A psicodinâmica da heterociscompulsoriedade no contexto do tecnofeudalismo
Apesar dos avanços conquistados às custas do intenso ativismo – desestabilizando a LGBTQIAPNfobia todos os meses –, que enfrenta um verdadeiro estado de massacre da população LGBTQIAPN+, em especial da letra T – o Brasil é o país que mais mata esse grupo
A cidade de Nova York, dos anos 1960, era controlada por um “estatuto de vestuário”, quem não utilizasse, no mínimo, três peças de roupa consideradas “decentes”, era enquadrado pelo ordenamento jurídico, responsável por fiscalizar e punir os corpos distantes da heterossexualidade compulsória. Contudo, na madrugada de 28 de junho de 1969, essa realidade foi desobedecida.
Dez anos antes, um grupo formado por gays e drag queens entrou em conflito com a polícia de Los Angeles. Os policiais haviam prendido ilegalmente seus amigos, apenas por estarem reunidos no Cooper’s Donuts, um famoso point homoafetivo. O confronto ocorreu em maio de 1959.
Nos anos seguintes, o mundo conheceu o fenômeno da Contracultura da década de 1960. Fundamentado no existencialismo de Jean-Paul Sartre, esse movimento antissistema surgiu nos Estados Unidos da América (EUA) e no Reino Unido, varrendo quase todo o Ocidente. Londres, São Francisco e Nova York foram os principais centros contraculturais. Unindo forças com o movimento afro-estadunidense, a Contracultura encontrou nas lutas feministas e na experiência com os psicotrópicos, os elementos necessários para transcender os anos 1960 e influenciar estilos que seguem potentes. A voz poderosa de Janis Joplin, a guitarra cósmica de Jimi Hendrix e a Invasão Britânica, liderada pelos Beatles, incendiaram as mentes e revolucionaram o pensamento. Influenciados pelos beatniks, os hippies questionavam os valores tradicionais, propondo, através do encontro com a espiritualidade, uma cultura de paz e amor.
Entretanto, do lado conservador existia um intenso desejo de retorno ao status quo de antes da Segunda Guerra Mundial. Já em fevereiro de 1950, o senador Joseph McCarthy afirmou ter uma suposta lista de integrantes, tanto do Partido Comunista, quanto de um grupo soviético de espionagem, os quais estariam infiltrados no Departamento de Estado. Em tempos comuns, essa afirmação soaria absurda, no entanto, na efervescência delirante da Guerra Fria, a declaração ganhou espaço, a ponto de homossexuais serem incluídos entre os grupos que ameaçavam a segurança nacional dos EUA, sob a alegação de participarem em práticas perversas, e, portanto, serem emocionalmente desequilibrados. Isso resultou na dispensa de mais de 4 mil pessoas das forças armadas, 420 demissões de trabalhadores do governo e 1,7 mil indeferimentos de solicitações de emprego no Governo Federal. O motivo: suspeita de homossexualidade.
O endurecimento da Guerra Fria foi marcado pela disputa econômica, política e militar entre EUA e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Temerosos com a difusão do comunismo, os EUA passaram a agir na América Latina, enfrentando Cuba e fomentando golpes de Estado, entre eles, o Golpe de 1964, no Brasil. Em paralelo, avançaram contra o Vietnã do Norte, apoiado pela China e URSS. Se por um lado, o plano de dominar a América Latina, apoiando ditaduras cruéis, foi bem-sucedido, por outro, as derrotas na Invasão da Baía dos Porcos (1961), e, sobretudo, na Guerra do Vietnã (1959-1975), contribuíram para a rejeição dos meios de comunicação estadunidenses face a política de intervenção militar em outros países. A Síndrome do Vietnã, termo utilizado para descrever a atmosfera de decepção da sociedade estadunidense com o governo, elevou os ânimos dos jovens, catalisando o crescimento da Contracultura de 1960. Nesse cenário, pouco mais de quatro anos do assassinato de Malcolm X e cerca de um ano após o assassinato do pastor batista Martin Luther King Jr., ambos, as principais referências na luta contra a segregação racial nos EUA, o Stonewall Inn se tornaria um ponto de inflexão sem precedentes na luta de pessoas não-heterocisnormativas pelos direitos civis.
