A regressão social que ameaça a sociedade brasileira
São inteiramente procedentes as preocupações com os desdobramentos sociais do ajuste de corte recessivo perseguido com ardor pelo governo federal. Se a paralisia prolongada já provocou retrocesso, um recuo maior na economia pode causar um estrago ainda mais sério na estrutura socialWaldir Quadros
Panorama1
Os dados de 2013 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, revelam um cenário que parece indicar o início da reversão do auspicioso ciclo de melhorias sociais iniciado em 2004. De fato, o comportamento da estratificação social das famílias brasileiras, classificadas pela situação do membro mais bem remunerado, configura preocupante retrocesso na mobilidade social, como se verifica na Tabela 1. Chama atenção a significativa retração da Média Classe Média, que se reflete numa expansão “espúria” da Baixa Classe Média e decorre de um processo de mobilidade descendente. Da mesma forma, destaca-se o crescimento da camada de Miseráveis, inédito desde 2004.
Podemos ter uma ideia mais clara da dimensão desse retrocesso analisando as variações no número absoluto de pessoas envolvidas. Para tanto, realizamos um exercício em que as participações relativas de 2012 (em %), da Tabela 1, são aplicadas sobre a população total de 2013 (201.467 mil pessoas). Com isso, obtemos a situação que seria encontrada em 2013 caso não houvesse nenhuma alteração na estrutura social de 2012. Dessa forma, “neutralizamos” o efeito do crescimento vegetativo da população, e as variações podem ser atribuídas exclusivamente às mudanças nas posições sociais, como é apresentado na Tabela 2.
Como se observa, em apenas um ano 780 mil pessoas da Alta Classe Média e 2,6 milhões da Média foram rebaixadas socialmente, atingindo um expressivo contingente de 3,4 milhões de pessoas. Como a Baixa Classe Média, que potencialmente as recebeu, cresceu “apenas” 2,4 milhões, sugere-se que 1 milhão desceu dessa camada para posições inferiores. Nesse estágio, a mobilidade descendente em cascata já afeta 4,4 milhões de pessoas. Por fim, ao 1 milhão de pessoas que desceram da Baixa Classe Média somam-se os 330 mil que caem da Massa Trabalhadora (pobre), resultando na expansão de 1,3 milhão de pessoas na situação de Miseráveis e totalizando, assim, 5,7 milhões de pessoas afetadas, ou seja, o equivalente a 2,8% da população.
Diante da continuidade da estagnação econômica, é plausível esperar que o mau desempenho tenha se mantido em 2014. Assim, são inteiramente procedentes as preocupações com os desdobramentos sociais do ajuste de corte recessivo perseguido com ardor pelo governo federal. De fato, se a paralisia prolongada provocou um retrocesso daquela magnitude, um recuo maior na economia pode causar um estrago ainda mais sério na estrutura social, afetando em grande medida aqueles que foram beneficiados recentemente.
A situação dos jovens adultos de 25 a 29 anos
A faixa etária de 25 a 29 anos é muito significativa por abranger o conjunto de jovens que já ingressaram ou estão ingressando plenamente no mercado de trabalho e, em medida razoável, constituem novas famílias. Dessa forma, são particularmente sensíveis às conjunturas e perspectivas do desenvolvimento econômico e social. Por isso, sua evolução merece especial atenção, entre outros aspectos, por seus desdobramentos na conformação dos humores da chamada opinião pública.
Seguindo os mesmos procedimentos adotados na análise do conjunto da população, a Tabela 3 apresenta o comportamento da estrutura social da totalidade dessa faixa etária, e a Tabela 4, da parcela daqueles que possuem ensino superior, completo ou incompleto – lembrando que essa estratificação se refere à situação familiar desses jovens, classificada pela posição do membro mais bem remunerado.
Como se observa na Tabela 3, entre 2012 e 2013 um contingente de 399 mil jovens foi rebaixado da Alta e Média Classe Média. Como a Baixa Classe Média expandiu-se tão somente em 274 mil, 125 mil pessoas dessa camada desceram para posições inferiores. Somadas aos 35 mil que caíram da Massa Trabalhadora, o resultado é o crescimento da camada de Miseráveis em 160 mil. Por esses números, 684 mil jovens adultos sofreram mobilidade descendente em apenas um ano, representando 4,4% da população dessa faixa etária. Portanto, sofreram um impacto superior àquele do conjunto da população (de 2,8%).
Restringindo o segmento aos jovens adultos que tiveram acesso ao ensino superior, a Tabela 4 aponta que 168 mil caíram da Alta e Média Classe Média; 21 mil da Baixa (168-147); e 8 mil da Massa Trabalhadora, totalizando 197 mil pessoas, o que equivale a 5,1% da população dessa faixa etária. Observa-se, assim, que a parcela mais escolarizada foi mais afetada que o conjunto dos jovens dessa faixa etária, fato que torna o cenário ainda mais preocupante.
Por fim, um enfoque adicional bastante interessante é propiciado pelo exame da situação da parcela desses jovens que se encontra ocupada no mercado de trabalho com um padrão de vida de Média Classe Média,2 a qual, como vimos, foi uma das camadas mais afetadas pelo rebaixamento social.
A Tabela 5 apresenta as dez ocupações numericamente mais relevantes, que abrangem em torno de 39% dos jovens ocupados desse segmento. Como se observa, de 2012 para 2013 ocorreu uma retração de 51 mil postos de trabalho, equivalente a menos 15%. Por outro lado, o encolhimento foi bastante generalizado, com crescimento absoluto apenas em três ocupações: enfermeiros de nível superior e afins; contadores e auditores; e cabos e soldados da Polícia Militar.
Por outro lado, a Tabela 6 revela que em todas essas ocupações ocorreram aumentos nos rendimentos declarados, já descontada a inflação do período. Em suma, o quadro geral é de retração das oportunidades em um cenário mais competitivo pelas melhores remunerações. Isso torna mais difícil a situação dos jovens das camadas populares que ascenderam recentemente, diante de uma tendência à maior elitização no mercado de trabalho das ocupações mais bem situadas.
Para encerrar, esse cenário que aponta sérias dificuldades para os jovens adultos ainda na fase de estagnação, e mesmo para aqueles com acesso ao ensino superior, é um indicador significativo do porte da regressão social que pode resultar do ajuste recessivo que está sendo imposto à sociedade brasileira.
Waldir Quadros é professor associado aposentado do IE-Unicamp e professor da Faculdades de Campinas (Facamp).