A quem pertencem as riquezas do Saara Ocidental?
A questão da independência do Saara Ocidental diz cada vez mais respeito aos rumos do desenvolvimento do Marrocos. Isso porque a região, que Rabat denomina “estados do Sul”, contribuiu fartamente para as receitas de exportação do reino.Olivier Quarante
A estrada principal que liga a maior cidade do norte do Saara Ocidental, El Aaiún,1 a Dakhla, mais de 500 quilômetros ao sul, inúmeros caminhões transportam polvo e peixe branco. O Saara Ocidental totaliza 1,2 mil quilômetros de costa, e suas águas estão entre as mais piscosas do mundo. Segundo um relatório do Conselho Econômico, Social e Ambiental do Marrocos (Cese),2 o setor pesqueiro representa 74 mil postos de trabalho,3 número que deve ser acrescido de uma importante atividade não declarada. Respondendo sozinha por 17% do PIB do território, 31% dos empregos locais e 78% das capturas marroquinas, a pesca dos “estados do Sul” – nome pelo qual o Saara Ocidental é oficialmente conhecido no Marrocos – gera imensa riqueza. O Marrocos monopolizou a atividade em 1975, ao mesmo tempo que anexou esse território, considerado “não autônomo” desde a aprovação da Resolução n. 2.072 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1963.
Nessa perigosa estrada de mão dupla passam outros caminhões, que podem estar levando tomate, pepino e melão produzidos perto de Dakhla. Segundo a ONG Western Sahara Resource Watch, o entorno da cidade conta com onze locais de produção agrícola, entre os quais o da empresa Tawarta. Uma estufa acompanha a estrada ao longo de pelo menos 500 metros. Nessa fazenda, é produzido tomate-cereja com o nome comercial de Estrela do Sul, uma marca pertencente à companhia francesa Idyl. Com o injusto carimbo de “origem Marrocos”, essas culturas, que ocupavam cerca de 600 hectares em 2008,4 seguem via Agadir para serem exportadas em direção à Europa, a 1,2 mil quilômetros dali.
Direitos (quase…) inalienáveis
O Cese vê aí uma atividade de “alto valor agregado”. O plano Marrocos Verde prevê que o Saara Ocidental passe da produção de 36 mil toneladas de primeurs (legumes, frutas e verduras gourmet, colhidos precocemente no início da estação de cada variedade) em 2008 para 80 mil toneladas em 2013 e 160 mil em 2020, numa área de 2 mil hectares. O projeto é exportar toda a produção. O número de empregados, atualmente em torno de 6 mil, triplicaria nesse mesmo período.
Mais ao norte, a cerca de 10 quilômetros de El Aaiún, chegamos ao porto de fosfato operado pela Office Chérifien des Phosphates (OCP). Uma poeira fina embaça a visão. Ela provém do fosfato que é transportado da mina de Bou Craa em esteira rolante por uma centena de quilômetros através da paisagem desértica. Podemos apenas vislumbrar os silos de armazenamento e a silhueta dos graneleiros5 vindos do mundo todo para embarcar o minério. Esse é um recurso fundamental para o Marrocos: a OCP é a segunda maior produtora e a principal exportadora de fosfato bruto e ácido fosfórico no mundo, bem como uma das principais exportadoras de fertilizantes fosfatados. Ela foi responsável por 6% do PIB do país em 2012. Ali estão as maiores reservas de fosfato do mundo.
Vice-presidente de uma comissão de trabalho sobre a questão dos recursos naturais no Saara Ocidental, Mohamed Alisalem Bobeit, que nos encontrou em uma casa em El Aaiún, fala calmamente. Ele está ciente da importância da PhosBoucraa para o Marrocos. A instalação produz cerca de 10% dos fosfatos extraídos pela OCP, que pretende dobrar sua produção até 2020. “É a pilhagem dos recursos que pertencem ao povo saaraui”, afirma Bobeit. Ele se arrisca ao se pronunciar publicamente sobre o assunto: Sid Ahmed Lamjayed, presidente da associação (ilegal, uma vez que o Marrocos não reconhece nenhuma associação criada por saarauis), foi preso no dia 25 de dezembro de 2010, após o vasto movimento de protesto de Gdeim Izik,6 e condenado à prisão perpétua pelo tribunal militar em Rabat.
