A produção social de vulnerabilidade urbana
Em que pese a importância das melhoras inegáveis nas condições de vida nas cidades brasileiras, ainda que insuficientes, é preciso considerar a persistência de problemas estruturais que geram precariedades, desigualdades e vulnerabilidades nos espaços urbanosKazuo Nakano
Em 2011,a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001) completa dez anos, após treze de tramitação no Congresso Nacional. Todo esse processo foi acompanhado por ampla mobilização social desde o início da Assembleia Constituinte em 1987. Contudo, a sua implementação nos municípios brasileiros ainda deixa muito a desejar.
E como a implementação do Estatuto da Cidade deve ocorrer? Por meio dos planos diretores instituídos por lei municipal. Por diversas razões técnicas e políticas, muitos desses planos diretores permanecem no papel e não tornam realidade o cumprimento da função social das cidades e propriedades urbanas. Ainda não temos processos permanentes e consistentes de planejamento e regulação territorial que promovam formas justas, democráticas e sustentáveis de uso e ocupação do solo. O que pensar diante desse estado da arte da política urbana nacional?
Paradoxalmente, as cidades brasileiras nunca precisaram tanto de políticas, ações, investimentos e regulações públicas capazes de controlar e limitar a apropriação predatória e excludente das terras urbanas e rurais. A permanência desse modo de apropriação do solo ainda gera muitas situações de exclusão e vulnerabilidades socioterritoriais que expõem grupos populacionais a diferentes tipos de riscos, perigos e ameaças.
Boa parte dos espaços das cidades, nos quais vive mais de 80% da população nacional, ainda se coloca como meio ambiente construído com níveis variáveis de contaminação das águas e do ar, com moradias populares insalubres, com várias áreas de risco e altos déficits de espaços públicos e equipamentos comunitários com boa qualidade. Se todos esses espaços contassem com os benefícios requeridos pela vida urbana, constituiriam dispositivos potenciais capazes de promover uma mais justa distribuição de riquezas coletivas para todos e não beneficiariam somente os mais ricos. Um país rico deve, sim, ser um país sem miséria, mas deve também ser um país com cidades seguras, saudáveis, equitativas, democráticas e que propiciem o desenvolvimento das melhores capacidades humanas.
ALGUNS AVANÇOS
Nas duas últimas décadas, as condições de vida nas cidades brasileiras tiveram melhoras inegáveis, ainda que insuficientes em diferentes aspectos. Sinais dessas melhoras podem ser vistos no aumento da rede de distribuição de água, apesar de a maioria da população viver sem acesso a soluções adequadas para a coleta e destinação final de esgotos e resíduos sólidos. Esse descompasso no saneamento ambiental faz com que rios, córregos e represas localizados em áreas urbanas sejam contaminados por grande quantidade de lixo e efluentes líquidos, prejudicando os mananciais hídricos, a qualidade de vida e a saúde coletiva. Outros sinais dessas melhoras podem ser vistos também no aumento da oferta de serviços e equipamentos básicos de educação, saúde e assistência social, distribuídos em diversas regiões do país. Entretanto, em muitos lugares essa ampliação da cobertura não traz boa qualidade na prestação desses serviços públicos essenciais.
Podemos creditar essas melhoras também aos efeitos benéficos trazidos pela retomada do crescimento econômico, pela subida no valor do salário mínimo, pela geração de empregos formais em diferentes setores econômicos e pelos programas de transferência de renda que elevam, ainda que timidamente, os níveis de renda dos grupos sociais mais pobres. Com isso nota-se pequena redução nas desigualdades sociais e um aumento na capacidade de consumo da população, que ocasiona certa expansão no mercado interno do país. O que é impulsionado também pelo crescimento na oferta de créditos em instituições financeiras públicas e privadas. Entretanto, é preciso diferenciar o consumidor do cidadão. Em muitos lugares, o aumento na capacidade de consumo não se traduz na concretização da cidadania e dos direitos sociais previstos em nossa Constituição Federal.
Ademais, o consumo desenfreado eleva a quantidade de resíduos sólidos que sobrecarregam os lixões (ilegais) e aterros sanitários, cujos efeitos deletérios perduram por muito tempo depois da sua desativação. Grandes quantidades de materiais recicláveis, com bom valor econômico, são perdidas nesses locais. Tal problema aparece de modo mais grave quando se considera a insuficiência de iniciativas visando redução, reutilização e reciclagem na gestão desses resíduos. A expectativa é que a recente aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos consiga mudar esse quadro.
