A punição penal na sociedade sem contato
O encarceramento em massa, todavia, parece ter agora chegado ao seu limite porque a guerra contra o coronavírus estabeleceu uma barreira que não se permite mais transpor
A pandemia de coronavírus generaliza uma nova forma de sociabilidade que, a cada dia mais, parece ser a única forma de autopreservação possível neste tempo histórico: a sociedade sem contato. O encontro com o mundo exterior e o toque do outro foram apropriados pelo sanitarismo, de modo que todo contato passou a ser mediado por uma série de protocolos higiênicos. É necessário lavar as roupas sempre que sair, esconder os lábios e nariz por trás de uma máscara, estar sempre acompanhado de álcool em gel 70% e manter dois metros de distância de qualquer pessoa. Em um contexto de guerra viral, esses protocolos de higiene e distanciamento físico são também métodos necessários de preservação da vida.
Nenhuma dessas medidas de autopreservação, contudo, é possível de ser tomada em situações de encarceramento. Desde a década de 1970, o número de pessoas presas vem aumentando exponencialmente. Primeiro nos EUA e depois no resto do mundo, o fenômeno do encarceramento em massa transformou os presídios em grandes depósitos de seres humanos, em que a aglomeração não só é inevitável como também é desejável por um sistema que entende descartáveis determinados sujeitos. Se a prisão como a conhecemos tem sua origem histórica na segunda metade do século XVIII, ela certamente nunca esteve tão popular quanto hoje, inclusive na opinião pública.
A grande onda punitiva iniciada nos anos 1970 levou multidões para as unidades prisionais, mormente povoadas por pessoas advindas de grupos socialmente empobrecidos – a clientela predileta das prisões. O encarceramento em massa transferiu os bolsões de pobreza dos guetos para as penitenciárias, transformando o cárcere em uma experiência normal para determinados segmentos sociais, um continuum entre as regiões pobres dos grandes centros urbanos e o sistema prisional.
Bem-estar social
Fruto da crise do Estado de Bem-Estar Social, o aprisionamento massivo tornou-se o paradigma de punição no neoliberalismo, que apostou no direito penal como forma de resolver os problemas que antes eram solucionados pelas políticas sociais do Welfare State. Foi assim que os EUA passaram de 199 mil presos em 1970 para 2 milhões na virada de século. E o Brasil passou de 90 mil presos em 1990 para mais de 800 mil em 20191.
O encarceramento em massa, todavia, parece ter agora chegado ao seu limite porque a guerra contra o coronavírus estabeleceu uma barreira que não se permite mais transpor. Em um contexto de guerra viral, toda aglomeração é um risco para a saúde pública e o confinamento em massa acaba por ser também um risco de infecção em massa. Por essa razão, do ponto de vista penal, a única alternativa realmente séria para enfrentar a atual crise sanitária é o desencarceramento imediato de um amplo segmento prisional, a fim de proporcionar condições para o distanciamento físico e a realização dos protocolos de higiene em domicílio.
Outras alternativas foram levantadas pelos defensores do status quo: isolamento dos presos infectados, suspensão das visitas íntimas, impedimento do contato entre advogado e cliente, etc. Porém, essas medidas apresentam pouca eficácia, pelas mais diversas razões.
Uma vez que o período de incubação do coronavírus é de 2 a 14 dias (segundo o Ministério da Saúde), o isolamento do preso detectado com Covid-19 passa a ser pouco eficaz, porque é provável que ele já tenha, antes de expressar os sintomas, infectado todo o restante de sua cela. Esse é o grande risco do vírus: a possibilidade de contaminação mesmo que a pessoas infectadas não apresentem sintomas. É por esse motivo que somos todos um transmissor em potencial e o isolamento é necessário como forma de proteção da saúde pública.
Formas de contágio
O argumento frequente de que a suspensão de visitas íntimas e do contato entre o advogado e cliente evitariam a contaminação também é falacioso. Inobstante as prisões sejam arquitetonicamente construídas para que nos esqueçamos de que existem pessoas lá dentro, o cárcere não é um local completamente isolado do seu entorno. Novos presos entram diariamente, há uma circulação de materiais levados pelos familiares das pessoas presas (posto que não são fornecidos pelo Estado) e os funcionários das unidades prisionais entram e saem todos os dias. Esses são pontos de contato entre o mundo externo e o cárcere, tornando as prisões epicentros do coronavírus. Pontos de contato potencialmente letais e que podem levar a uma contaminação em massa da população carcerária e dos funcionários que lidam diretamente com esse público.
Levando em consideração esses fatos, diversos países ao redor do mundo têm optado por medidas desencarceradoras como uma verdadeira política de saúde pública. Duas semanas atrás, a Turquia liberou provisoriamente 45 mil de seus 286 mil presos. Antes disso (no mês de março), o Irã tomou uma medida ainda mais ousada: soltou temporariamente 85 mil de seus 240 mil presos – um terço de sua população carcerária. Já na Colômbia, após uma rebelião que vitimou 23 presos e deixou outros 80 feridos no presídio de La Modelo (Bogotá), a qual reivindicava a soltura dos prisioneiros em grupo de risco, o país resolveu liberar 4 mil de seus 118 mil presos. Essas são medidas fundamentais para conter o avanço da pandemia, achatando a curva de contaminação e evitando um colapso do sistema de saúde.
Um desencarceramento tão vasto seria impensável alguns meses atrás. A decisão tomada pelos países citados acima só foi possível porque o curso do encarceramento em massa foi rompido pela pandemia, que impõe à sociedade a experiência do distanciamento drástico. A decisão por romper com o atual modelo punitivo, contudo, não é automática. A experiência da Turquia, do Irã, da Colômbia e de tantos outros países que optaram por soltar (temporariamente ou não) uma parcela da população prisional mostra que a quantidade de presos de um país é, sobretudo, uma questão política. De modo que o desencarceramento não ocorrerá se não houver uma forte mobilização nesse sentido.
Repensar
É preciso aproveitar o atual momento de crise sanitária para repensar a punição penal que confina milhares de pessoas em ambientes insalubres. Em tempos pandêmicos, não se pode apostar nas mesmas formas de controle social. Isso porque, malgrado a quarentena seja uma experiência que se espera ser temporária, o mundo prepara-se para uma nova época em que as aglomerações serão impossíveis por um bom tempo, obrigando o distanciamento físico como uma técnica de controle da vida.
A pandemia de coronavírus evidenciou os riscos sociais relacionados ao superencarceramento e impõe o fim do paradigma punitivo adotado hoje, tornando necessário um novo pacto em torno da punição penal. E quanto a isso, o futuro ainda está em disputa. Para um modo de punir mais democrático, é preciso apostar na ampliação das penas alternativas e de práticas de justiça restaurativa, adotar um outro modelo de política criminal de drogas, reduzir o tempo máximo de cumprimento que foi ampliado pela “Lei Anticrime”, entre outras medidas que desafoguem o sistema penitenciário, o qual atinge quase que exclusivamente a camada mais vulnerável da população.
Emerson Erivan de Araújo Ramos é professor de Direito na UNIFIP e doutor em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba
1 O número de mais de 800 mil pessoas presas foi divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça no ano passado. Contudo, o Departamento Penitenciário Nacional divulga o número menor de 748 mil presos para dezembro de 2019.