Mas, a julgar pela proliferação dos protestos, sua análise vem ganhando cada vez mais adeptos. Interrupção da exploração dos recursos até que o conflito seja resolvido por meio de um referendo sobre a autodeterminação: desde outubro de 2010 e os protestos de Gdeim Izik, essa reivindicação está no centro do conflito entre a Frente Polisário (movimento político armado considerado pelas Nações Unidas “representante legítimo do povo saaraui”) e o Marrocos. “Uma resolução da ONU proibindo a exploração dos recursos pelo Marrocos criaria condições favoráveis para um grande avanço na resolução do conflito”, avalia Brahim Sabbar, secretário-geral da Associação Saaraui das Vítimas de Violações Graves de Direitos Humanos Cometidas pelo Estado Marroquino (ASVDH).
Dividida, a “comunidade internacional” na verdade deixou o Marrocos tomar posse desse território de 270 mil quilômetros quadrados. Assim, o país conseguiu controlar a PhosBoucraa, em acordo com o ocupante anterior, a Espanha, que explorava o local desde 1962 e se manteve como acionista até 2002. Mas a guerra com a Frente Polisário havia eclodido, e o Saara Ocidental já estava inscrito na lista dos territórios não autônomos, regidos pelo artigo 73 da Carta das Nações Unidas. Em 1962, a Assembleia Geral da ONU estabeleceu o direito dos povos a “usar e dispor dos recursos naturais em seus territórios para garantir seu desenvolvimento e bem-estar”.7 Em seguida, a jurisprudência falou dos “direitos inalienáveis” dos povos dos territórios não autônomos sobre seus recursos naturais, bem como de seu direito “de estar e permanecer no controle da valorização futura desses recursos”.
Todo o debate atual gira em torno da questão dos benefícios que retirariam – ou não – os saarauis da exploração econômica colocada em prática pelo Marrocos. A assinatura, em outubro de 2001, de contratos de prospecção de petróleo entre o Marrocos e duas companhias, sendo uma delas a TotalFinaElf, deu à ONU a oportunidade de fazer uma advertência que amenizava os princípios mencionados. “A questão é saber se o princípio da ‘soberania permanente’ [sobre os recursos naturais] proíbe à potência administrante qualquer atividade ligada aos recursos naturais do território não autônomo que administra, ou apenas aquelas que seriam realizadas em desrespeito às necessidades e interesses da população desse território, sem seu benefício”, declarou o secretário-geral adjunto de Assuntos Jurídicos.
Mas nenhum mecanismo de avaliação desses interesses está previsto. As condições que permitiriam aos “povos coloniais dos territórios não autônomos” exercer seus direitos legítimos sobre seus recursos naturais não estão definidas. Portanto, a questão torna-se um elemento da relação de forças entre as partes em conflito. A Frente Polisário denuncia a “pilhagem” de recursos e o desrespeito ao “povo do Saara Ocidental”. Em novembro de 2012, ela abriu um procedimento judicial perante o Tribunal Europeu de Justiça para solicitar o cancelamento do acordo de livre-comércio agrícola e comercial entre a União Europeia e o Marrocos, que, assinado em março do mesmo ano, inclui o Saara Ocidental. Primeiro argumento: a ausência de consulta à Frente Polisário.
Subsídio para comprar a paz
As autoridades marroquinas empreendem uma intensa campanha para mostrar que a exploração econômica beneficia a “população do território”. Assim, multiplicam-se os anúncios de novos programas de investimento, divulgados regularmente na imprensa francesa8 e abundantemente na imprensa marroquina. Fala-se sempre em “população local”, sem deixar claro se se trata dos saarauis ou dos marroquinos instalados às centenas de milhares na área. Já a Frente Polisário se refere ao “povo do Saara Ocidental”. Ambos os termos são utilizados pelo conselheiro jurídico da ONU para designar os saarauis, o que só aumenta a confusão.
O makhzen (palácio) faz de tudo para passar a ideia de que os saarauis tiram proveito das riquezas naturais. A OCP, por exemplo, empreenderia uma política social: “Todos os rendimentos líquidos da PhosBoucraa são reinvestidos na região e beneficiam seus habitantes”, podemos ler no relatório de atividades da OCP de 2012. Nas instalações de mineração, foram recrutados nada menos que 530 jovens saarauis após os protestos de Gdeim Izik. Tratava-se de contratar os filhos dos aposentados que já trabalhavam ali na época espanhola e que não estavam nada satisfeitos com a aposentadoria que recebiam. “Um acordo foi feito, mas os jovens foram contratados de uma forma que ninguém mais é, recebendo um salário menor”, lamenta Eddia Sidi Ahmed Moussa, figura do sindicalismo local, secretário-geral da Confederação Sindical dos Trabalhadores Saarauis (proibida).