Em que pese a importância das melhoras inegáveis nas condições de vida urbana, ainda que insuficientes, é preciso considerar a persistência de problemas estruturais que geram precariedades, desigualdades e vulnerabilidades nas cidades brasileiras.
Problemas estruturais que impõem limites e bloqueios aos avanços nessas melhoras e, em médio e longo prazo, podem provocar retrocessos. São problemas diretamente relacionados aos padrões desiguais e predatórios de ocupação do solo urbano e rural por parte de agentes do mercado fundiário e imobiliário que operam em âmbitos formais e informais. São circuitos históricos sendo atualizados pela remercantilização de espaços urbanos capturados pelas lógicas contemporâneas de diferentes frações de capitais. Agentes do mercado imobiliário, altamente capitalizados com recursos obtidos no mercado financeiro, são favorecidos pela oferta de créditos públicos e privados para a produção e aquisição imobiliária. Circuitos da “financeirização” dos espaços urbanos também operam na implantação de grandes empreendimentos comerciais1 e de projetos urbanos voltados para a renovação de áreas degradadas em favor dos negócios imobiliários. Alguns desses projetos se aliam às estratégias dos grandes eventos culturais e esportivos.
Os investimentos públicos em serviços, equipamentos e infraestrutura urbana se associam a essas frações do mercado fundiário e imobiliário e se distribuem de modo desigual nos espaços das cidades, em detrimento das áreas produzidas irregularmente e ocupadas pelos mais pobres. Beneficiam os que podem pagar os altos preços dos terrenos e edificações urbanizados adequadamente. Os investimentos públicos em infraestrutura de saneamento básico, drenagem, iluminação pública e fornecimento de energia elétrica antecedem a ocupação e a instalação de atividades nesses espaços, que precisam ser também devidamente conectados com os sistemas viários, comércios e polos de emprego da cidade. Com efeito, são espaços bem servidos por áreas verdes e locais destinados a equipamentos comunitários.
Já nos espaços urbanos produzidos pelas frações informais do mercado fundiário e imobiliário, geralmente localizados nas periferias das cidades onde as terras são mais baratas, ocorre processo inverso. Nesses espaços apropriados pelos grupos com menor poder aquisitivo, a ocupação e a edificação ocorrem antes da construção e instalação dos atributos básicos da urbanização adequada. Em geral, a apropriação da terra ocorre irregularmente, à margem das normas e legislações urbanísticas. Os investimentos públicos em serviços, equipamentos e infraestrutura urbana básica ocorrem anos depois, às vezes décadas após a chegada dos moradores e de atividades não residenciais. Muitas vezes, esses investimentos são realizados pelo poder público como se fosse um favor, uma dádiva comumente retribuída com votos e fidelidade eleitoral.
Vale dizer que alguns espaços urbanos produzidos irregularmente, após se consolidarem a partir dos investimentos públicos e privados, entram na mira de interesses de agentes do mercado imobiliário formal voltado para a classe média e alta. Nesses casos, os moradores de baixa renda acabam saindo desses espaços para viver em bairros mais baratos, alimentando os ciclos de “periferização” das periferias, especialmente nas metrópoles em expansão.
UM PROCESSO DE OMISSÕES HISTÓRICAS
O processo de produção desses espaços urbanos irregulares é fruto de omissões históricas do poder público tanto em relação às ações regulatórias e fiscalizatórias quanto em relação à provisão de solos urbanizados adequadamente. Tal processo varia de um local para outro. Pode ocorrer por meio da ocupação irregular de glebas e terrenos por grupos de famílias de baixa renda que sofrem necessidades habitacionais ou através da implantação de loteamentos clandestinos construídos e comercializados irregularmente. São processos que geram os chamados assentamentos precários e informais, como as favelas e muitos bairros populares que compõem as imensas periferias urbanas. Muitos desses assentamentos, construídos com pouco ou nenhum acompanhamento técnico, encontram-se em dunas, encostas e topo de morros onde os solos apresentam risco de deslizamento. Encontram-se também em mangues, várzeas inundáveis e áreas de proteção aos mananciais. Nos meses de verão, com a intensificação das chuvas, vários desses assentamentos protagonizam notícias de desastres e tragédias, muitas vezes letais. Toneladas de terra e rochas rolam sobre moradias e bairros inteiros, predominantemente ocupados por famílias pobres, ceifando a vida de centenas de pessoas. Águas poluídas, transmissoras de doenças, invadem ruas e edificações provocando perda de bens, saúde e vidas. Essas notícias e ocorrências se repetem ano após ano.
