A questão indígena no pensamento militar brasileiro
Da perspectiva dos intelectuais fardados que buscam resolver o problema do subdesenvolvimento brasileiro, os indígenas estão atrapalhando seus projetos
A questão indígena é uma invenção dos povos brancos. Essa questão que envolve controle de terras, recursos, línguas e visões de mundo, presente desde o princípio da colonização, ainda nos impacta na atualidade. A questão parece ter começado em 1500, quando os indígenas – visto de uma perspectiva europeia –, começaram a atrapalhar a colonização portuguesa.
Essa longa história possui intérpretes nas casernas. Intelectuais fardados e interessados em questões geopolíticas e históricas que buscam resolver um problema nacional antigo: o subdesenvolvimento. Infelizmente – visto da lógica desses intelectuais – os indígenas estão atrapalhando os seus projetos.
Parcela do pensamento dos militares brasileiros sobre a questão indígena é encontrada na obra A farsa Yanomami (1995), publicada pela Editora do Exército. O autor, o coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto, defende uma versão da história brasileira que faz jus aos seus valores e projetos para a Amazônia. Não se trata de um livro de história, mas que, entre outros assuntos, trata também de nosso passado. Seus principais objetivos são: negar a existência dos Yanomamis e de uma história indígena digna, e engrandecer a história de heróis brancos e da civilização europeia.
Reconhecendo Portugal como local de sabedoria e audácia, Menna Barreto afirma que as Forças Armadas estão “imbuídas desse espírito ancestral”. O espírito ancestral citado criou o Brasil por meio da substituição dos povos que aqui existiam e ainda persistem. O coronel, assim como muitos de seus colegas, sabe disso. Desse modo, encontramos a sua proposta bastante alinhada ao nosso tradicional padrão brasileiro: a erradicação da vida indígena.
O autor cria uma realidade paralela onde os indígenas são considerados primitivos que impedem o avanço da nação e servem como massa de manobra em uma futura invasão da Amazônia. Ele quer expor os planos maléficos de forças internacionais que atuam por meio de ONGs e padres progressistas. Não reconhecendo aos indígenas nenhuma forma de pensamento lógico, ele os considera apenas vítimas irracionais da infiltração marxista e do imperialismo.
O livro está preocupado com a soberania brasileira, o imperialismo e a infiltração do comunismo na Amazônia. Para explicar e validar seus medos, o autor sustenta uma visão de mundo bastante distorcida da realidade. Mas mesmo que falsa, essa visão habita a mente de diversos militares e ex-militares. Entre eles o ex-presidente Jair Bolsonaro.
“Dizer que exterminamos nossos índios é querer desmentir a História e fechar os olhos a essa convivência brasileira de raças, sem igual no mundo”, escreveu Menna Barreto. O objetivo é criar uma falsa sensação de que não há conflito racial em nosso país. Ele apela para o mito das três raças que, unidas, tornaram-se mestiças e construíram um país de amor. Esse fraseado se fundamenta no mito de Guararapes, quando indígenas, africanos e portugueses lutaram juntos para expulsar os holandeses. A batalha de 1649 foi adotada como o princípio do Exército brasileiro e, de alguma forma, um princípio do Brasil.
Menna Barreto é crítico ao que ele acredita ser uma leitura errada do passado. Para isso recorre muitas vezes, em seu livro, aos colunistas e editoriais do jornal O Globo. Em um dos artigos, chamado Sobre a deformação da história, de autoria de A. Gomes da Costa, lemos que marxistas inventaram um passado de cinco séculos de confronto entre dominadores e dominados onde pilhagem, exploração, massacre e chicote marcam o desenvolvimento do Brasil. Contra essas críticas, Gomes da Costa afirma que existe um ódio irracional que faria com que mandassem Pedro Álvares Cabral retornar, apagassem a língua portuguesa, e, se possível, “devolveriam os negros à Mina e ao Congo, com os seus cultos e as suas danças, fazendo do Brasil uma grande roca onde só se produziriam redes e enfeites”.
Obviamente o valor dos indígenas, nem dos africanos, não é reconhecido nessa história, mas sim o dos colonizadores. Aos indígenas apenas o desprezo. O mesmo sentimento de asco deve ser dirigido àqueles que defendem uma história crítica ao triunfo dos colonizadores:
“Nesse contexto não têm sentido a veneração ao machado de pedra ou o elogio aos cânticos de uma nota só. Cabe-nos, isso sim, reverenciar os que trouxeram para cá tão maravilhosas conquistas do engenho humano. E resguardar-lhes a memória augusta de invejosas e levianas contestações da moralidade do que fizeram para impor suas leis e seus costumes aos povos selvagens aqui encontrados. Porque o triunfo é uma bênção, não um pecado”, afirma Menna Barreto no livro.
Para além da ode ao colonizador, o intelectual de uniforme chega a afirmar que os indígenas teriam desaparecido em sua grande maioria porque preferiram “os prazeres da civilização” e de “viver a aventura do descobrimento de um novo mundo”.
Além da maldade da última frase, a constatação é muito próxima ao que Bolsonaro já proferiu mais de uma vez em sua carreira. Compartilhando o desprezo com o colega de farda, o ex-presidente disse que cada vez mais “o índio é um ser humano igual a nós”. O indígena, entendido como inferior, precisa ser enquadrado pela civilização para se tornar humano. O salvamento do indígena segue o padrão colonialista de cinco séculos.