Outra ajuda: a concessão da carta de promoção nacional, uma assistência social equivalente a 150 euros por mês, que parece amplamente concedida. Diversas histórias ouvidas em campo sustentam a ideia de que, em relação aos saarauis, o subsídio permite comprar a paz social e regular a agitação política por meio da distribuição do dinheiro pelos líderes tribais. As autoridades podem chegar a retirar a ajuda de uma pessoa que seja vista em manifestações pró-saarauis.
Mas podemos falar em “benefícios” reais? Na ausência de dados confiáveis sobre o território – que o país ocupante não é obrigado a fornecer, já que não é considerado pela ONU a “potência administrante”9 –, é impossível responder com certeza. Mas, quanto à instrumentalização dessa questão pela política marroquina, não há dúvida. A definição, em novembro de 2013, de um “novo modelo de desenvolvimento dos estados do Sul”, elaborado pelo Cese, tinha o objetivo de fornecer a contribuição da “sociedade civil” ao “sucesso da iniciativa marroquina de autonomia”.10 Desde 2007, o rei Mohammed VI apresenta essa iniciativa como contraprojeto ao referendo de autodeterminação pedido todo ano pela ONU desde 1991.
Parlamento europeu renova
o acordo de pesca
O exemplo mais recente: no dia 10 de dezembro de 2013, a maioria do Parlamento Europeu aprovou o novo acordo de pesca, que deve estender para o período de 2014 a 2017 aquele definido para 2007-2011. Mais uma vez, o Marrocos inclui – sem que isso seja sequer mencionado no protocolo – as águas do Saara Ocidental. O acordo prevê novamente o pagamento de uma subvenção anual (30 milhões de euros, em vez de 36 milhões, para o desenvolvimento do setor industrial) como contrapartida para que o Marrocos conceda licenças a navios europeus e cotas de pesca espécie por espécie. Sabendo que esse mesmo Parlamento recusou a renovação do acordo em dezembro de 2011, o novo voto favorável aparece como um sinal claro de apoio ao governo marroquino e sua política “reformista”.
Com isso, o serviço jurídico do Parlamento Europeu rapidamente esvazia a questão em torno dos benefícios, considerando que o Marrocos pode incluir as águas do Saara Ocidental e que tal acordo é legal na medida em que o reino “respeita suas obrigações para com o povo do Saara Ocidental”. Tanto pior se os únicos parlamentares europeus autorizados pelo ocupante a visitar esses territórios são os do Grupo de Amizade União Europeia-Marrocos. Aliás, o deputado francês Gilles Pargneaux (Partido Socialista), presidente do grupo, não se engana: “Era uma ilusão querer resolver o problema do Saara Ocidental rejeitando o acordo de pesca. Recordo que a proposta de autonomia do Saara Ocidental apresentada pelo Marrocos às Nações Unidas em 2007 é a única solução possível”.11 Tanto pior, também, no que diz respeito ao interesse puramente econômico e financeiro do texto: uma avaliação independente do acordo de pesca anterior mostrou uma relação custo-benefício “muito baixa” e uma ineficiência excepcional.
Maior investidor estrangeiro no Marrocos, a França contribui ativamente para o status quo em prejuízo dos saarauis. Em novembro passado, a inauguração do novo porto de pesca de Bojador, impressionante com seu dique principal de 724 metros e o transversal de 60 metros, foi possível graças ao apoio financeiro da Agência Francesa de Desenvolvimento, cuja contribuição ao Marrocos passou de 380 milhões de euros em 2011 para 831 milhões em 2012. Em Bojador, Sultana Khaya, jovem militante saaraui pelos direitos humanos, acaba de criar a Liga pela Proteção dos Recursos Naturais. Ela teme a exploração do petróleo pela Total, que em julho de 2013, ou seja, doze anos após o primeiro contrato no Saara Ocidental, empreendeu uma missão de prospecção sísmica numa área de mais de 100 mil quilômetros quadrados chamada “Anzarane offshore”.
Olivier Quarante é jornalista.