A “qualidade” dos cursos EAD e a grande farsa nacional
Crescimento retumbante da modalidade segue trajetória oposta à sua qualidade
O Ministério da Educação abriu consulta pública para revisar os critérios de credenciamento de instituições de ensino superior para a modalidade a distância e estabelecer limites à oferta de cursos da área de saúde na modalidade de educação a distância (EAD). Desde sua primeira fala pública, a Secretária de Regulação e Supervisão tem destacado a necessidade de olhar com cuidado para a EAD, o que concordo inteiramente.
“Harvard tem EAD”, dizem seus defensores. “Harvard” exige dedicação integral do aluno aos estudos e ficaria envergonhada em se ver relacionada às práticas que vou relatar.
Ao longo de mais de quinze anos, atuo como tutor, professor, membro da equipe multidisciplinar, avaliador, autor, coordenador de curso EAD, e aluno em mais de uma instituição de ensino superior (IES), e vi o crescimento retumbante da modalidade em trajetória oposta à sua qualidade. O Censo da Educação Superior mostra que em 2022 o número de ingressantes no ensino superior na modalidade EAD foi o dobro dos ingressantes na modalidade presencial, e que o número de matriculados em EAD deve superar os presenciais em 2023.
Defendida como uma medida de democratização do acesso ao ensino superior, hoje o pressuposto que guia sua expansão, na maioria das instituições, é que os alunos “não têm tempo” para fazer uma graduação presencial. Contudo, quem “não tem tempo” para estudar, “não tem tempo” para participar de uma formação universitária, e a democratização é o acesso a um mero pedaço de papel que atesta sua participação na farsa.
A criatividade das IES para lançar cursos não tem limites: praticamente todos os cursos com diretriz curricular estabelecida já são ofertados na modalidade EAD, mas a cada ano precisam lançar novos produtos no mercado, a exemplo do mercado de celular, perfumes e sofás. Os cursos experimentais proliferam no país, cada vez mais especializados em coisa alguma, viabilizados pela oferta de disciplinas em comum com outros cursos maiores, meras junções de conteúdos desarticulados e desatualizados.
Comecemos pelo material didático. Hoje proliferam fábricas de conteúdo que disponibilizam de forma barata às IES materiais produzidos sem o rigor necessário para uma boa formação. Alguém faz uma ementa de conteúdo cheia de inconsistências, um professor faz seu plano de obra e produz o material. As produtoras mais rigorosas fazem uma análise detalhada de coerência textual por um revisor técnico com formação genérica, mas nem sempre há um parecer de outro professor da área do conhecimento para verificar erros e incoerências conceituais que possam prejudicar a formação dos discentes. Na maioria dos casos, há apenas uma revisão mínima para corrigir erros ortográficos e gramaticais que um professor de ensino superior jamais deveria cometer.
Uma disciplina de 80 horas comumente apresenta um conteúdo de 120 páginas diagramadas (um padrão aleatoriamente estabelecido com base em referências avaliativas antigas) e alguns vídeos curtos que totalizam não mais que 4 horas de conteúdo. Após remoção de capa, folhas de crédito, imagens e efeitos de diagramação fica com bem menos de 80 laudas de conteúdo raso e superficial. Em análise a materiais de disciplinas que ministro, o conteúdo se assemelha àquela aula introdutória na qual apresentamos a disciplina de modo geral, apontando o que será trabalhado no semestre, mas sem conceituar ou explorar adequadamente os conceitos e relações teóricas. As IES líderes de mercado produzem seus próprios conteúdos, mas o resultado não é muito diferente do que vem da fábrica de conteúdo, pois é o padrão de mercado. Se o aluno ler, terá uma noção geral do que é a temática, sem necessariamente construir um raciocínio conceitual e analítico, ou ainda, dominar conceitos da área. A qualidade do pouco que é apresentado deixa a desejar, pois é impossível para um bom autor produzir material de uma disciplina com texto, questões objetivas “padrão Enade”, questão de fórum e alguns vídeos aleatórios por menos de R$ 3 mil. No entanto, sempre tem alguém com muitas contas a pagar e pouco pudor intelectual que aceita a tarefa.
Os materiais das fábricas são reaproveitados entre as IES, ou entre os cursos na mesma IES, de forma que é barato criar um novo curso a partir do portfólio de materiais já existentes na IES ou na fábrica, juntados sem qualquer preocupação com a articulação entre os componentes curriculares e de acordo com o que se encontra disponível. O resultado? Um currículo aleatório, sem uma identidade institucional e local, com lacunas em algumas áreas de formação e sobreposição de conteúdos em outras.
Avancemos pelas atividades de avaliação. O aluno “não tem tempo” para estudar, lembra? Com base nisso, a maioria das instituições insere questionários avaliativos objetivos cuja resposta é facilmente localizada no material didático com o comando de busca. Todavia, o aluno não precisa abrir o material didático, as questões são reaproveitadas por anos e anos a fio, de forma que já estão respondidas nos principais sites de “cola”. Em tempos de recursos de inteligência artificial, basta colar a questão no chat que a resposta é rapidamente obtida.
