finalidade econômica” ANBIMA – Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais, dirigida pelos oligopólios financeiros. A ANBIMA vem assumindo, desde a crise de 2008, poderes regulatórios crescentes sobre o mercado de capitais, em detrimento da CVM – Comissão de Valores Mobiliários, órgão público formalmente responsável por essa regulação.
No que tais mudanças implicariam, então, para a recuperação do horizonte político da esquerda? Se o diagnóstico da absorção da política pela economia estiver correto, isso significa que o horizonte da luta social não pode mais se limitar a incidir somente sobre o aparato estatal, até porque, como já foi dito, ele assume cada vez mais uma feição empresarial. O horizonte político precisa se alargar, no sentido de abarcar a grande propriedade capitalista, ou seja, a contestação e o controle social devem alcançar, diretamente, a classe proprietária dos grupos financeiros.
Como isso se traduziria em termos práticos, em ação estratégica para a esquerda? Para uma tentativa de resposta, recorremos a mais um exemplo. A maior vencedora dos leilões de privatização do saneamento realizados após a mudança no marco do saneamento em 2020, tem sido a AEGEA, que tem entre os seus controladores o Banco Itaú. A AEGEA presta serviço de saneamento, atualmente, para mais de 30 milhões de brasileiros.
A concessionária Águas do Rio, controlada pela AEGEA e a maior vencedora do leilão de privatização da CEDAE, ocorrido em abril de 2021, acumula milhares de reclamações por abuso econômico, além de apresentar baixíssimo investimento em áreas de periferia e favela. Ao mesmo tempo, a concessionária está comprometida em pagar um montante de dividendos aos acionistas equivalente a 78% do seu lucro líquido[1].
Neste caso, não caberia aos que defendem o direito humano à água e ao saneamento limitarem a sua luta apenas aos órgãos públicos competentes, mas também agirem sobre a própria AEGEA e seus acionistas, exigindo prestação de contas e uma efetiva ampliação e melhoria do serviço. Alguém poderia lembrar que a concessionária, no caso, obedece ao que está previsto no contrato de concessão e que se deveria, então, cobrar do poder público a eventual revisão contratual ou, no limite, a sua judicialização.
Mas, se a linguagem contratual é um típico instrumento de mercado, característico das relações comerciais e que tem moldado o Estado à imagem e semelhança de uma empresa, precisaremos ir além dos contratos. Esses que servem, na verdade, de blindagem aos interesses privados. Neste momento mesmo, a Águas do Rio assinou um termo de conciliação com o Governo do Estado e a sua agência reguladora (AGENERSA), revendo termos do contrato que a favorecem ainda mais[2].
O confronto direto com a classe proprietária destes grupos financeiros seria, portanto, condição necessária para que a luta dos setores populares seja capaz de restaurar, em alguma medida, o poder político-institucional em favor do enfrentamento das desigualdades e da efetivação de direitos. Trata-se de uma estratégia incontornável para que se avance, de forma efetiva, na construção de um poder político comprometido com a classe trabalhadora e não com o grande poder privado.
“Voltar às bases” será, sim, prioritário, mas tendo a clareza contra o quê e porquê lutar.
João Roberto Lopes Pinto é professor de ciência política da UNIRIO e PUC-Rio e coordenador do Instituto Mais Democracia.
[1] PINTO, João Roberto L. “Formas contemporâneas da dominação política burguesa: o caso da
privatização do saneamento no Rio de Janeiro”. IN: Global Journal of Human Social Science. (F) XXIV, p.19-28.
[2] Ver em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/11/23/acordo-entre-governo-do-rj-e-aguas-do-rio-pode-gerar-aumento-extra-de-tarifas-para-2025-e-2026.ghtml