A relevância política da participação popular
Estamos assistindo a um momento de redefinição do OP. Progressivamente, ele parece assumir um lugar de potencializador de políticas participativas em cidades governadas por partidos de esquerda, em particular em áreas voltadas ao acesso à infraestrutura da população de baixa renda
Criado em Porto Alegre (RS) no começo dos anos 1990 a partir de pouquíssimas experiências anteriores – como as de Uberlândia, Lajes e Pelotas – em administrações progressistas do PMDB, o orçamento participativo (OP) rapidamente adquiriu visibilidade entre as esquerdas brasileira, latino-americana e europeia1.
Aqui, a iniciativa tornou-se uma bandeira do Partido dos Trabalhadores (PT) e se expandiu por diversas administrações de referência, como a de Belo Horizonte (1993-2008), de São Paulo (2001-2004) e de Recife (2001-2008), entre outras cidades.
Ao longo dos anos, contudo, ocorreram processos paralelos interessantes que levaram à progressiva descentralização do OP em relação ao PT: a partir de 1997, o número de experiências ligadas diretamente ao Partido dos Trabalhadores caiu para 43% do total, ao passo que a iniciativa foi ampliada para um campo mais geral de esquerda.
Fora do Brasil houve também alguns fenômenos significativos, como a introdução do OP em diversas cidades da região do Mercosul, notadamente em Rosário e em Buenos Aires, além da adoção, no Peru, de algumas políticas de transferência de recursos locais e da aplicação desta experiência na Venezuela, em um contexto radicalmente diferente do brasileiro e do argentino. Na Europa, o OP foi inserido, principalmente na França e na Espanha, por administrações de esquerda.
Esse itinerário perfaz o momento de ampliação da iniciativa, que se esgotou em 2004 com a derrota do PT em Porto Alegre e em São Paulo, assim como em outras cidades importantes das regiões Sul e Sudeste, dentre as quais vale a pena destacar Caxias do Sul e Ipatinga.
Desde então assistimos a um momento de redefinição do OP. Entre 2004 e 2008, apesar de não haver uma redução significativa, em números absolutos, dessas experiências (tabela 1), ocorreu certo refluxo da iniciativa, provocado, em primeiro lugar, pela derrota da experiência de Porto Alegre. Esta não apenas havia se constituído como a principal referência de OP, como também inspirou diversas das instituições que acabaram por caracterizá-lo, como as assembleias regionais, o Conselho do Orçamento Participativo, as listas de carências e o projeto de um conselho constituído apenas pela sociedade civil, sem a participação imediata do Estado. Essas instituições se espalharam por quase 200 cidades brasileiras e ainda hoje são majoritárias nos OPs.
Em segundo lugar, não surgiu um substituto de Porto Alegre que estivesse à sua altura. Existem – ou existiram – muitas experiências importantes de OP, mas nenhuma delas caracterizou-se pela centralidade que o OP de Porto Alegre teve na administração municipal.
A cidade candidata a substituir a capital gaúcha na liderança do OP seria Belo Horizonte, que não atendeu a essa expectativa devido à opção do ex-prefeito Fernando Pimentel (PT) de fazer grandes obras estatais sem nenhum controle público ou transparência. Assim, com a derrota petista em Porto Alegre, o OP passou a ter menos influência no Brasil.
E o que é o OP hoje? Qual é a sua importância? O OP é uma forma democrática de equalizar o acesso a bens de infraestrutura em cidades de médio porte com boa capacidade administrativa e tributária. Esse constitui o perfil da maior parte dos municípios que praticam ou praticaram o OP desde 1997 – são cidades com mais de cem mil habitantes, com sociedades civis relativamente bem organizadas e frequentemente governadas pela esquerda, ainda que não apenas pelo PT.
É nessas administrações que o OP prospera e mantém sua reputação de política distributiva. Em relação a isso, um fenômeno importante deve ser observado: nos últimos oito anos, a concentração da iniciativa diminuiu no sul do país e aumentou nas demais regiões, em especial na região Nordeste, que passou a centralizar 22,4% do total de experiências (tabela 2). Tal mudança no perfil das cidades que praticam o OP altera ligeiramente o padrão de relação entre orçamentos participativos e o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
Como se sabe2, as experiências de OP ocorreram, a princípio, em cidades que apresentam IDH bastante superior à média brasileira. O orçamento participativo continua sendo praticado nessas cidades, porém houve uma queda desse índice em relação aos patamares de 2004. Assim, o OP parece assumir um novo perfil de política distributiva presente nos municípios de médio porte das regiões Sul, Sudeste e Nordeste.
Tudo indica que nos municípios onde o OP é ativo há diversos tipos de políticas participativas e que essa iniciativa ocupa a posição de potencializadora dessas políticas, voltadas ao acesso à infraestrutura pela população de baixa renda. Esse processo combina-se com os conselhos de políticas em área importantes como saúde, assistência social, meio-ambiente e criança e adolescente.
Dessa forma, o lugar que o OP parece progressivamente assumir é o de intermediário e potencializador de políticas participativas em cidades governadas por partidos de esquerda cujos prefeitos tenham interesse em expandir essas políticas, como os municípios de médio porte das regiões Sul, Sudeste e Nordeste do Brasil que não são governados exclusivamente pelo PT.
*Leonardo Avritzer, doutor em sociologia pela New School for Social Research (1993) e pós-doutor pelo Massachusetts Institute Of Technology (MIT), é professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais.