A questão militar: uma espada sobre a democracia
Concentrar as atenções na personalidade abjeta de Bolsonaro, como fizemos esse tempo todo, lançou um véu sobre o fato de que os militares brasileiros permanecem no campo ideológico “amigo-inimigo”, da guerra interna e da doutrina da segurança nacional. Identificamos apenas como psicopatia de um vulgar ex-militar o que é, na verdade, expressão dessa cultura ideológica
1. Às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula no STF, em 2018, o célebre tuíte do comandante do Exército, general Villas Boas, quis intimidar a Corte. Possivelmente o gesto era desnecessário. Até aquele momento, todos os descalabros da Lava Jato que chegaram ao Supremo foram coonestados e o que quer que fosse que alijasse Lula do processo político lá encontrava guarida.
Entretanto, aqui nos interessa a questão em si do tuíte do general. Dizia que o Exército brasileiro compartilhava o anseio de todos os “cidadãos de bem” de “repúdio à impunidade” e que estava atento às suas “missões institucionais”. Segundo o Uol, o “termo chave” do tuíte – impunidade – foi sugerido pelo chefe de gabinete de Villas-Boas, general Tomás Ribeiro Paiva, ora nomeado por Lula comandante do Exército.
Em novembro de 2014, Bolsonaro, já em campanha para as eleições de 2018, participou da cerimônia de formatura dos cadetes de Agulhas Negras. O vídeo está no Youtube. Fez um breve discurso para os cadetes: “nós temos que mudar este Brasil, tá ok? Alguns vão morrer pelo caminho, mas estou disposto em 2018 a tentar jogar para a direita este país”. Foi aplaudido efusivamente pelos formandos em meio a gritos de “líder”. Daqui a trinta anos eles serão os chefes do Exército. Agulhas Negras naquele momento era comandada pelo general Tomás Ribeiro de Paiva.
No entanto, consta que o general se opôs ao golpismo militar após a eleição de Lula. Três dias antes da nomeação, em discurso, defendeu o acatamento do resultado eleitoral. O general Tomás não é um, são dois. O que abriu as portas de Agulhas Negras para um candidato notoriamente fascista fazer campanha presidencial e ajudou a redigir o tuíte golpista de Villas Boas e o ora legalista.
Pelas circunstâncias, durante o mandato de Lula devemos ter o militar legalista, o que pode nos tranquilizar razoavelmente até 2026. Porém, sua biografia o mostra como típico produto da formação ideológica e da cultura militar no Brasil que tem sido uma espada pendendo sobre a democracia e que tantas vezes desceu sobre nossas cabeças. Por isso é preciso tratar a questão militar para além dessa conjuntura, ou estaremos às voltas com ela em 2026, 2030 etc.
2. Por que Villas Boas pensa que o Exército tem uma “missão institucional” que o autoriza a ser agente político, a intimidar um Poder da República, a tentar mutilar uma eleição presidencial? Porque a sua formação ideológica divide a sociedade em amigos e inimigos e estes não têm direito de ganhar uma eleição e exercer o poder.
O golpismo militar perpassa a história do Brasil, porém, enfileirar fatos nunca é um bom método para estabelecer conceitos. Em cada momento há um sentido, um fim. Para compreender o golpismo militar de hoje é preciso retroceder a 1945, ao mundo pós-guerra, ao contexto da guerra fria.
Em 1945, o Estado Novo de Getúlio Vargas definhava. Em fevereiro daquele ano, o presidente promulgou Ato Adicional prevendo eleições. Os dois blocos que então se constituíram já espelhavam a polarização mundial pós-guerra, imperialismo unificado sob a liderança dos Estados Unidos e anti-imperialismo – forças políticas representativas dos trabalhadores, nacionalistas, comunistas. Um era o antivarguismo de caráter reacionário que tinha a UDN na proa. Outro o bloco que aglutinava queremistas, expressão derivada da palavra de ordem “queremos Getúlio”, que viam em Vargas a garantia da manutenção dos direitos dos trabalhadores e se organizou no PTB, além dos comunistas. “Os trabalhadores saíram às ruas: suspeitavam que o conjunto de lei de proteção ao trabalho, até então com dois gumes, sem Getúlio poderia começar a cortar de um lado só – o lado do patrão”.[1]
Comunistas logo foram postos na ilegalidade e os dois blocos atravessaram a História do Brasil desde então sob diferentes nomenclaturas e circunstâncias. Até o golpe de 1964, UDN e PTB. No curso da ditadura militar, Arena e parte da oposição consentida, MDB. Após a ditadura, o PSDB neoliberal e PT.[2] Hoje, o fascismo bolsonarista e PT.
A deposição de Vargas em outubro de 1945 pelos militares foi no cenário do pós-guerra a primeira da série de intervenções ou tentativas golpistas produtos do alinhamento ao bloco reacionário, à fração das classes dominantes identificadas com o imperialismo.
Quando Vargas apresentou-se candidato às eleições presidenciais de 1950, Carlos Lacerda lançou célebre diatribe: não podia ser candidato. Se fosse candidato, não poderia ser eleito. Se eleito, não poderia tomar posse. Se tomasse posse, não poderia governar. O “programa” de Lacerda foi cumprido pelos militares, provocando crises após crises durante o mandato de Vargas.
Em 1953, João Goulart, ministro do Trabalho, dobrou o salário-mínimo. Manifesto de coronéis (redigido por Golbery do Couto e Silva, o intelectual e ideólogo da futura ditadura militar) exigiu a sua queda. Vargas acatou. “Interpretado como expressão do desconforto da oficialidade ameaçada pela ascensão da classe trabalhadora, o manifesto – que pediria também a união contra o comunismo, ‘solerte e à espreita’ – revelaria mais do que isso: a existência de um setor militar pouco disposto a respeitar a vontade das urnas, o que representava um risco real às instituições democráticas”.[3] Na crise de 1954, impuseram a “licença” a Vargas que na prática era a deposição. O suicídio abortou o golpe.
Em 1961 veto à posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros. Em 1964, enfim, a ditadura militar. Crimes contra a humanidade, assassinato ou desaparecimento de mais de quatrocentas pessoas e tortura de milhares, crimes pelos quais se auto anistiaram.
O cimento ideológico era o anticomunismo e comunistas eram todas as forças políticas não alinhadas estritamente ao imperialismo norte-americano, o que incluía os estancieiros Vargas e Goulart, que jamais foram além do horizonte ideológico burguês, mas cuja base social era constituída pelos trabalhadores.
3. O cenário era da guerra fria. Nela o imperialismo incorporou certos elementos de fascismo: guerra no interior da sociedade visando eliminar as forças políticas consideradas nocivas (sempre “comunistas”, quer fossem ou não) e o respectivo método. Sendo guerra, as Forças Armadas a conduziam.[4] Era a Doutrina da Segurança Nacional, cujo conceito básico podemos colher em texto de lei: “A guerra revolucionária é o conflito interno, geralmente inspirado em uma ideologia ou auxiliado do exterior, que visa a conquista subversiva do poder pelo controle progressivo da Nação”.[5] A segurança nacional somente estaria preservada se a direita alinhada ao imperialismo estivesse no poder.
Devemos aos militares franceses o método dessa guerra interna, distinto da guerra tradicional contra o inimigo externo que abrigava normas humanitárias. Eles o forjaram combatendo a independência da Argélia. Tratava-se de obter a informação pela tortura e depois, se o suspeito tivesse ligação com o crime, matar, como explicou o major Paul Aussaresses na obra em que relata sua experiência no país do norte da África. Raciocinava, dizia ele, em termos de eficiência, não moral. [6]
A guerra interna, operada nesses termos (busca de informação pela tortura, assassinatos, desaparecimentos), foi ensinada pelos franceses aos militares norte-americanos, brasileiros e argentinos, entre outros. Nada disso em si era evidentemente uma novidade. Os franceses sistematizaram esse método no contexto da guerra interna e transmitiram sua experiência argelina. Aussaresses deu aulas em Fort Bragg aos norte-americanos, foi adido militar no Brasil e aqui também deu aulas. Na Argentina, em 1961, os franceses auxiliaram em um curso de guerra contrarrevolucionária interamericano de que participaram oficiais de catorze países, entre os quais Estados Unidos e Brasil.[7] A Escola Superior de Guerra de Paris foi um centro difusor da doutrina, que foi incorporada pela Escola Superior de Guerra brasileira e dela para o Estado maior das Forças Armadas e escolas de aperfeiçoamento da Marinha, Exército e Aeronáutica.[8] Gerações de militares latino-americanos foram treinados na missão de enfrentar o comunismo, em Fort Benning (Georgia) e em Forte Gulick (zona norte-americana do Canal do Panamá). Vários deles depois foram presidentes por meio de golpes de Estado, Banzer na Bolívia, Pinochet no Chile, Stroeessner no Paraguai, Videla na Argentina.[9]
4. Os métodos da guerra interna resultaram em tenebrosos crimes contra a humanidade na Argentina, Chile, Uruguai, Brasil etc. Os militares argentinos decretaram uma autoanistia, revogada pelo governo Alfonsin, o que possibilitou a persecução penal e condenação dos generais das Juntas Militares que governaram de 1976 a 1982. Tentativas posteriores de deixar impunes tais crimes (imprescritíveis e insuscetíveis de anistia) como a Lei do Ponto Final e da Obediência Devida foram derrubadas e centenas de agentes do Estado puderam ser processados. E assim no Chile e Uruguai.
