A quem interessa silenciar a Filosofia?
Um filósofo que poderia ajudar seria Blaise Pascal, pois um aspecto importante de sua filosofia consiste em aprendermos a desfrutarmos do isolamento e a conseguirmos suportar a nós mesmos, pois o estar a sós seria uma condição importantíssima para a felicidade.
A pandemia causada pela Covid-19 tem sido usada, por alguns, para aumentar os ataques à Filosofia. Esses ataques não são recentes, mas com esta nova situação a defesa dos cortes no investimento público dedicado à Filosofia, às Ciências Humanas e às Ciências Sociais se tornou mais enfática, usando-se o argumento de que tais saberes não contribuiriam em nada para a superação desse momento de pandemia. Ora, é verdade que os filósofos não estão nos hospitais atendendo pacientes nem em laboratórios pesquisando por vacinas para o vírus; mas os engenheiros, agricultores, programadores, matemáticos e juízes também não estão. Se o investimento em Filosofia deveria ser reduzido porque os filósofos não estariam em hospitais ou laboratórios salvando vidas, então os investimentos nessas outras áreas também deveriam ser reduzidos, porque esses profissionais também não estão nos hospitais ou laboratórios. Mas todos esses profissionais não estão em hospitais ou laboratórios porque esta não é a função deles, e é insensato exigir que alguém faça algo para o qual não está qualificado, como tentar minimizar um químico por não saber construir um prédio, afinal a formação numa área implica certa ignorância em todas as outras. Cada área do saber contribui em aspectos diferentes para o enfrentamento dessa pandemia.
Um texto recente publicado aqui no Le Monde Diplomatique Brasil já problematizou a questão focando nos ataques dirigidos à Antropologia, então eu gostaria de me deter agora na Filosofia. Anteriormente eu já me ocupei de como a Filosofia pode fornecer um modo de vida que nos permitiria encarar a pandemia e a quarentena com tranquilidade e evitar que entremos em desespero, baseando-me no pensamento estoico. Além deste, um filósofo que poderia ajudar seria Blaise Pascal, pois um aspecto importante de sua filosofia consiste em aprendermos a desfrutarmos do isolamento e a conseguirmos suportar a nós mesmos, pois o estar a sós seria uma condição importantíssima para a felicidade. Outra possibilidade que mencionei naquele texto foi o de aproveitar a quarentena para fazer uma investigação filosófica sobre si mesmo usando a Filosofia como ferramenta que auxilie nesta tarefa, o que poderia ser feito, por exemplo, recorrendo-se ao pensamento de Epicuro para avaliarmos nossas dores e prazeres e se o caminho que estamos seguindo em nossas vidas nos levaria à felicidade ou infelicidade. É importante destacar que a Filosofia não é uma mera abstração erudita, mas em vários momentos de sua história consistiu em discussões sobre como poderíamos viver, fornecendo inúmeras possibilidades de condução de nossas próprias vidas. Nesta perspectiva, percebe-se que a Filosofia pode atuar como uma ferramenta que ajude aqueles que estão em quarentena a suportarem a quarentena ou a fazerem um bom uso de seu tempo.
Ainda no que diz respeito ao enfrentamento da pandemia, a Filosofia contribuiria enquanto um processo formativo que auxiliaria os governantes a tomarem suas decisões ou forneceria aos cidadãos embasamento teórico para avaliar as ações dos governantes. A pandemia tem imposto diversos dilemas de governabilidade, como por exemplo se seria melhor manter todos em casa ou não, e com base na Ética aplicada de tradição anglo-americana, fundada nos experimentos mentais que objetivam solucionar dilemas morais, um governante poderia mais adequadamente a situação para decidir a melhor ação a se tomar. O mesmo se daria com a Filosofia Política, pois o conhecimento das correntes políticas permitiria comparar a ação conforme diversos pontos de vista e elaborar respostas mais apropriadas. Os cidadãos, familiarizados com tais discussões éticas e políticas, poderiam questionar, problematizar e criticar as ações do governante, valendo-se de outras correntes de pensamento que lhes parecessem mais eficazes ou com base em conjuntos diversos de princípios. Os cidadãos poderiam discutir, por exemplo, se o governante agiu rapidamente contra o vírus ou esperou o vírus se espalhar entre a população e ser tarde demais para só então agir; se as medidas tomadas eram as mais adequadas e quais os seus riscos.
