A retomada das práticas alimentares ancestrais pelos Guarani Mbya
Não é possível pensar a questão da segurança alimentar sem nos depararmos com a vulnerabilidade das comunidades indígenas frente ao cenário de crise de saúde e sanitária que se aproxima
Comecei a escrever este texto antes da explosão da pandemia de Covid-19 no país. A ideia era refletir sobre a retomada da alimentação tradicional dos povos Guarani Mbya que vivem na Terra Indígena do Jaraguá e como tal processo tem sido de suma importância para a recuperação e a manutenção de seus costumes e para o acesso a uma alimentação saudável por fora do sistema agroalimentar que nos é imposto atualmente. No entanto, não é possível pensar a questão da segurança alimentar sem nos depararmos com a vulnerabilidade das comunidades indígenas frente ao cenário de crise de saúde e sanitária que se aproxima.
Por volta de 2017, os Guaranis Mbya iniciaram um movimento de retomada de práticas alimentares tradicionais nas aldeias. Mas esse processo é lento e complexo, pois, além de questões como a falta de território para plantar e de subsídio para a realização dos projetos, um novo comportamento alimentar já foi incorporado pelas novas gerações.
O objetivo dos Guaranis da TI Jaraguá é que, na medida do possível, sejam reintroduzidas no cotidiano das aldeias as suas práticas ancestrais que prezam pela vida em harmonia com a mata, buscando tipos de intervenções menos impactantes quanto possíveis à natureza e que aos poucos consigam retomar seu modo de vida, principalmente por meio da agricultura de subsistência e da pesca.
Neste momento, por causa do surto causado pelo novo coronavírus, somos bombardeados todos os dias nas mídias e nas redes sociais com informações sobre a pandemia e sobre as principais recomendações para sua contenção: o distanciamento social e a higienização constante das mãos, segundo as recomendações da OMS. Porém, como se aplicam essas medidas a comunidades que têm intrínsecas a seu modo de vida práticas coletivas e que, quando vivem em contexto urbano, não dispõem de saneamento básico adequado?
Além disso, a fim de manter a boa imunidade, ainda nos recomendam práticas de exercícios físicos regulares e uma alimentação equilibrada para que, em caso de contágio, o corpo tenha condições de combater a infecção e se recuperar. Tendo isso em vista, como podemos falar de alimentação saudável a comunidades que não possuem segurança alimentar?
Mudanças nos hábitos alimentares
As possibilidades de complicações da doença Covid19 estão relacionadas não só à idade dos pacientes, mas também a comorbidades, como problemas respiratórios, doenças cardiovasculares e diabetes, enfermidades que atingem diretamente os povos nativos. Diversos estudos mostram que há uma grande incidência tanto das doenças respiratórias, como das doenças conhecidas como metabólicas nas populações indígenas do país, e que as principais causas apontadas para o desenvolvimento dessas últimas é justamente a mudança dos hábitos alimentares: a introdução dos alimentos ricos em açúcares e sódio, presentes principalmente nos industrializados1.
Logo, essas populações não só são as mais vulneráveis do ponto de vista socioeconômico, como também compõem parcela considerável do grupo considerado de risco.
Nos últimos anos, houve uma mudança significativa no comportamento alimentar dos indígenas aldeados por causa de transformações culturais e ambientais, como o contato com a sociedade não indígena, as restrições territoriais e o esgotamento de recursos naturais, o que comprometeu as atividades de subsistência de muitos povos, ocasionando a redução da diversidade alimentar2.
A drástica mudança no padrão alimentar torna-se ainda mais evidente nos casos das comunidades que vivem em áreas urbanas, já que estão impossibilitadas de produzir seus alimentos e acabam sendo levadas ao consumo de produtos industrializados carregados de sódio, açúcar e agrotóxicos. Muitas vezes, dependem também de doações, realizadas por órgãos privados ou governamentais, de cestas básicas compostas de produtos tais como enlatados, goiabada, farinha de trigo, farinha de milho, óleo vegetal, sal e açúcar, entre outros, que proporcionam uma alimentação altamente calórica.
Na maioria das vezes, essas medidas são emergenciais para situações de risco eminente e não solucionam as causas do problema, como a falta de terra para plantar, a dificuldade de acesso a alimentos de qualidade e as condições inadequadas de saneamento.
Mais uma vez, o debate acerca do território encontra-se no cerne do problema, pois para a maior parte das comunidades o meio ambiente é a fonte de alimentação e, portanto, sua degradação e falta de proteção afetam a produtividade do território e, consequentemente, a segurança alimentar.
Participação efetiva
As iniciativas que geralmente obtêm maior sucesso na produção de alimentos são as que contam com a participação efetiva das comunidades indígenas em todos os momentos, desde o seu planejamento até a sua execução, e que apresentaram propostas coerentes com a realidade indígena3.
As aldeias do Jaraguá, que estão inseridas no contexto urbano, sofrem muitas influências do modo de vida não indígena e vivem em constante luta para manter seu território e seus costumes. Por isso, a alimentação é uma questão fundamental a ser discutida, já que essas aldeias se encontram numa situação vulnerável e pouco são assistidas pelo poder público.
Assim, para que seja possível manter o nhanderekó (modo de vida Guarani) é preciso terra para cultivo e é preciso que as comunidades consigam transmitir seus conhecimentos ancestrais de práticas agrícolas aos mais jovens, de tal forma que sem a expansão do território demarcado, atualmente, é inviável exercê-lo e consequentemente obter soberania alimentar.
Em 2006, foi promulgada a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei n. 11.346) que visa promover um conjunto de ações para garantir a oferta e o acesso aos alimentos para toda a população, sendo fundamental que as políticas públicas voltadas às populações indígenas levem em consideração suas especificidades e tradições.
