Jaraguá é Guarani
Estudos publicados pela Funai indicam a presença dos Guarani na região desde o século XVII, demonstrando a relação sociocultural, afetiva e religiosa desses povos com o território.
[…] Hoje já não resta quase nada de floresta em sua terra doente e não podem mais beber a água de seus rios. Agora querem fazer a mesma coisa na nossa terra.
Davi Kopenawa 1, xamã yanomami.
Na segunda semana de janeiro, por intermédio da Aliança Universidade e Povos Indígenas (Aupi), um coletivo que realiza projetos em prol da causa indígena no estado de São Paulo, eu, buscando um pouco de verde e depois de pouco mais de dois anos acompanhando as lutas do movimento indígena no país, fui participar de uma vivência na aldeia Yvy Porã, junto à comunidade Guarani. Ela é relativamente nova e faz parte do conjunto de sete aldeias em contexto urbano que estão espalhadas pela Terra Indígena do Jaraguá, entrecortadas por estradas e rodovias.
Ao chegar no local, após de aproximadamente 15 minutos de caminhada a partir da estação de trem Vila Clarice, fomos recebidos por Irene, uma grande liderança desse povo, que apesar de não estar muito bem de saúde, havia feito xipa, um pão típico da culinária Guarani, para nosso café da manhã.
Iniciamos, junto ao café, uma conversa com um jovem líder Guarani, Thiago Karai Djekupe. Ele nos conta com entusiasmo que o processo de retomada do território começou há pouco mais de trinta anos, mas que seu povo sempre esteve ali. Também nos disse que há um esforço para manter e retomar a cultura ancestral Guarani, pois a proximidade com o contexto urbano e a pequena área a que estão confinados dificultam muito a manutenção de seu modo de vida.
Estudos publicados pela Funai indicam a presença dos Guarani na região desde o século XVII, demonstrando a relação sociocultural, afetiva e religiosa desses povos com o território; porém a área atualmente disponibilizada para eles é insuficiente, fazendo-os sofrer sem espaço adequado para plantio, moradia e acesso a nascentes e obrigando-os a viver em comunidades que podem, à primeira vista, assemelhar-se às favelas de São Paulo.
No entanto, nessa nova aldeia, os Guarani não queriam que fossem repetidas as construções das aldeias vizinhas, formadas por pequenas casas feitas de metal. A ideia é que todas as moradias da Yvy Porã sejam bioconstruídas, e esse era justamente o objetivo da vivência da qual eu participaria: a construção da futura casa de Irene e de sua família.
A estrutura da casa já estava pronta, feita de ripas de madeira e de varas de café, remanescentes das antigas plantações que existiam no território ao redor do Pico do Jaraguá antes da retomada Guarani. Ao nosso grupo caberia a parte do preenchimento com barro dos vãos entre as madeiras, para construir as paredes. Quase todos os componentes da construção foram retirados do lugar, com exceção de uns poucos pregos e das telhas, pois as folhas usadas antigamente para cobrir os telhados não são mais encontradas na região.
Menor área demarcada do Brasil
A Terra Indígena do Jaraguá é a menor área demarcada do Brasil, tem apenas 1,7 hectare desde 2017, quando o então ministro da justiça, Torquato Jardim, assinou a Portaria 683, revogando a medida anterior, a Portaria 581, de 2015, que reconhecia como legítima a reserva do Pico do Jaraguá e previa a demarcação de 512 hectares.
Thiago nos diz que para eles o que está em questão não é uma disputa por território, mas um conflito de civilizações, com visões de mundo e modo de vida antagônicos. Afirma que o que os brancos consideram desenvolvimento, para seu povo, é um claro retrocesso, já que estão há anos tentando recuperar as áreas desmatadas pela ocupação não indígena, por meio da reintrodução de espécies nativas, da plantação de árvores e do cultivo de abelhas; este é o avanço que buscam: a preservação da natureza e o bem-estar das pessoas que habitam o planeta.
