A resistência LGBTQ+ no século XXI
A expectativa de vida de uma pessoa trans ou travesti era de 35 anos, até o ano de 2018 no Brasil. Em 2017 o país representou aproximadamente 40% das mortes de pessoas trans e travestis de todo mundo
“Somos muitos Severinos”, disse João Cabral de Melo Neto. Em sua poesia o escritor declama protesto em memória dos muitos preteridos socialmente que, marginalizados, são levados a um homicídio assistido. O autor se iguala ao objeto da obra e afirma: “Somos muitos Severinos, iguais em tudo na vida“, remontando o corredor da morte que é feita a vida de alguns indivíduos. Na atualidade, os Severinos ganham outros nomes, mas não deixamos de sermos muitos, os quais se tenta tornar poucos.
15 de fevereiro de 2017. Dandara dos Santos, 42 anos, é assassinada, após uma sessão de linchamento e tortura assistida por algumas pessoas. As cenas foram compartilhadas, posteriormente, nas redes sociais. Dandara era filha, Dandara era irmã, Dandara era travesti. Lamentavelmente, Dandara faz parte de uma estatística parametrizada a partir da contagem dos corpos de outras Dandaras. Afinal, somos muitas Dandaras, iguais em tudo na vida. “Morremos de morte igual, mesma morte Severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta“, continua João Cabral de Melo Neto. De acordo com levantamento feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a expectativa de vida de uma pessoa trans ou travesti era de 35 anos, até o ano de 2018 no Brasil. Em 2017 o país representou aproximadamente 40% das mortes de pessoas trans e travestis de todo mundo. Esse número aumentou neste ano, em relação a 2016.
Junho de 1969. Após um episódio de violência policial ocorrido no bar Stonewall, em Nova Iorque, teve início uma rebelião que marcou, depois, o fortalecimento e expansão da luta pelos direitos LGBTQ+, cristalizados nas imagens de Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera. Stonewall foi o estopim para uma resistência contra a hostilidade que se praticava à marginalidade. Pessoas como Sylvia e Marsha, trans e travestis, estão mais vulneráveis às negligências do Estado que as condiciona à expropriação de seus corpos. De acordo com Judith Butler, os indivíduos têm suas vidas apreendidas em quadros que definirão, em sequência, os modos como serão tratados. Ou seja, as violência cometidas contra os sujeitos depende dos frames que os apreende, que permitirá ou não práticas abusivas.
Em Stonewall percebemos o vazamento dessa imagem enquadrada. O quadro de violência que delimitava a população LGBTQ+ naquele cenário, transbordou. Com isso, as revoltas subsequentes tiveram como intuito reestruturar a ordem sociocultural vigente, evidenciando pessoas que, antes invisibilizadas, ou tampouco consideradas pessoas, existem. E resistem. A violência a que se refere a luta de Marsha e Sylvia não se limita à agressão física. Trata-se das limitações impostas pelos enquadramentos colocados sobre essa parcela da população. Segundo levantamento de especialistas internacionais de direitos humanos e relatores da ONU, até o ano de 2018 cerca de 72 país ainda mantinham leis que criminalizam relações homossexuais e expressões de gênero. Isto é, pouco mais de um terço dos países do mundo naturalizavam violências moral, física e psicológica contra milhares de pessoas. Impedindo-os de viverem suas subjetividades e dirigindo-os para suas mortes em vida. Neste ponto, portanto, acontece a fantochização da vida. Ou seja, alguns corpos – os corpos LGBTQ+ – são esvaziados e manipulados objetivamente.

A discriminação contra pessoas LGBTQ+ impacta diretamente no acesso à educação institucional. Um levantamento feito no ano de 2016 aponta que 73% dos estudantes LGBTQ+ já relataram terem sofrido bullying em ambiente escolar. Tendo 58,9% desses estudantes faltado aula pelo menos uma vez, em razão de agressões constantes. Não raro, são contadas histórias sobre os assédios, expulsões e violências física e sexual incorridas sobre à população LGBTQ+ em ambiente de ensino, em vista da animalização e atribuição de uma segunda classe a essas pessoas. Em relação a acompanhamentos médicos regulares, a patologização do guarda-chuva LGBTQ+ incide sobre a decisão de abandono aos exames de rotina e acompanhamento psicológico, por exemplo.
“Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino. Filhos de tantas Marias, mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia”. No Brasil, a LGBTfobia mata a cada 20 horas uma pessoa por ser LGBTQ+. Vale apontar que o Brasil é o país que mais assassina pessoas trans no mundo, estando uma pessoa trans brasileira 12 vezes mais vulnerável a violências do que uma pessoa trans estadunidense. Enquanto este artigo era escrito, eclodiu na internet ataques direcionado a Thammy Gretchen, um homem-trans, teve sua paternidade questionada após ser contratado para uma campanha publicitária de dia dos pais. Infelizmente, esta hostilidade é sintomática e expressa a opressão que acontece diariamente. Na contramão, re-existimos.
“Você nunca tem completamente seus direitos, como pessoa, até que todos tenham seus direitos. E sinto que, enquanto tenha que caminhar pelos direitos dos gays, todos nós devemos estar caminhando pelos direitos dos gays.” Marsha P. Johnson.
Marllon Motta da Rocha, graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Referências
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto. 6ª edição. Rio de Janeiro. Civilização brasileira. 2019.
Grupo Gay da Bahia: https://grupogaydabahia.com.br/relatorios-anuais-de-morte-de-lgbti/ acesso em Julho de 2020.
Politze: https://www.politize.com.br/lgbtfobia-brasil-fatos-numeros-polemicas/ acesso em 2020