A produção do consentimento
É claro que a economia capitalista não hesita em lançar mão de formas perversas de superexploração, que lhe propiciam margens de lucro e taxas de acumulação do capital escandalosas. Mas não deixa de surpreender o fato de que essas formas sejam encaradas com absoluta “naturalidade”.
“[…] resistir à solapada deformação que a cotidianidade codificada vai montando na consciência […]” (Cortázar)1
No excelente artigo que publica nesta edição (“A máquina da desigualdade”), Tânia Bacelar afirma que um importante psicanalista lhe disse ter descoberto, em seu consultório, o grande problema da sociedade brasileira: “Somos herdeiros de quatro séculos de escravidão e menos de um século de libertação, e a visão dos que se situam no comando da sociedade ainda é a da escravidão, na qual o trabalhador é visto como alguém que existe para produzir”.
A idéia é instigante. Não só por trazer à luz ao menos um dos fantasmas interiores da elite local. Mas, principalmente, por mostrar como um fator subjetivo pode influenciar de maneira tão determinante a realidade objetiva. O mecanismo já foi estudado por historiadores de diferentes épocas, lugares e filiações teóricas. E sua dinâmica chega a ser óbvia quando pensamos em fenômenos como o da militância armada inspirada no fundamentalismo religioso. Mas há muitas outras — e mais sutis — manifestações.
Um exemplo infeliz aparece, também neste número, no artigo assinado pela conceituada geógrafa e demógrafa Louise Marie Diop-Maes (“África: as cicatrizes da escravidão”). Segundo estimativas de sua autoria, a África subsaariana teria, no século XVI, uma população total da ordem de 600 milhões de indivíduos. No início do século XX, o número havia caído dramaticamente para pouco mais de 130 milhões. Por força do tráfico escravista primeiro e da exploração colonialista depois, a África assumiu novas feições: a fome, as doenças e as guerras colheram as vidas de milhões de pessoas. Outras pereceram na brutalidade da captura, do transporte e do comércio de escravos. Ou, extenuadas, nas fazendas, minas e entrepostos coloniais. Depredou-se o meio ambiente, esfacelaram-se impérios ancestrais, populações inteiras foram deslocadas.
Todo esse processo teve, evidentemente, sua lógica econômica, ditada pelas necessidades materiais inerentes à colonização das Américas, pela estrutura e dinâmica do escravismo colonial2 e pela acumulação de capitais em escala global. Mas ele só pode se “legitimar” (se é que podemos utilizar tal palavra que, no contexto, soa como um verdadeiro insulto) diante da consciência européia por meio de uma perversa construção ideológica que negou ao negro sua própria humanidade. É estarrecedor que um período que produziu gigantes intelectuais da estatura de Isaac Newton (1642-1727)3 tenha podido conviver tranqüilamente com a escravidão. No entanto, aberrações semelhantes continuam a ocorrer debaixo dos nossos olhos, sem que muitas vezes sequer as percebamos.
O véu da ideologia obstrui nossa visão. Senão, qual seria a explicação para o fato de que a força de trabalho das mulheres ainda valha menos que a dos homens no mercado? Note-se que não estamos falando da capacidade muscular, necessária à realização de tarefas rudes, cada vez menos valoradas e relevantes nas sociedades modernas, mas de uma força de trabalho geralmente mobilizada na execução de tarefas mais sutis, para as quais a habilidade feminina não raro supera a masculina.
É claro que a economia capitalista não hesita em lançar mão de formas perversas de superexploração, que lhe propiciam margens de lucro e taxas de acumulação do capital escandalosas. Mas não deixa de surpreender o fato de que essas formas sejam encaradas com absoluta “naturalidade”.
O fenômeno torna-se menos surpreendente, porém, quando nos damos conta de que existe toda uma indústria de produção da invisibilidade e do consentimento. A linha de montagem começa nas instituições multilaterais, notadamente o Banco Mundial, passa pelos “centros de excelência” de reputadas universidades norte-americanas e européias e se propaga, em etapas sucessivas, até atingir as mais descartáveis mercadorias das corporações da mídia e do entretenimento. Segundo uma estimativa de Silvio Caccia Bava, uma “verdade” fabricada no início dessa cadeia leva de dois a três anos para virar “consenso” na grande mídia brasileira4.
Contra esse consenso, que é também um pacto de silêncio, a “sem-terra” Janaína Stronzake ergue sua voz indignada, no artigo “As guerreiras do MST”, o primeiro dos três que compõem nossa principal chamada de capa (“Mulheres de Luta”).
Para este jornalista, com trinta anos de profissão, é uma honra e um prazer editar material de tal relevância.
*José Tadeu Arantes é jornalista, foi editor de Le Monde Diplomatique Brasil entre agosto de 2007 e agosto de 2008.