Mas porque esses povos, considerados tão inferiores, são um perigo? O pensamento de Menna Barreto é um misto de medo do comunismo, de perder a Amazônia para forças estrangeiras e sonho de desenvolvimento do país por meio da exploração da natureza. Entra aqui a questão indígena: marxistas infiltrados no catolicismo e ONGs financiadas por potências estrangeiras utilizam os indígenas como massa de manobra para destruir a soberania do Brasil sobre a Amazônia.
Antes de ser presidente, Jair Bolsonaro disse: “Não tem terra indígena onde não têm minerais. Ouro, estanho e magnésio estão nessas terras, especialmente na Amazônia, a área mais rica do mundo. Não entro nessa balela de defender terra pra índio.” O indígena, então, atrapalha o desenvolvimento brasileiro, porque esconde recursos e, ainda, ameaça o território nacional.
Existe uma ideia entre os militares de que as riquezas da Amazônia são cobiçadas por europeus e estadunidenses. Os agentes do imperialismo semeiam “ódio e vingança, em vez do amor pregado por Cristo”, escreve Barreto. As terras indígenas são uma ferramenta do imperialismo para impedir a exploração de recursos e, consequentemente, o desenvolvimento brasileiro. A ideia de exploração e desenvolvimento é bastante primária, dado que a lógica é abrir buracos, extrair material e vendê-los.
O grande problema desse projeto são os indígenas que, por impedirem o esse avanço, devem ser erradicados, seja fisicamente, seja culturalmente. Afinal, segundo o pensamento exposto, eles são naturalmente errados, selvagens e incapazes. Ou se elimina os indígenas, ou o Brasil não poderá defender sua soberania e se desenvolver.
Não é de hoje, nem surgiu com a publicação de A farsa Yanomami, a forma de lidar com os habitantes originários. A ditadura militar instaurada em 1964 protegeu esse legado colonial ao pensar as terras indígenas como desertos que precisavam ser desenvolvidos para o bem da nação.
Menna Barreto e Bolsonaro não são os únicos militares que seguem esses preceitos. O homem que marcou a política nacional por repetir seu nome, Enéas Cordeiro, dizia que o território yanomami escondia diversas riquezas cobiçadas pelas potências mundiais. O general da reserva, Luiz Rocha Paiva, em entrevista ao podcast do Monark, afirmou que as ameaças à soberania brasileira se escondem atrás de discursos sobre preservação ambiental e a criação de reservas indígenas.
O mesmo capitão disse que o uso dos recursos das reservas poderiam servir aos próprios indígenas. Dessa forma, se impediria as ameaças das ONGs cobiçosas enquanto se acabam com os modos de vida indígenas. A mesma posição foi defendida pelo general Ridauto Lucio Fernandes no podcast Fala Glauber.
Villas Bôas, antigo comandante do Exército, em conversa com Pedro Bial, disse que a Amazônia precisa ser desenvolvida e que possui US$ 23 trilhões em recursos para serem explorados. Segundo o general, os países colonialistas têm interesse em acabar com a soberania brasileira por meio das políticas atreladas aos conceitos de indigenismo e ambientalismo.
Se as Forças Armadas, em seu pensamento, identificam problemas reais, como o subdesenvolvimento e o imperialismo, elas erram de maneira fantástica em suas análises. Preferindo antolhos ideológicos sem apreço pela realidade atual ou histórica, a tendência é que sigam sua empreitada de eliminação das vidas indígenas sem, com isso, salvar a nação.
A forma de pensar apresentada, preconceituosa e embasada em uma ideologia histórica sobre nosso passado, justificou e ainda justifica o tratamento do Estado brasileiro e seus agentes contra os povos indígenas. Uma história excludente sustenta a política de eliminação. Essa política beseia-se em uma história enviesada, branca, racista e falsa. E valores conservadores nutrem ambas.
A maior batalha que é preciso travar dentro das Forças Armadas ou em grande parcela dos brasileiros é contra uma visão de mundo ignorante e excludente. Que, ainda, pensa os povos originários de forma colonial. Nossa história é também colonizada pelos interesses políticos da atualidade. No pensamento presente em A farsa Yanomami – que é uma grande fonte para se começar a explorar a mente dos militares –, descobrimos que uma farsa histórica fomenta ações genocidas na atualidade.
Essa forma de pensar, de forma discriminatória contra os indígenas, existe em diversas esferas da sociedade brasileira. Os militares não são os únicos a dizimar os povos originários de forma simbólica e física. O Brasil, como Estado e sociedade, foi construído com a morte dos que considerava inaptos aos seus projetos. Ainda vivemos esse padrão. Uma revisão sobre essas narrativas conservadoras do passado pode, de alguma forma, ajudar a desmontar esses ideários fantásticos onde racismo é benção e loucura é confundido com o real.
Entre muitas possibilidades, a história, talvez, deva ser ensinada e escrita em um movimento que consiga enquadrar as reparações históricas e o combate a visões supremacistas sobre nosso passado. Não sabemos se as casernas estão prontas para isso, dado que seus valores colonizam a história que alguns de seus membros propagandeiam. Enquanto não conseguirmos realizar uma mudança nessa forma de pensar quem somos, sempre haverá espaço para visões de mundo que, em algum momento, permitirão a destruição de outras formas de existir.
Nesse falatório todo, faltou só umas coisas: entender que os indígenas são humanos, deixar que falem e, surpreendentemente, que escutemos.
Bruno Ribeiro Oliveira é doutorando em História e Artes na Universidade de Granada e autor do livro Ngũgĩ wa Thiong’o: história, literatura e descolonização.