Em suma, os grupos sociais e agentes econômicos que podem pagar acessam às melhores terras urbanas. Aqueles que não têm recursos pagam o pouco que têm para viver nas periferias distantes, em terras urbanizadas inadequadamente, na vulnerabilidade, sob risco. Sim, em nossas cidades paga-se para morar em áreas de risco por falta de alternativas.
Além dessas desigualdades e segregações socioterritoriais, um dos piores efeitos da preponderância da lógica do capitalismo periférico na urbanização brasileira, com baixo nível de regulação pública sobre a atuação dos agentes mercadológicos, é a expansão periférica das grandes e médias cidades do país. Expansão periférica que pode levar à desintegração entre os bairros das cidades, permeados por glebas e terrenos ociosos. Paradoxalmente, o crescimento urbano horizontal convive com redução no número de moradores nas áreas centrais e intermediárias das maiores cidades, melhor servidas por acessibilidade, empregos, serviços, equipamentos e infraestrutura.
PREDOMÍNIO DO TRANSPORTE INDIVIDUAL
Os efeitos negativos das grandes distâncias entre locais de moradia, trabalho, consumo, estudo, entre outras atividades urbanas, se agravam com o predomínio do automóvel individual na matriz de mobilidade urbana. Tais efeitos são mais nocivos pela falta de integração das diferentes modalidades de transporte público de massa com ciclovias e bons caminhos para pedestres. O predomínio dos automóveis nos deslocamentos intra e interurbanos sobrecarrega o sistema viário principal com congestionamentos quilométricos causando acidentes graves, gerando desgaste físico e psicológico, e produzindo deseconomia. Ademais, eleva o consumo de combustíveis fósseis, não renováveis, responsáveis pela emissão de boa parte dos gases tóxicos que contaminam o ar das cidades, provocando sérios problemas respiratórios. Tais gases podem estar contribuindo para as mudanças climáticas e o aquecimento global cujos efeitos apontam para novas formas de vulnerabilidade socioterritorial.
A expansão urbana horizontal sobre áreas periurbanas pode avançar, de modo precário, sobre solos agricultáveis, nascentes de rios e córregos, áreas de interesse ambiental e de proteção aos mananciais. Em algumas cidades essa expansão contribui para o desmonte de cinturões verdes formados por pequenos produtores de frutas, verduras, legumes e por criadores de aves e pequenos animais. Isso afeta o abastecimento alimentar dos moradores dessas cidades, obrigados a “importar” produtos de lugares distantes, muitas vezes com desperdício e sem a riqueza nutricional das variedades naturais. É importante começar a pensar na criação de circuitos curtos entre produção, distribuição e consumo de alimentos em áreas urbanas e rurais. Tais circuitos podem envolver agricultores familiares, produtores de alimentos sem agrotóxicos, cujas atividades já articulam novas relações entre as cidades e o campo. Esses alimentos podem muito bem ser comprados pelos poderes públicos locais para abastecer as merendas escolares e restaurantes populares, entre outros equipamentos de distribuição.
Diante desse quadro das cidades brasileiras, como analisar o atual momento da política urbana do país?
É preciso dizer que, apesar dos avanços jurídicos e institucionais ocorridos nas duas últimas décadas, estamos em um momento crítico. Grandes investimentos públicos estão sendo feitos nos espaços urbanos do país, tanto na instalação de infraestrutura quanto na produção habitacional. As grandes e médias cidades vivem um boom imobiliário produtor de excrescências como loteamentos fechados e condomínios verticais constituídos por torres de apartamentos.
Nessas cidades vigoram práticas de formulação de planos diretores sem previsão de obras estruturais. A realização de obras ocorre desassociada de processos de regulação e planejamento urbano. A implementação do Estatuto da Cidade está praticamente paralisada; a construção do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social caminha a passos de tartaruga; o marco legal do saneamento ambiental ainda está para ser colocado em prática; e a Política Nacional de Mobilidade não saiu do papel.
Nesse contexto, a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, iniciada pelo Ministério das Cidades em 2003 e interrompida em 2005, simplesmente inexiste. É urgente reorientar esse Ministério para a concretização da reforma urbana no país. É urgente arrancar o controle dos processos de produção dos espaços urbanos das coalizões políticas conservadoras, clientelistas e patrimonialistas, que privilegiam somente o valor de troca do solo das cidades em detrimento dos espaços para o exercício dos direitos e vida social. Diante de tudo isso, é mais que urgente articular redes e coalizões em defesa do Direito à Cidade.
Kazuo Nakano é arquiteto urbanista, técnico do Instituto Pólis, doutorando do Núcleo de Pesquisas Populacionais (NEPO) da Universidade de Campinas (Unicamp).