No Brasil, a autoanistia dos militares foi convalidada pelo STF em 2010 sob o argumento de um acordo no ocaso da ditadura militar que se sobrepunha à Constituição de 1988. Acordo que ninguém viu, ninguém sabe. Nas palavras de Paulo Sergio Pinheiro, “uma invenção do relator”.[10] Qualquer pesquisa histórica mostra que a anistia nos termos em que foi proposta pela ditadura teve forte oposição nas ruas e da oposição no Congresso.
É evidente o efeito político nesses países decorrente da condenação dos responsáveis e perpetradores dos crimes contra a humanidade. Na Argentina, Chile e Uruguai, generais não tuítam, não pressionam o Judiciário se um candidato presidencial não lhes agrada, não se acumpliciam com golpistas nas ruas. Luis Moreno Ocampo diz em seu livro[11] que o julgamento das Juntas foi a derrota final do poder das minorias que desde 1930 haviam usado os militares para impor sua vontade na Argentina.
Concentrar as atenções na personalidade abjeta de Bolsonaro, como fizemos esse tempo todo, lançou um véu sobre o fato de que os militares brasileiros permanecem no campo ideológico “amigo-inimigo”, da guerra interna e da doutrina da segurança nacional. Identificamos apenas como psicopatia de um vulgar ex-militar o que é, na verdade, expressão dessa cultura ideológica.
Fuzilar a petralhada, mandar para a “ponta da praia” adversários políticos (referência à Restinga da Marambaia, onde eram torturados e assassinados opositores da ditadura), ter dito no passado que eleições não servem para nada, que a ditadura deveria ter assassinado 30 mil, que era favorável à tortura e ainda assim ser recebido e saudado como “líder” em Agulhas Negras, o principal centro de formação de oficiais, ter ao seu dispor o comandante do Exército para afastar o candidato presidencial que poderia derrotá-lo, ter durante todo o seu mandato ameaçado o país com um golpe militar sob o silêncio conivente das Forças Armadas são frases e condutas que o mostram como um típico produto da cultura e da formação ideológica militar que tem sido uma espada sobre a democracia. Anticomunismo patológico, a visão de que a sociedade está dividida em forças políticas nocivas e saudáveis, amigos-inimigos e que métodos desumanos podem dar conta dos inimigos que não devem exercer direitos políticos de cidadania.
Até quando seremos assombrados por essa espada que pende sobre a democracia? Continuaremos a “administrar” a questão militar como todos os governos pós-ditadura militar? Dilma Rousseff engavetou o Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Suas propostas são um programa completo para resolver nossa questão militar e consolidar a democracia. Destaco algumas que me parecem essenciais:
“– Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964 a 1985);
– Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposições constitucionais e legais;
– Proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964;
– Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos;
– Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos;
– Criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura;
– Promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação;
– Aperfeiçoamento da legislação brasileira para tipificação das figuras penais correspondentes aos crimes contra a humanidade e ao crime de desaparecimento forçado;
– Desmilitarização das polícias militares estaduais;
– Extinção da Justiça Militar estadual;
– Preservação da memória das graves violações de direitos humanos;
– Prosseguimento e fortalecimento da política de localização e abertura dos arquivos da ditadura militar.”
Podemos olhar para os próximos quatro anos do mandato de Lula ou podemos olhar para o futuro da democracia. O promotor argentino Ocampo, que atuou no processo contra os generais das Juntas Militares em 1985, diz em seu livro citado acima, que o então dilema argentino é global: Argentina de 1976 ou Argentina de 1985. Escolhemos até agora Brasil 1964. Brasil 2023 tem que ser o início do basta à barbárie.
Marcio Sotelo Felippe é advogado, ex-Procurador Geral do Estado de São Paulo e pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo
[1] “SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 390
[2] Para uma análise nessa perspectiva, ver SINGER, André, O lulismo em crise. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
[3] Memorial da Democracia, http://memorialdademocracia.com.br/card/coroneis-batem-de-frente-com-getulio, não assinado.
[4] Marcelo Godoy denomina isso de “inversão de Clausewitz”. Para o teórico prussiano a guerra era a continuação da política por outros meios; mas então a política passa a ser a continuação da guerra. Em outros termos, o eixo é a guerra. Que é interna. A casa da vovó. São Paulo, Alameda, 2014.
[5] Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967, Lei de Segurança Nacional.
[6] GODOY, Marcelo, ob. cit.
[7] Ocampo, Luis Moreno. Cuando el poder perdió el juicio. Buenos Aires, ed. Capital Intelectual, 3ª. Ed., 2022. Ocampo atuou como promotor no julgamento das Juntas Militares argentinas em 1985.
[8] GODOY, Marcelo, ob. cit.
[9] OCAMPO, Luis Moreno, ob. cit.
[10] Entrevista ao programa Roda Viva, março de 2022, disponível no Youtube.
[11] OCAMPO, Luis Moreno, ob. cit.