Ele também nos conta que de tempos em tempos recebem pessoas “bem vestidas e bem intencionadas” que oferecem dinheiro, apartamentos para as famílias, prometem a construção de escolas novas e quadras esportivas em troca de apenas alguns metros do território. Mas nem sempre o assédio é financeiro, às vezes desconhecidos mandam despejar caminhões de lixo nas terras aos arredores. Também sofrem, esporadicamente, ameaças físicas, assim como tentativas de roubo de terras já demarcadas. A luta é constante, afirma.
Ocupação não predatória
As populações indígenas que vivem em reservas demarcadas não são proprietárias das terras, que pertencem à União. As relações que estabelecem com o território são de outra ordem: priorizam o respeito pelo solo sagrado, o que ocasiona uma ocupação não predatória.
No dia 30 de janeiro, os moradores da Terra Indígena do Jaraguá se mobilizaram e ocuparam um terreno vizinho às aldeias, onde foram cortadas mais de trezentas árvores nativas para a construção de um condomínio residencial da construtora Tenda.
Com apenas 12,4% de sua área original espalhada em pequenas manchas, cuja maior parte, 80%, encontra-se em propriedades privadas, a Mata Atlântica é a floresta mais devastada do país. Segundo a Fundação SOS Mata Atlântica, a industrialização e a expansão urbana desordenada estão entre as principais ameaças ao que restou desse bioma.
Já é comprovado por diversos estudos que as terras indígenas e quilombolas são os territórios mais preservados, e que as florestas urbanas são capazes de melhorar a qualidade do ar. Por isso, é tão importante preservar as áreas verdes nos grandes centros urbanos.
Caso seja aprovado, esse empreendimento vai promover o desmatamento de mais uma parte do pouco de floresta nativa que ainda resta em nossa cidade, desrespeitando os povos Guarani que lá vivem e o bioma local: macacos, tatus, bichos-preguiça, pássaros, além das nascentes.
Consulta prévia
David Karai Popygua, liderança indígena, alega que os Guarani foram procurados pela construtora. Ao final de 2019, dois representantes foram enviados para comunicar que seriam cortadas 4 mil árvores do território no entorno das aldeias, mas que não haviam dito quando isso ocorreria.
A construção da Tenda é colada às aldeias Guaranis, entretanto, a Portaria Interministerial 60, de 2015, junto ao Ibama e à Funai, determina que nenhuma obra pode ser conduzida a menos de 8 km de território indígena demarcado sem o devido estudo de impacto ambiental e sociocultural com componente indígena. Por isso, a população não só deve ser consultada como também tem que participar ativamente desse processo de licenciamento, o que não foi feito.
Além disso, a convenção 69 da OIT garante a consulta prévia à comunidade indígena sobre qualquer tipo de ação do governo ou de empresa que possa atingi-la de alguma maneira ou trazer impacto a seu modo de vida. Nesse caso, é necessário que haja acordo entre as partes.
A Tenda alega que obteve um alvará para remoção das árvores e que a área em questão não é objeto de reivindicação indígena; entretanto, como é sabido, todo o território do Jaraguá é objeto de reivindicação. Segundo as lideranças da ocupação, a Cetesb visitou o terreno no dia 3 de fevereiro e afirmou que não foi consultada pela construtora; logo, não aprovou a derrubada das árvores.
Resistência
No dia 4 de fevereiro foi entregue na ocupação um mandado de reintegração de posse, fechando qualquer possibilidade de diálogo entre a comunidade e a construtora. A juíza Maria Cláudia Bedotti expediu a ordem autorizando a reintegração e o auxílio de força policial para a realização da ação em favor da Tenda Negócios Imobiliários, alegando que já teria passado o prazo para “realização de uma cerimônia fúnebre em homenagem à flora” que, segundo o documento, era a finalidade inicial da ocupação, “em respeito à cultura indígena e à iniciativa dos índios em prol do meio ambiente, há que se considerar que já houve tempo mais que suficiente para a realização da cerimônia, não se podendo admitir que os índios permaneçam no imóvel”. Essa argumentação chega a parecer irônica, como se dissessem: “agora que vocês já choraram a morte das árvores, saiam, pois precisamos continuar o desmatamento”.