Essas especificidades ficam mais evidentes neste momento, com o surgimento da pandemia, uma vez que o modo de vida comunitário, os rituais nas casas de reza e a alimentação coletiva com o compartilhamento de objetos – utensílios domésticos e ritualísticos, como cachimbos – dificultam o distanciamento social dentro das aldeias. Por isso, as orientações genéricas para a população em geral não são tão efetivas para as comunidades indígenas. Portanto, é imprescindível que haja políticas e orientações específicas a essa população, além do fornecimento de alimentação e de itens de higiene o mais breve possível.
Quarentena nas aldeias
Diversas lideranças indígenas e organizações estão orientando a população sobre a prevenção da Covid-19 e sobre as medidas que necessitam ser tomadas. A recomendação é que as aldeias fiquem fechadas para visitas de não indígenas neste período de quarentena, a fim de evitar ao máximo o contato externo e a chegada da doença nos territórios, que podem vir a ter sérios problemas para garantir o isolamento de doentes e impedir a disseminação do vírus entre a comunidade.
As aldeias que se encontram próximas à estação de trem Vila Clarice são entrecortadas por ruas onde passam ônibus, carros e pedestres, então, mesmo que os guaranis não saiam delas, o isolamento total não é possível, como em outras comunidades que vivem em locais mais afastados e menos urbanizados. Esse fato torna a comunidade indígena do Jaraguá uma das mais expostas à Covid-19, já que a cidade de São Paulo é considerada um epicentro da pandemia; inclusive, há casos confirmados nos bairros arredores, como divulgado pelo Boletim Covid-19 da Secretaria Municipal de Saúde no dia 31 de março.
Os efeitos desse vírus nas aldeias podem ser devastadores, pois o modo de vida comunitário pode facilitar sua rápida propagação. Por isso, é imprescindível que haja lugares adequados para o tratamento de doentes, caso a pandemia chegue até a comunidade, pois esse isolamento não pode ser realizado nas aldeias, já que as estruturas das casas, geralmente, contam com apenas um quarto ou não possuem divisões.
Embora a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) tenha emitido vários documentos de orientação para a saúde indígena, não há um plano emergencial efetivo em vigência. As lideranças cobram que ações imediatas sejam tomadas, como o envio de insumos de limpeza e higiene, e testes suficientes para serem realizados em todos os casos suspeitos e em quem precisar entrar nas aldeias.
Dentro desse contexto, são necessárias medidas específicas urgentes para a comunidade Guarani do Jaraguá, assim como garantir sua segurança alimentar nesse período de confinamento, em que não podem sair para trabalhar, participar de projetos ou vender artesanato.
Acordo desrespeitado
Em meio à pandemia a construtora Tenda voltou a agir. No dia 26 de março, em pleno período de quarentena, funcionários contratados pela construtora foram ao terreno que estava antes ocupado pelos indígenas e fecharam a entrada de acesso ao terreno com tijolos, além de colocar cercas cortantes no muro ao redor do local, desrespeitando o acordo realizado com a comunidade de que ninguém entraria no terreno e que as obras ficariam paralisadas até o dia 6 de maio, data marcada para a próxima audiência sobre o caso. No entanto, no dia 9 de abril, a audiência foi cancelada e a Defensoria Pública da União junto à Defensoria Pública do Estado de São Paulo determinara a suspensão das obras e do manejo ambiental por tempo indeterminado.
Atualmente, os Guarani Mbya estão em processo de luta contra um enorme empreendimento imobiliário num terreno de cerca de 8 mil m², da Construtora Tenda, que pretende construir um condomínio residencial de até onze torres com ao menos 880 imóveis, há menos de 200 metros da entrada das aldeias. O que afetaria diretamente seu modo de vida no local e também o meio ambiente, implicando a derrubada de centenas de árvores nativas remanescentes da Mata Atlântica e o desvio do curso de águas que passam pela propriedade.
A proposta dos indígenas Guaranis é que seja construído um parque ecológico no local, para que toda a comunidade, indígena e não indígena, possam usufruir do espaço.
1 AZEVEDO, Marta M.; CORRÊA, Ana Maria S.; FERREIRA, Maria Beatriz R. Estudo do conceito e percepção de segurança alimentar e nutricional entre os Guarani no Estado de São Paulo, Unicamp; BRITO, Aurélia M. Segurança alimentar e nutricional e comunidades indígenas: comida e território. Anais… XVIII ENANPUR 2019, Natal, 2019; SALGADO, Carlos A. Bezerra. Segurança alimentar e nutricional em terras indígenas. Revista de Estudos e Pesquisas. Brasília, Funai, v.4, n.1, p.131-186, jul. 2007.
2 ROCHA, Tatiana E. da Silva; SILVA, Reijane Pinheiro; NASCIMENTO, Maira Messias. Mudanças dos hábitos alimentares entre os Akwen Xerente. Rev Esc Enferm USP v.50, n. esp. 2016; GARNELO, Luiza; WELCH, James R. Transição alimentar e diversidade cultural: desafios à política de saúde indígena no Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.25, n.9, p.1872-1873, set. 2009; COIMBRA JR, Carlos E. Epidemiologia e saúde dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; Abrasco, 2005.
3 BARROS, D. C., SILVA, D. O.; GUGELMIN, S. . (orgs.). Vigilância alimentar e nutricional para a saúde indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007, v.1.
Marcilia Brito é formada em Letras pela USP, militante independente, é editora, curadora de artes e educadora.
As imagens que ilustram esse artigo são do fotografo Luca Meola.