Propriedade da máfia italiana, o bar era um dos poucos locais em Manhattan, Nova York, no qual pessoas que hoje se identificam LGBTQIAPN+, tinham alguma paz e interação sem medo da polícia. Contudo, na madrugada daquele 28 de junho de 1969, essa realidade mudou, após uma violenta batida policial. Na parte externa do bar, entre um numeroso grupo, estava a travesti Sylvia Rivera (1951-2002), aos brados: “não vou perder um minuto disso! É a revolução!” O conflito dentro do Stonewall Inn se intensificou: os policiais invasores estavam feridos e a Força de Patrulha Tática do Departamento de Polícia de Nova York foi chamada para libertá-los. Mesmo em maior número, a polícia foi humilhada, principalmente pelas travestis, que, conforme o relato do inspetor Seymour Pine, responsável pela ação, ‘lutavam com fúria’. Incansáveis, elas resistiram, impossibilitando qualquer esforço de prendê-las nos camburões. Os conflitos prosseguiram por semanas no bairro do Greenwich Village: organizados em grupos e destemidos, os participantes confrontaram a polícia diversas vezes. No ano seguinte, a Rebelião conhecia suas primeiras vitórias: a criação de jornais disseminou a urgência do respeito às diferenças e as primeiras paradas ocorriam, simultaneamente, em Chicago, Los Angeles, Nova York e São Francisco. Dali em diante, os EUA e o mundo conheceram a fundação de várias organizações. Isso contribuiu sobremaneira para o desenvolvimento de pesquisas científicas, resultando na retirada da homossexualidade do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), em 1973, no enfrentamento da pandemia de AIDS, a partir da década de 1980, e na retirada da homossexualidade da lista de doenças, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 17 de maio de 1990. Em 21 de maio de 2019, a transexualidade deixou de ser considerada um transtorno mental pela OMS, passando a ser classificada como Incongruência de Gênero e integrando a categoria Condições Relacionadas a Saúde Sexual.

No Brasil, a primeira manifestação LGBT aconteceu em 1980, em São Paulo. O protesto tinha um viés idêntico àquele ocorrido em Stonewall Inn: protestar contra as violências das ações policiais. Quinze anos depois, em 1995, no Rio de Janeiro, ocorreu a “Marcha Pela Cidadania”, ao fim da 17ª Conferência da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais (ILGA), com 3 mil participantes na Praia de Copacabana. No mesmo ano, ocorria a primeira parada do Rio de Janeiro, organizada pelas organizações Caras e Coroas, Arco-Íris, Grupo Unido Astral, Atobá, Movimento DELLAS, Triângulo Rosa, entre outras. Dois anos depois, a primeira Parada do Orgulho LGBT acontecia em São Paulo, tornando-se um evento anual, com milhões de pessoas na Avenida Paulista. Mais recentemente, em 2018, ocorreu a primeira Marcha Trans do Brasil, também em São Paulo. Celebrando as identidades travesti, transexual e transgênero, o objetivo dessa marcha é reivindicar o protagonismo da população trans no interior do movimento LGBTQIAPN+. Em 2024, essa manifestação recebeu o nome de “Marsha” Trans do Brasil, em homenagem a Marsha P. Johnson.
Apesar dos avanços conquistados às custas do intenso ativismo – desestabilizando a LGBTQIAPNfobia todos os meses –, que enfrenta um verdadeiro estado de massacre da população LGBTQIAPN+, em especial da letra T – o Brasil é o país que mais mata esse grupo e também o segundo que mais consome pornografia T –, o cenário mundial é preocupante. Isso porque todas as democracias estão ameaçadas, com precedentes apenas na Segunda Grande Guerra. Desde a Grande Crise Financeira de 2008, as plataformas online tem sido utilizadas para eleger governos fascistas. A extrema direita, através de uma política de desestabilização dos alicerces democráticos, demonstra potencial para colapsar o mundo. Em paralelo, os conflitos entre Rússia e Ucrânia, Israel e Palestina e o recente confronto entre Israel e Irã, testam a resistência da democracia. De volta à presidência dos EUA, Donald Trump recrudesce o ódio contra a ciência, glorifica a ignorância e incentiva o belicismo. O presidente ianque apoia o governo genocida israelense, ao mesmo tempo que persegue imigrantes, impondo deportações que violam os direitos humanos, além de atentar contra a cidadania da população LGBTQIAPN+, atingindo até mesmo pessoas fora do espaço geográfico estadunidense: a deputada federal Erika Hilton teve o seu visto diplomático para os EUA alterado para o gênero masculino e quem solicitar visto para entrar nos EUA como estudante, terá as próprias redes monitoradas. O jeito trumpista de governar utiliza as plataformas online para cometer crimes contra grupos historicamente estigmatizados, a exemplo da permissão de postagens com incitação ao ódio contra a população LGBTQIAPN+ e a xenofobia: a Meta tem permitido postagens que associam homossexualidade e transexualidade a doenças mentais. O resultado tem sido uma autêntica onda de esgoto a céu aberto nas redes digitais, a partir de postagens-gatilho para transtornos mentais, como depressão e ansiedade.