A Ética e a Filosofia Política não são as únicas áreas da Filosofia que permitem formar os governantes e os cidadãos, pois a Epistemologia e a Filosofia da Ciência igualmente fornecem ferramentas para tal. Um conhecimento nessas áreas é de fundamental importância para a tomada de decisões, especialmente numa crise de saúde, e serviriam até para prevenir discursos que, para promover fórmulas mágicas, tentam subverter o método científico e deturpar o funcionamento da ciência. Perguntas básicas dessas áreas, como quais seriam as evidências para se sustentar determinada afirmação ou crença, e a exigência de boas evidências para validar uma decisão, sem aceitá-la acriticamente, evitariam que certos remédios (mesmo sem qualquer evidência científica de sua eficácia), orações ou curas milagrosas fossem promovidos como tratamento da Covid-19 – algo que vimos bem retratado na frase “ainda não existe comprovação científica, mas…”. Com tal conhecimento seria possível evitar e criticar medidas que não possuam comprovação científica e seriam tão eficazes, contra a Covid-19, quanto orações, homeopatia, terapia de cristais, astrologia, sangrias ou plantações árticas de pastel de camarão.
A Filosofia, como se vê, está relacionada à discussão racional e ao pensamento crítico. Não se pretende alegar que essas duas características pertençam exclusivamente à Filosofia e que apenas nesta poderiam ser encontradas; todavia, como observa Ludovico Geymonat (1975), ao longo de sua história a Filosofia esteve marcada pelo espírito crítico, isto é, pelo incômodo diante do patrimônio cultural tradicionalmente aceito por uma comunidade e pela exigência de pôr tal patrimônio em discussão mediante argumentos racionais que sejam válidos para qualquer pessoa racional. Foi por levantar objeções, dúvidas e argumentos sutis contra as crenças mais difusas que o filósofo foi “visto com muita suspeita pelas autoridades constituintes, tacitamente atacado e às vezes perseguido, o que todavia não o impediu de exercer uma função determinante no desenvolvimento da civilização [civiltà]” (GEYMONAT, 1975, p.11). A Filosofia, portanto, está relacionada ao esclarecimento (Aufklärung), para usar termos kantianos; isto é, à capacidade de cada pessoa pensar por conta própria, sem que alguém assuma a tutela de seu pensamento e lhe diga no que deve acreditar ou em como deve pensar e agir. É pela Filosofia que podemos sair do estado de menoridade da razão para alcançarmos a maioridade, ou seja, o pensamento livre.
Mas o que eu gostaria de acrescentar e destacar agora é que a Filosofia também pode nos fornecer ferramentas para executarmos ações. Suponhamos que alguém tenha refletido sobre sua vida e decidido reduzir o ritmo em que vivia a fim de priorizar o bem-estar e aproveitar melhor a vida. A Filosofia também pode auxiliar nesta parte e, para organizar a ação, poderíamos nos inspirar no método cartesiano: evitar a precipitação e proceder com cautela, dividir o problema em etapas pequenas que facilitem a resolução, começar pelas tarefas mais simples para seguir às mais difíceis, e por fim revisar e assegurar de que nada foi esquecido. Assim, caberia à pessoa do nosso exemplo delimitar exatamente como gostaria de viver e o que precisaria ser feito para conseguir o que quer, organizando por etapas o que precisaria fazer e agir de acordo com o que ela mesma estabeleceu. A Filosofia, portanto, pode ajudar a organizar a ação e a determinar o melhor jeito de realizar algo, ao que dependeria de a pessoa pôr em prática aquilo que determinou.
Reduzir a Filosofia a abstrações eruditas sobre coisas inúteis descoladas do mundo terreno parece ser uma tentativa de estigmatizá-la a fim de evitar que as pessoas se interessem por esse saber e de evitar que desenvolvam o pensamento crítico e autônomo. Ademais, atenta Umberto Eco, a Filosofia opera como um motor para a História, responsável por guiar as ações humanas e os acontecimentos históricos, pois “essas questões ‘irrelevantes’ [tratadas pela Filosofia] determinaram nosso modo de viver, impeliram certos grupos a guerras religiosas, influenciaram profundamente as investigações dos cientistas, determinaram nosso modo de entender a vida, o divertimento, o ganho e nossas misérias, mesmo para aqueles que nunca se deram conta” (ECO, 2014, p.48). Ou seja, nossas noções de diversão ou trabalho, por exemplo, advêm de alguma tradição filosófica, e os acontecimentos históricos são realizados por pessoas motivadas por algum pensamento filosófico; mesmo a ciência, como menciona Eco, foi influenciada pela Filosofia – tese que Geymonat (1975) desenvolve ao mostrar como, ao longo de sua história, esses dois saberes progrediram conjuntamente e se influenciaram reciprocamente, ambos se beneficiando das discussões e descobertas um do outro.