E a avaliação presencial? Não há. As IES alegam que usam uma plataforma de avaliação com altos recursos tecnológicos que impossibilitam a alternância de tela quando o aluno está fazendo a “prova” final, mas eu testei duas líderes do mercado e vi que é possível copiar a questão e colar no navegador para procurar a resposta. Além disso, as questões são tão antigas, que nos grupos de WhatsApp de turmas são compartilhados os compilados com as respostas corretas para facilitar a aprovação. Algumas IES inserem um fórum avaliativo ou uma questão dissertativa, mas isso requer correção posterior por um tutor, que é muito caro para as mensalidades de R$ 199 praticadas no mercado. Assim, muitos alunos passam pelo ensino superior sem escrever uma única linha sobre sua área de formação.
Falemos agora do tutor. O site Vagas.com aponta que o salário médio de tutor é de R$ 2.143, o que é bem menos que o piso salarial do magistério da educação básica, reconhecidamente apontado como insuficiente. Em tempos em que toda formação é realizada online (a despeito de a legislação exigir alguma presencialidade), o tutor é o único contato humano no percurso formativo do aluno, e sua remuneração é tão diminuta que é de se duvidar que seja possível contratar profissionais qualificados para tal. Infelizmente, o cenário da educação superior está tão decadente que há doutores atuando na EAD com salários neste nível. O que o tutor faz? Nas IES grandes, pouca atividade formativa, já que acompanha mais de 2 mil alunos por turma, o que inviabiliza atender as dúvidas conceituais dos discentes, tornando-se meramente uma figura operacional e disparadora de mensagens genéricas coloridas convidando os alunos a fazerem as atividades. Nas IES pequenas, também pouca coisa, pois são atribuídas diversas disciplinas a um único tutor para que o (baixo) salário seja economicamente viável. Ainda bem que os alunos têm poucas dúvidas, pois dificilmente leem o material e conseguem resolver as atividades com as estratégias de “cola” tecnológica. Os poucos que tentam contato dificilmente têm resposta no tempo adequado para a continuidade da aprendizagem.
Entretanto, tem o professor. Certo? Somente figurativo. Na maioria das IES o tutor é a única figura com a qual o aluno tem contato. Eventualmente um professor aparece em um encontro síncrono para falar de algum assunto aleatoriamente escolhido em meio àquele material superficial. Nem sempre os alunos participam, e a maioria nem se dá ao trabalho de assistir ao vídeo gravado em velocidade acelerada. Às vezes esse professor revisa questões de prova contestadas pelos alunos, mas há pouco a se fazer quando a questão foi mal formulada e o aluno não sabe explicar por que está errada.
Quanto às atividades presenciais, que são obrigatórias pela legislação, o aluno “não tem tempo” para participar e as IES que as ofertam criam um momento único ao final do curso para atender a legislação, enquanto outras simplesmente não o fazem. Os cursos “semipresenciais”, ou suas variações de nomenclatura, fazem encontros opcionais aos discentes, ou ainda disponibilizam laboratórios virtuais para uso dos alunos de forma autônoma, sem um acompanhamento do docente ou do tutor para que explorem todas as potencialidades dos recursos e os aproveitem no processo formativo. Algumas IES fazem práticas remotas simuladas, debates de casos em fóruns, entre outros, e isso vale até mesmo para o estágio. Milhares de discentes da área de saúde nunca pisaram em um laboratório do curso, e até seu estágio pode ser totalmente remoto.
Isso tudo deveria ser captado nas avaliações do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) para reconhecimento dos cursos, mas infelizmente o processo é falho. As IES montam seus documentos para apresentar à comissão da forma como querem, pois o papel aceita tudo. Atas falsas criadas às vésperas da visita, apresentações de recursos tecnológicos de ponta e metodologias inovadoras que não são usados no curso, demonstrações de material didático selecionado, narrativa de práticas que não chegam aos alunos… Nomes bonitos e eufemismos de tendência para um único significado: o aluno sozinho com algumas páginas de PDF, alguns vídeos superficiais, questionário com respostas fáceis e sem acompanhamento adequado em seu percurso formativo.
As entrevistas com discentes, docentes e tutores deveria apontar alguma inconsistência, mas os docentes e tutores precisam do emprego e entram na farsa. Os discentes são cuidadosamente “selecionados” para participar das entrevistas, e, em alguns casos, desconfio que não sejam realmente do curso. As IES honestas acabam prejudicadas com conceitos inferiores, enquanto as mais experientes se abundam com conceitos máximos recorrentes que comprovam sua “qualidade”, pois sabem mostrar o que é necessário para tal.
Será que alguma IES faz EAD de qualidade? Sim, mas muito pequenas e de nicho, que amargam a alta evasão e baixa atratividade por seus cursos que exigem muito de um aluno que “não tem tempo” para estudar e escolhe o caminho mais fácil para obter um papel que é sua esperança de um emprego melhor por apenas R$ 199 por mês. É uma grande farsa nacional na qual todos participam em defesa de sua própria sobrevivência. Afinal honestidade e pudor não pagam as contas do mês, e Harvard não é para todos.
Emilio Trindade é um pseudônimo. O autor deste texto trabalha há mais de quinze anos na docência e na gestão de instituição de ensino superior privada e prefere não se identificar para evitar retaliações.
Concordo integralmente com essa opinião… é isso mesmo…. é isso que acontece….!!!
Um pacto de mediocridade: um finge que ensina e outro finge que aprende, sob chancela de um certificado….
Lamentável……