Os algoritmos utilizados nas redes digitais – elas não são sociais, haja vista escamotear conteúdos informativos, éticos e capazes de socializar pessoas – favorecem a propagação das fake news e da cultura masculinista. Com a ausência de regulação, Red Pills, Incells e MGTOWs se sentem à vontade para disseminar o machismo nas redes, atacando as mulheres, enquanto TERFs postam conteúdo de femmefobia, se referindo às mulheres trans como ex-homens. Isso tem corroborado para uma cultura permissiva, que extrapola a liberdade de expressão, adentra aos discursos de ódio e destrói reputações. Nessa perspectiva, os pensamentos, sentimentos e ações são mediados pelas redes digitais. Estamos assistindo a uma mutação civilizatória, na qual a internet é utilizada para influenciar e manipular as massas, levando-as a: (1) eleger governos autoritários, fascistas e reacionários, os quais praticam políticas de ataques sistemáticos à classe trabalhadora; (2) aderir a pautas que promovem perseguição em escala mundial a grupos sociais minoritários, a exemplo dos ataques do Governo Trump a imigrantes e pessoas LGBTQIAPN+; (3) buscar tratamentos alternativos sem qualquer comprovação científica, os quais resultam em mortes que poderiam ser evitadas; (4) uberizar a própria capacidade crítica, literalmente entregando suas mentes à influenciadores digitais comprometidos apenas com seus próprios lucros, a exemplo dos divulgadores de apostas online; e (5) contribuir para a construção da heterociscompulsoriedade, dispositivo responsável por vincular, à força, desejos, identidades de gênero, orientações sexuais e práticas sexuais.
Sem um sistema de freios e contrapesos, a heterociscompulsoriedade vem se tornando o mecanismo mais utilizado pelo tecnofeudalismo para impor uma cultura viciada em exaltar a masculinidade tóxica. Para isso, utiliza desde projetos supremacistas, brancos, cristofascistas – e risíveis, a exemplo dos Legendários –, passando por discursos medievais, até fomentar a matança das subjetividades não-heterossexuais e não-cisgêneras. Uma mutação descivilizatória, expressão lídima do câncer cultural da atualidade, contendo um “arsenal de políticas adversárias das singularidades, subjetividades, diferenças e diversidades”, com um único interesse: produzir sujeitos compulsoriamente heterocisnormatizados.
Essa investida ultraconservadora mundial não será derrotada apenas por acordos institucionais. Mentes poderosas e maquiavélicas, como Curtis Yarvin, principal referência do Iluminismo Sombrio, estão determinadas a esfacelar as democracias, colocando em seu lugar os Estados Tecnofeudais, conglomerados de empresas nas quais os presidentes são CEOs elitistas, capacitados para dominar e submeter nações inteiras aos interesses dos feudos digitais. Mesmo com o Supremo Tribunal Federal (STF) decidindo por responsabilizar as plataformas de tecnologia pelas postagens dos usuários, as big techs estão determinadas a seguir com seu plano de colonização psíquica, pressionando o parlamento brasileiro para legislar o tema com a maior brevidade possível, a fim de assegurar os seus interesses, leia-se: redes digitais sem qualquer regulação. Existe, portanto, a urgente necessidade de compreender o momento histórico: ao lado das negociações inerentes a política institucional, é necessário rivalizar nas ruas e nas redes. Contra a extrema direita e a favor do Estado Democrático de Direito, é necessário competir por cada mente.
Armando Januário dos Santos é psicólogo (CRP-03/20912), mestre em Psicologia e pós-Graduado em Gênero e Sexualidade. Instagram: @januario.psicologo | WhatsApp: (71) 98108-4943.