Os atuais ataques à Filosofia me lembram a trama de uma série, O homem do castelo alto. Ambientada num mundo em que o Eixo venceu a Segunda Guerra, a série mostra um Hitler perseguindo desesperadamente películas de filmes que mostram realidades diferentes, nas quais os Aliados venceram a guerra. Os oficiais nazistas e o Império Japonês não conseguem entender qual a relevância desses filmes nem o motivo da obsessão do Führer, o que só é esclarecido pelos membros da Resistência: os filmes, ao mostrarem como poderiam ser as coisas se o Eixo tivesse sido derrotado, enchem as pessoas de esperança e podem animá-las a se rebelarem contra o domínio nazista e japonês. Esses filmes não são mero entretenimento, mas combustível para mover as pessoas e movimentar a História. A perseguição a essas artes não seria necessária caso não tivessem poder algum, pois se fossem completamente inofensivas não haveria motivo para Hitler se preocupar, afinal nada causariam; mas é pela capacidade motora desses filmes que eles se tornam perigosos ao regime nazista e persegui-los se torna fundamental para manter a dominação.
Os perseguidores da Filosofia, ao empenharem tantos esforços para estigmatizá-la e atacá-la, o fazem porque reconhecem a relação da Filosofia com a ação. Se a Filosofia fosse mera abstração erudita sobre coisas inúteis descoladas do mundo terreno, como tanto alegam, não precisariam se preocupar com ela, porque não representaria ameaça alguma e seria apenas devaneios irrelevantes. Aliás, considerando como os Medici se empenharam em fazer com que os filósofos florentinos focassem nas discussões metafísicas, seria muito mais interessante a determinados regimes políticos que os filósofos se limitassem a questões descoladas do mundo terreno que em nada ameaçassem o regime. Mas a Filosofia, reconhecem seus inquisidores, pode levar as pessoas a questionarem e, a partir destes questionamentos, a agirem; tal possibilidade de ação parece assustá-los, especialmente se o objetivo deles for tentar aplicar o lema do Grande Irmão, ignorância é força, e construir uma massa amorfa sem ideias sólidas, a qual possa ser manejada conforme a vontade do líder e se ocupe apenas de querelas menores cuja insatisfação não leve a lugar algum, de modo a não ameaçar o que for estabelecido (ORWELL, 2009, p.90-91). Em outras palavras, o pensamento crítico desenvolvido pela Filosofia é um obstáculo àqueles que desejam manipular (politicamente ou não) os outros, pois a Filosofia, observa Marilena Chauí (2000), dentre tantas outras coisas, permite que abandonemos a ingenuidade e os preconceitos do senso comum e não deixa que sejamos submetidos pelas ideias dominantes nem pelos poderes estabelecidos, além de nos fornecer os meios para que sejamos conscientes de nós e de nossas ações (CHAUÍ, 2000, p.17). A Filosofia, portanto, fornece diversas ferramentas para enfrentarmos a pandemia de Covid-19, seja como um modo de vida para passarmos por essa situação da melhor forma possível, seja para repensarmos a condução de nossas vidas, seja para formar governantes e cidadãos – dentre tantas outras. Em todas estas possibilidades a Filosofia se vincula ao pensamento crítico e não está afastada da ação, o que me leva a propor uma pequena mudança na pergunta que move o debate: em vez de questionarmos como a Filosofia (e as Ciências Humanas e Sociais) pode(m) ajudar a superar a pandemia, penso que seria mais pertinente se indagássemos quais seriam os interesses por trás dos ataques à Filosofia, às Ciências Humanas e às Sociais.
Igor Ferreira Fontes é mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe e graduado em Filosofia – Licenciatura pela mesma universidade.
Referências
BIGNOTTO, N. Republicanismo e realismo: um perfil de Francesco Guicciardini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
DESCARTES, R. Discurso do método. 2. ed. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
DOMINGUES, I. O continente e a ilha: duas vias da filosofia contemporânea. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2017.
ECO, U. Perché la filosofia? In: ECO, U.; FEDRIGA, R. (a cura di). Storia della Filosofia vol.1: Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza & Figli; Milano: EM Publishers, 2014, p.36-38. Edizione digitale.
GEYMONAT, L. Storia del pensiero filosofico e scientifico: volume primo: L’antichità – Il medioevo. Milano: Garzanti, 1975.
KANT, I. Resposta à pergunta: o que é iluminismo? In: KANT, I. A Paz Perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, [s.d.], p.11-19.
MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
ORWELL, G. 1984. Trad. Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.