Já no dia 5 de fevereiro, a Coordenação de Fiscalização Ambiental da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, após uma vistoria técnica, emitiu um termo de suspensão de atividades por tempo indeterminado, no entanto, tal decisão não impede a reintegração de posse.
Quando retornei ao local, por ocasião da ocupação, o clima não era mais festivo, mas fúnebre, as pessoas estavam tristes e muito revoltadas; porém, com uma disposição incrível de resistência. No terceiro dia de ocupação, numa ação em conjunto à comunidade local, os ocupantes e apoiadores, plantaram mais de duzentas mudas no terreno onde houve o desmatamento.
Os conflitos entre indígenas e não indígenas aumentaram significativamente depois do governo Bolsonaro, principalmente por causa do discurso do presidente que legitima ações como o desmatamento e a exploração das reservas indígenas em prol de um suposto desenvolvimento econômico. O presidente também afirma, desde sua campanha, que não haverá nenhum avanço na demarcação de territórios sob o seu mandato.
Especulação imobiliária
Em vídeo divulgado em redes sociais, Thiago reitera aos Guarani e aos apoiadores presentes na ocupação: “Nosso povo não entrou aqui porque quer o dinheiro da Tenda, não entrou aqui para negociar terra. Nós entramos aqui porque eles estavam derrubando as árvores. Nosso povo está lutando pelo meio ambiente, está lutando pela vida. Nós queremos transformar esse lugar num parque ecológico, numa área pública, que as crianças, o futuro dessa nação, vão poder usufruir”.
Uma queixa comum de quem mora em grandes centros urbanos é a sensação de estar vivendo numa selva de concreto, sem verde, sem contato com a terra e com os animais nativos, onde, muitas vezes, é praticamente impossível observar a linha do horizonte e o pôr do sol. Por isso, em uma cidade como São Paulo, as pessoas costumam, aos finais de semana, procurar parques, praças, ou mesmo sair da área urbana para que possam ter a sensação de estar um pouco mais perto da natureza.
Nós tentamos compensar essa falta de verde de muitas maneiras, seja construindo jardins verticais nas empenas cegas dos prédios, seja colocando samambaias na janela da sala ou plantando vegetais orgânicos na varanda. Enquanto isso, as questões que envolvem a preservação da natureza estão sempre colocadas como algo muito distante: conflitos que ocorrem no Mato Grosso, no Maranhão ou nas regiões das reservas Amazônicas.
Mas, infelizmente, as disputas por territórios nesta metrópole estão na ordem do dia e são relacionadas não às agroindústrias e às madeireiras, mas à especulação imobiliária.
Marcilia Brito é formada em Letras pela USP, militante independente, é editora, curadora de artes e educadora.
1 Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, São Paulo, Companhia das Letras, 2015, p.408.
Outro lado
A redação do Le Monde Diplomatique Brasil recebeu nota da Construtora Tenda que segue abaixo:
“A Construtora Tenda esclarece que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo concedeu liminar para a reintegração de posse do terreno que abrigará empreendimento imobiliário destinado exclusivamente à moradia popular. A companhia respeita os questionamentos da comunidade indígena local e reitera que o projeto prevê preservação de 50% da área. A empresa ressalta, ainda, que o empreendimento irá levar infraestrutura e saneamento à região, além de beneficiar até 2 mil famílias de baixa renda, por meio do programa MCMV (Minha Casa, Minha Vida). A primeira fase do projeto favorece 880 famílias e atende a todos os procedimentos necessários para a legalização do empreendimento nas três esferas do Executivo, incluindo autorização para o manejo arbóreo, que prevê a supressão de 528 árvores, o replantio de outras 549 no local e a doação de 1.099 mudas para o município. A Tenda segue à disposição das autoridades e da sociedade civil para qualquer esclarecimento.”